Uma família de mentirinha
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Capítulo 4 4

NASH

O

crepúsculo estava aparecendo de novo no momento em que eu cruzei a fronteira do Arizona. Roxie segurava a cabeça e olhava para a janela enquanto voávamos pela paisagem lunar do deserto de Mohave.

― Acho que merecemos uma pausa. ― Eu disse, pulando na areia quase dois quilômetros abaixo da estrada.

Minha cachorra era muito bem treinada, mas eu a mantive na coleira. A lua cheia estava começando a nascer no horizonte e as cores do céu combinavam tanto com a imensidão do deserto que parecia uma cena saída de um filme do Star Wars. Quando eu era criança, estive nesse caminho com meu pai. Estávamos indo ao Lago Havasu. Eu poderia lembrar de estar fascinado pelos espaços sem árvores, cheio de areia e aflição, tão diferente do verde de Hawk Valley, tão diferente do estuque urbano de cactos de Phoenix. Parecia impossível que ainda era o mesmo estado. Isso é o que as pessoas imaginam quando pensam no Arizona, esse deserto desolado. Mas não era tudo assim.

Roxie se lambuzou na água que dei a ela quando voltamos ao caminhão. Eu engoli uma garrafa de água e olhei as estrelas que estavam começando a aparecer. Meu pai era muito ligado à astronomia. Ele fez algumas aulas na faculdade local, mas abandonou os estudos depois que eu nasci e ele sabia que teria que trabalhar para sempre numa pequena loja da família em Hawk Valley, onde uma graduação de astronomia era tão útil quanto mamilos em um homem. Mas ele nunca perdeu o amor pelo céu, sempre ia a um grande observatório em Flagstaff.

― Lá vai uma coisa sobre as estrelas, Nash. Independente de poder vê-las ou não, elas sempre estarão lá. Não há muitos fatos como esse no mundo.

Eu alisei a garrafa de água vazia e a joguei no porta-luvas para que Roxie não pudesse mastigar.

Depois da ligação de Jane, tive um ataque de fúria, arrumei as coisas apressadamente para pegar a estrada. Isso me mantinha longe de pensamentos. A última coisa que eu queria fazer era pensar demais. Dirigir fazia sentido porque eu não tinha nenhum outro lugar para levar Roxie e nenhum voo direto para o pequeno aeroporto regional há 60 quilômetros de Hawk Valley. Se eu voasse, eu teria que ir a Portland, esperar por um voo em direção a Phoenix e depois alugar um carro para duas horas de viagem até a cidade. Ou eu poderia fazer um sacrifício e dirigir, evitando todo esse aborrecimento.

Sobre alugar algum quarto ou acomodação, eu descobriria quando chegasse lá. Não sabia quantos dias ficaria. Eu ficaria lá pelo menos até os funerais e até que eu soubesse sobre os cuidados do bebê.

Já na estrada descobri que não havia como escapar dos meus pensamentos, não importava quanto eu me esforçasse. Os quilômetros de estrada vazios me deram muito tempo para pensar. E muitas memórias para relembrar.

A última vez que falei com meu pai foi há 4 meses, no dia em que meu irmão Colin nasceu. Nós não conversávamos há muito tempo e também não tínhamos conversado desde então. Ele mandava fotos regularmente; fotos do bebê, fotos da Heather e do bebê, fotos deles três juntos como uma família perfeita e feliz. Talvez ele tivesse achado que todas essas fotos me motivariam a fazer uma viagem até aqui e conhecer meu irmãozinho. Eu pensei nisso. Mas Chris Ryan e eu éramos como óleo e água. Acreditava que, ficando longe, estava fazendo um favor à família dele.

Eu sabia como as coisas mudariam se eu fizesse uma viagem até Hawk Valley. Meu pai e eu inevitavelmente entraríamos em alguma briga estúpida ou continuaríamos nos velhos padrões competitivos. Heather ficaria desconfortável no meio da discussão, ainda que meu pai e eu já tivéssemos problemas antes dela chegar. E, de qualquer forma, o bebê era muito novo para conhecer a merda que eu era.

Por isso, invés de visitar e arrumar problemas, eu enviei à criança 500 dólares junto com um cartão piegas sobre felicidade, bênçãos e mais bobagens.

De qualquer maneira, eu tinha certeza que eu não tinha nada a oferecer a um irmão nessa altura. Nós estávamos separados por 25 anos de muito choro alto. Eu via homens da minha idade se tornando pais, por toda parte. Meu próprio pai tinha um filho no jardim de infância quando tinha a minha idade. Ele e minha mãe eram praticamente crianças quando se conheceram numa festa em Phoenix e meu pai começou a ir até lá todo final de semana só para vê-la. Tenho certeza que eles não me planejaram. Legalmente eles não podiam nem pedir uma bebida quando eu nasci. Eles também não tinham ficado juntos por muito tempo. Eu não me lembrava de Chris Ryan como um pai afetuoso. Ele podia ser bem severo. Algumas vezes ele disse coisas que descobri que seriam difíceis de perdoar. É verdade que ele amadureceu nos últimos anos, mas a distância entre nós era muito grande. Eu sabia que ele tinha visto Colin como a segunda chance dele, a chance de recomeçar e cuidar de uma criança do jeito certo. E eu não queria interferir nisso.

Em algum lugar no fundo da minha mente, eu achava que chegaria o dia em que teríamos outra chance. Talvez algum dia eu e ele poderíamos sentar na varanda da frente de sua velha casa com um par de cervejas e conversar como pais e filhos sempre fazem.

Algum dia.

Essa pílula de realidade era muito amarga para engolir agora. Eu não conseguiria digerir ainda.

A escuridão diminuiu quando eu finalmente deixei os limites de Hawk Valley. O lugar parecia o mesmo desde a última vez que o vi. Hawk Valley era uma cidade parada no tempo, mantendo um tipo esquisito de charme enquanto tentava manter os pequenos negócios acima da água. Os reais ciclos do crescimento e da recessão econômica de Phoenix não tinham chegado tão longe e os compradores de casas de férias tendiam a passar pela cidade e escolher as cabines nas montanhas. Tinha uma pequena faculdade na periferia da cidade, mas em geral Hawk Valley era mais um lugar de passagem que dependia dos turistas dos arredores gastarem seus trocados nas lojas de lembranças na Avenida Garder ou optarem por um almoço rápido nas cafeterias locais. As pessoas que viviam lá apenas adquiriam e mantinham guardado o que tinham.

Um acordo de guarda compartilhada significou que eu passaria os verões e férias aqui quando era criança. Depois do verão que completei 14 anos, eu me tornei cidadão permanente. Não foi uma escolha. Foi porque o pior pesadelo possível aconteceu. Mas essa era a última vez que gostaria de pensar nisso. A situação atual já era uma merda terrível o bastante para lidar sem pensar no passado.

As notícias estavam por todo lugar na rádio local. O fogo varreu as montanhas de Hawk. Duas vidas perdidas. O fogo estava completamente contido a esta altura. Ainda não havia nenhuma informação sobre como as chamas tinham começado, mas com ventos fortes e condições de seca não precisaria de muito. O céu abrir e o fogo estar sob controle era uma pausa de sorte para as equipes de emergência. Só que isso não aconteceu rápido suficiente para meu pai e sua esposa.

Noite passada, Jane estava muito desesperada para dar muitos detalhes. Enquanto eu estava parado no semáforo da Avenida Garner, tentei ligar para ela para avisar que cheguei. Estava preocupado com ela. Minha tia tinha um tipo de espírito muito frágil. Ela provavelmente não estava lidando muito bem com a morte do irmão.

― Alô?

― Jane, é o Nash. Estou na cidade.

― Nash! Ah meu Deus, isso tudo é tão péssimo e eu não consigo dizer como lamento. Jane está dormindo no meu quarto. Ela pediu para eu atender se você ligasse.

Eu estava confuso.

― Quem é você?

― Ah, desculpa. Kat Doyle.

O jeito prático que a mulher disse seu nome me fez pensar que deveria significar algo para mim. Procurei na minha memória, mas depois de 20 horas na estrada todas as conexões foram bagunçadas.

― Estou indo até a casa do meu pai. ― Eu disse, embora eu não soubesse o que esperar encontrar lá. Minha voz falhou na palavra 'pai'. Quando eu dizia em voz alta, não podia escapar da verdade de que eu não tinha mais ninguém. Chris Ryan, o cara que me ensinou como pegar uma bola e martelar um prego estava morto. Claro, ele tinha seus defeitos. Como todo mundo.

― Por que você não vem para a minha casa? ― Kat Doyle disse. ― Eu sei que tem muita coisa para ajeitar, mas não precisa fazer tudo hoje. Jane mal descansou, mas ela vai querer conversar com você. E Colin está aqui. Tenho certeza que vai querer vê-lo.

Eu digeri essa informação e pedi a Kat Doyle seu endereço. Eu não poderia começar a listar todas as coisas que eu precisava resolver. Jane não tinha condições de lidar com acordos do funeral. Não tinha ninguém do nosso lado da família que pudesse tomar as rédeas e eu sabia que Heather não tinha muita família próxima. Mas tudo isso poderia esperar mais algumas horas. A mulher que falava no telefone da minha tia estava certa. Eu queria ter certeza que meu irmão estava bem.

Kat Doyle vivia num duplex entre duas casas onde alguma companhia de mineração tinha construído acomodações para seus empregados uns 80 anos atrás. As minas, que ficavam há 16 quilômetros, tinham sido fechadas desde a administração de Regan e, à primeira vista, a maioria desses restos de casas pareciam projetos primários desses programas idiotas de renovação de casas.

A mulher que atendeu a porta tinha um longo cabelo avermelhado que enrolava no meio da cintura, um rosto vagamente familiar e um corpo que nem sua camiseta sem forma e sua calça de pijama de flanela poderiam esconder. Claro que eu me senti um idiota por reparar no corpo dela nessas circunstâncias, mas algumas coisas são difíceis.

― Nash. ― Ela disse e seus olhos verdes estavam cheios de calor e simpatia.

― Kat? ― Perguntei. Ela concordou.

― Você deve se lembrar que eu morava três casas depois da sua. Mas eu era uns anos mais nova.

Alguma coisa se conectou. Eu reconectei a garota magra do cabelo vermelho de corte jovial com boné, que sempre usava largas camisetas de bandas de rock clássico. Kathleen Doyle era muito bem conhecida não pelo seu estilo ou pelas escolhas de guardaroupa, mas porque ela era uma lenda local, um gênio que ganhou todos os prêmios acadêmicos já inventados pelo Distrito de Escolas Unificadas de Hawk Valley e geralmente fazia alguém passar vergonha. Ela também costumava me seguir por todo canto, mesmo que eu nunca a tivesse conhecido.

― Kathleen. ― Eu disse. ― Agora eu lembro de você.

Um sorriso satisfeito se acendeu em seus lábios e depois apagou rapidamente. De repente os olhos dela se encheram de lágrimas.

― Heather era minha prima. ― Ela disse. ― Eu sinto muito, Nash. Ainda estamos todos em choque.

Do lado de fora da porta de Kathleen, eu poderia sentir o cheiro de fumaça no ar. Estava por toda parte. Nunca mais eu conseguiria acender uma fogueira sem querer vomitar.

Roxie colocou a cabeça para fora da janela da caminhonete e latiu uma vez, apenas para me lembrar que ela ainda estava lá.

― Calma. ― Falei e ela gemeu, mas sentou no banco.

― Você trouxe sua cachorra? ― Kathleen perguntou, parecendo confusa.

― Sim. Vim dirigindo e não sabia quando voltaria para Oregon.

Ela pareceu ponderar sobre isso e me lançou um olhar de avaliação que eu não conseguiria interpretar. Estalei meus dedos na direção da caminhonete.

― Roxie, fica. ― Voltei para Kathleen. ― Não se preocupe com ela. Ela foi bem treinada e a janela está aberta. Ela vai ficar bem.

A cozinha de Kathleen Doyle parecia sair da cápsula do tempo de 1983. Mas, exceto por algumas louças na pia, tudo estava limpo e em ordem.

― Café? ― Ela ofereceu.

― Não, obrigada. Não sou um fã de cafeína.

Ela serviu uma xícara mesmo assim, provavelmente para si mesma.

― Eu sou uma grande fã. ― Ela disse. ― Não sei como conseguiria passar por um dia de outra maneira. ― Ela abaixou a xícara. ― Quer que eu acorde a Jane? Ela está dormindo no meu quarto. Ela tomou um sedativo forte para se acalmar e Kevin Reston, namorado dela, não queria que ela ficasse sozinha já que ele foi cuidar dos assuntos do departamento de incêndio.

Kathleen parou para tomar um gole do café. Ela se apoiou no balcão da cozinha, nos seus pés descalços e pijamas, e me observou. De novo eu senti que seus olhos verdes faziam uma rápida avaliação.

Eu me apoiei na parede mais próxima e a observei de volta. Agora que eu estava em Hawk Valley, a realidade estava começando a me invadir. Meu pai e sua esposa estavam mortos. Meu irmãozinho estava órfão. Eu ainda não tinha chorado, mas, pelo jeito triste com que essa garota me olhava, ela sabia que eu queria muito. O incêndio tinha sido um ato furioso da natureza, então não tinha quem culpar, mas eu queria gritar e quebrar alguma coisa com minhas mãos. E mesmo que eu não tivesse derramado nenhuma lágrima, eu poderia facilmente me afundar no chão e chorar até o sol nascer de novo. Mas eu não faria nada disso na cozinha da Kathleen Doyle.

― Tem certeza que não quer café? ― Ela perguntou. ― Ou talvez um lanche? Eu poderia preparar algo se estiver com fome.

― Estou bem. ― Eu disse.

Na verdade, a exaustão estava me atingindo. Eu não tinha dormido na última noite e depois passei 20 horas na estrada pensando em arrependimentos, perda, a época que meu ratinho de estimação morreu quando eu tinha 5 anos e meu pai fez um caixão com caixa de cigarro para ele, cavando um buraco e realizando um funeral muito sincero no quintal.

― Quer vê-lo? ― Kathleen perguntou.

― Vê-lo?

A ideia era aterrorizante. Todo o dia eu afastei a minha mente para não imaginar ecos dos últimos gritos e visões de corpos queimados. Fazia sentido que os restos mortais tenham sido recuperados e trazidos para a cidade. Ver sangue nunca me incomodou, pelo menos não quando era meu. Mas eu sabia que me quebraria olhar o que sobrou do meu pai.

― Ele está dormindo no berço. ― Kathleen disse. ― Mas você pode dar uma olhada.

Respirei, aliviado.

― Você está falando do Colin.

― Sim. ― Ela inclinou a cabeça. ― Claro que estou falando do Colin.

Kathleen abaixou a xícara e fez sinal para que eu a seguisse. A cozinha era junta com a sala de estar, e depois a pequena entrada dá para dois quartos. Kat me levou para o menor e eu pestanejei, tentando ajustar meus olhos cansados à luz fraca. Tinha uma cama pequena ocupada por uma criança. Eu não fazia ideia da idade, mas percebi que era uma menina. Kathleen tocou o rosto da criança que estava dormindo e depois foi até o pequeno berço no canto.

Ele dormia de bruços com os punhos debaixo da cabeça. Não acendemos a luz, mas algo na nossa presença o incomodou, porque ele franziu o rosto e soltou um suspiro alto como se fosse um animal pequeno sentindo dor. Depois seu rosto relaxou e ele respirou normalmente, voltando para o sono tranquilo. Algo intenso e estranho se revirou no meu peito enquanto eu o observava e me vi desejando ter vindo assim que ele nasceu. Meu pai achou que eu deveria. Ele pediu, até ofereceu para pagar a passagem de avião mesmo que eu não precisasse de dinheiro. Eu só precisava deixar uns velhos rancores de lado. E agora que eu finalmente estava aqui, era tarde demais.

― Você pode pegá-lo. ― Kathleen sussurrou.

Eu me estiquei para tocar a bochecha do bebê e depois recuei.

― Deixe-o dormir. ― Eu disse.

Kathleen colocou o cobertor de algodão em volta do corpo de Colin e eu dei uma última olhada antes de segui-la para fora do quarto. Ela fechou a porta gentilmente e sentou no sofá da sala de estar. Como não tinha outro lugar para sentar, eu fiquei perto dela.

― Ele é um bom bebê. ― Ela disse e eu percebi que os olhos dela estavam marejados de novo. ― Eles o adoravam, Heather e Chris. Heather estava tão feliz por finalmente ser mãe. Eles estavam tentando ter um bebê desde que se casaram, você sabe.

Eu tossi uma vez e me mexi.

― Não, eu não sabia. ― Meu pai e eu não conversávamos sobre muitas coisas, isso quando nos falávamos. Por muitas razões.

Algumas tinham a ver com Heather. O resto tinha a ver com nós dois.

Kathleen suspirou e apoiou a cabeça no sofá.

― Hoje Jane recebeu uma ligação da Funerária do Brach que fica na Rua Hart. Eles estão tomando conta dos preparativos sem qualquer instrução da família. Ela deve ir lá amanhã conversar com eles.

― Eu vou resolver isso. ― Eu disse. Uma dor de cabeça maldita estava surgindo. Apertei o espaço entre as sobrancelhas.

― Quer uma aspirina?

― Sim, por favor.

Kathleen voltou com um par de aspirinas e água. Ignorei a água e engoli as pílulas em seco.

Ela sentou novamente e apontou para a mão enfaixada.

― O que aconteceu?

Eu tinha esquecido do cara no beco. Parecia um incidente que tinha acontecido 3 anos atrás em vez da noite passada.

― Raspei meus dedos no concreto trocando um pneu furado. ― Eu disse. Eu era um mentiroso de merda. Isso não era fácil para mim.

Ela não acreditou em mim. Eu notei. Tinha algo na mudança do olhar dela que indicou que ela sabia que eu era um merda. Mas ela era educada o bastante para mudar de assunto.

― Há quanto tempo, Nash? ― Ela perguntou. ― Há quanto tempo desde a última vez que veio? Uns 5 anos?

― Algo assim. ― Eu disse, me perguntando o quanto ela sabia sobre a última briga que tive com meu pai. Foi há 5 anos e, desde então, nossas conversas tinham sido bem cuidadosas. Mas eu me lembro muito bem da última noite. Coisas terríveis foram ditas.

― Vá em frente. Case com ela. Não dou a mínima. Acabou!

Brigas como essa podem relaxar ou destruir tudo. Normalmente a última.

Eu me perguntava o quanto essa mulher sentada no sofá perto de mim sabia. Afinal, ela era prima da Heather e se Heather confiava em Kathleen para cuidar de seu filho, então ela confiaria em contar seus segredos a Kathleen. Quando nossos olhos se encontraram, vi algo neles me dizendo que ela sabia de tudo.

― Nash, achei que tivesse ouvido sua voz.

Levantei os olhos para ver Jane se juntando a nós. Ela estava com os olhos vesgos e o rosto amassado e parecia que ela estava segurando no quadro da sala para ter apoio. Saí de perto do sofá e embalei seu corpo magro assim que ela começou a chorar.

Estava tarde e ninguém tinha condições de discutir algo sério, muito menos Jane. Kathleen ofereceu estadia para eu e minha cachorra de 30 quilos no seu pequeno apartamento, no entanto eu recusei. De qualquer maneira, estava feliz em aceitar a oferta de manter Colin aqui por um tempo. Eu tinha decidido encontrar um hotel que aceitasse animais de estimação em algum lugar na rodovia, mas Kathleen providenciou a chave da casa do meu pai e sugeriu que eu ficasse lá. Era óbvio que ela tinha tomado conta das coisas temporariamente, mas eu não estava em posição de discutir.

― Eles finalizaram a obra. ― Ela disse. ― E tem muitos quartos.

― Eu sei. ― Eu disse a ela. Eu vivi nessa casa. Por anos era uma monstruosidade vitoriana que meu avô nunca pensou em restaurar, até que ele entrou para um clube de golfe em Scottdale. Passou a ser um projeto do meu pai, sempre cheio de materiais de construção e quartos inacabados. Parece que ele finalmente terminou o trabalho.

Jane não estava atenta o bastante para dirigir, mas ela insistiu em ir para casa, aí ofereci para levá-la.

― Que cachorra linda! ― Ela disse, se apresentando a Roxie, que estava feliz pela atenção de uma pessoa nova que ela arfava no assento entre nós.

Jane morava com seu namorado numa cabana charmosa há 3 blocos de distância do centro da cidade. Ela parecia no mundo da lua acariciando Roxie, mas era compreensível. As últimas 24 horas foram um inferno para ela. Jane ainda era criança quando eu nasci e, mesmo que ela estivesse nos seus 30 anos agora, ela ainda tinha a vulnerabilidade de uma garotinha. Espero que a morte de seu único e amado irmão não seja o catalisador do seu limite. Pelo que eu sabia, ela esteve bem nos últimos anos.

O namorado da Jane veio me cumprimentar quando a deixei. Kevin Reston ainda estava vestindo o uniforme do Departamento de Incêndio de Hawk Valley e a exaustão desenhada em seu rosto, mas ele sacudiu minha mão e desajeitadamente ofereceu seus pêsames antes de se virar para a minha tia.

Eu esperei até fecharem a porta e fiz a única coisa que me restava. Fui para casa.

A casa estava escura. Quando eu pisei na varanda da frente, chutei um objeto acidentalmente. Era macio e logo percebi que havia mais. Flores. Por toda a varanda. Eu poderia adivinhar que o cartaz perto da porta. As desajeitadas letras de mão que diziam "Chris e Heather, nós amamos vocês. "

Foi comovente, mas não inesperado. Hawk Valley se orgulhava de ser uma cidade pequena e minha família era bem conhecida aqui. As mortes trágicas de dois alicerces da comunidade deixara todo mundo em sofrimento.

Roxie cheirava as flores enquanto eu me atrapalhava com a chave que a Kathleen me deu. As dobradiças rugiram quando eu abri a porta. Imediatamente fui transportado para a minha infância quando respirei o aroma de madeira velha e um mofo que nunca desapareceu. Era o cheiro de anos, vidas e gerações. Mas, por ora, eu só o sentia como o cheiro da tristeza.

Procurei o interruptor perto da porta e a primeira coisa que notei foi que o lugar parecia muito diferente do que era há 5 anos. A estrutura ainda era a mesma, mas agora decorado com a mobília antiga e detalhes de bom gosto. A pintura estava mais brilhante, a iluminação foi reforçada e por todo canto tinha fotos que antes estavam cobertas.

Eu parei em uma foto dos três: meu pai, Heather e o bebê. Provavelmente foi tirada depois que Colin nasceu. Eu recebi umas fotos dele usando a mesma roupa azul de marinheiro, mas apenas ele nas fotos. Eu nunca recebi essa foto dos três.

Roxie passava seu nariz pelo chão discretamente, farejando todo canto. Seu rabo estava para baixo, como se ela soubesse que era um momento triste. Depois de alguns minutos, ela se ajeitou num tapete trançado e eu não conseguia tirar meus olhos do retrato de uma família feliz que tinha sido destruída. O casal sorridente com seu bebezinho não fazia ideia do que o destino tinha guardado.

Tinha mais acinzentado no cabelo do meu pai do que eu me lembrava. Linhas mais profundas ao redor dos olhos. E Heather estava linda, seu cabelo cor de mel arrumado num coque. O braço do meu pai estava apoiado no ombro dela de forma protetora e ela segurava com cuidado o filho que nunca teria lembrança deles. Para Colin, Heather e Chris Ryan seriam apenas pessoas em fotos e histórias.

Não conseguiria me acostumar à ideia. Nada nessa porra era justo. Depois que minha mãe morreu, eu não conseguia fazer nada além de chorar nos dias seguintes. Dessa vez eu não tinha derramado uma lágrima.

Mas agora eu me afundava no chão da casa vazia do meu pai, finalmente desatando a chorar e soluçar até o peito doer

            
            

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