Desperto-me sobressaltado em um aposento de grande luxo, e, ao lançar meu olhar ao lado, avisto a mais formosa donzela que meus olhos já tiveram o privilégio de contemplar. Seus cabelos castanhos, dispostos em desalinho gracioso, com madeixas que caíam pela fronte, pareciam traçar as delicadas linhas de seu semblante, tão perfeitamente esculpido que parecia obra de anjos. Seus olhos, grandes e cintilantes, reluziam qual pedras preciosas – esmeraldas emolduradas por longos cílios negros que os tornavam ainda mais profundos. Sua pele alva, tão alva quanto a mais fina porcelana, tinha um leve rubor nas faces, como se houvesse sido beijada pela aurora. Os lábios, fartos e primorosamente delineados, eram de um vermelho suave, qual pétalas de rosas recém-colhidas, e, ao curvarem-se em um leve sorriso, emanavam uma serenidade celestial. O nariz, delicado e proporcional, dava um equilíbrio harmonioso à sua face, enquanto as sobrancelhas arqueadas conferiam-lhe um ar de nobreza. Seu pescoço, longo e gracioso, lembrava o de um cisne, sustentava uma postura digna de uma rainha.
Em suas mãos, que pareciam moldadas em alabastro pela própria natureza, segurava um livro de capa ricamente adornada com fios dourados, cujo peso parecia leve em seus dedos longos e esguios. As páginas, levemente amareladas, eram delicadamente folheadas enquanto ela lia com atenção. Sua expressão serena, com os olhos fixos nas palavras, conferia-lhe um ar de sabedoria e graça, como se estivesse imersa em segredos antigos e histórias celestiais.
Por minha fé, julguei-me ter deixado este mundo, pois diante de mim se encontrava, sem dúvida, um anjo celestial, descido dos céus para me acompanhar.
-Não posso crer... Encontro-me no céu? – falo.
- Acalmai-vos, monsieur, e repousai. Fostes encontrado ferido, à deriva, e estivestes desacordado por algumas horas.
Ela falava com uma calma que me parecia quase etérea, como se estivesse falando de algo distante e sereno. Olhei para ela, confuso, e sem conseguir conter a minha reação, falei com a voz rouca.
- Pensei que tivesse perecido... confundi-vos com um anjo.
O sorriso dela, suave e inesperado, fez com que o quarto, antes sombrio, se iluminasse. Sua expressão me pegou de surpresa, e senti minhas bochechas queimarem de vergonha. Era como se o próprio sol tivesse se refletido nela.
- Eu... não, monsieur, sou apenas Anne Wall. Nada mais que uma jovem comum.
Ela desviou o olhar timidamente, o rosto corando ligeiramente. Eu não pude deixar de sorrir diante de sua modestia.
- Anne Wall, me parece que vós sois uma mulher de grande coração. Eu sou Henry Karahan, e é uma honra conhecer-vos.
Ela fez uma pequena reverência, com uma graça que só aumentava minha admiração.
- O prazer é meu, monsieur Karahan.
O som suave da sua voz parecia ecoar em minha mente, e, por um momento, a dor e o desconforto desapareceram. Eu não sabia o que o destino me reservava, mas sabia que, naquele instante, algo profundamente significativo havia começado.
Após devidamente apresentados, ela se retirou discretamente do aposento, com a intenção de buscar meu repasto. Meus pensamentos se tornam então, uma névoa densa enquanto observo sua silhueta desaparecer pela porta.
Não posso crer que o destino me tenha conduzido até ela, uma jovem tão gentil, tão pura. Como poderia eu causar-lhe algum mal?
Mas, enquanto divago em meus pensamentos, não percebo o momento em que ela retorna, trazendo consigo uma grande bandeja coberta por um pano branco, que reluz à luz suave das velas.
Após Anne colocar a bandeja sobre a pequena mesa, ajustando-a de maneira cuidadosa, e ao me sentar para saborear o prato, o silêncio que se segue é quebrado apenas pelo som suave de talheres tocando o prato. Com os olhos voltados para ela, começo a refeição, sentindo o sabor reconfortante do caldo de legumes.
- Hmmm... realmente está delicioso, senhorita Wall. - digo, dando outra colherada, o calor do caldo se espalhando pelo meu corpo cansado. - Nunca provei algo tão simples, mas ao mesmo tempo tão cheio de sabor. O que mais há neste caldo?
- Ah, ele leva cebola, cenoura, alho-poró... e um toque especial de ervas frescas que colhi ontem. Não sei se o senhor gosta, mas costumo usar um pouco de tomilho. - ela responde, com um sorriso tímido, parecendo observar atentamente cada reação minha.
- O tomilho é uma escolha excelente, realmente faz toda a diferença. - digo, sorrindo para ela e tomando outra colherada, sentindo o sabor se aprofundar a cada vez que provo. O silêncio se instala por um momento enquanto eu me concentro na comida, mas logo volto a falar, tentando puxar conversa. - A senhorita sabe, o que mais me impressiona é que, apesar de tudo, o prato tem um toque... quase como se tivesse sido preparado com um cuidado único. Como se cada ingrediente tivesse sido colocado ali com uma intenção. - digo, deixando escapar uma leve risada. - Não consigo explicar, mas é como se o prato tivesse vida própria.
Ela sorri levemente, visivelmente lisonjeada.
- Fico feliz que o senhor perceba isso. Para mim, cozinhar é mais do que preparar comida. É uma forma de carinho. Cada prato carrega algo de mim. - ela diz com um brilho suave nos olhos, o que me faz imaginar se a cozinha não é, de fato, o seu refúgio, onde ela coloca todas as suas emoções.
- Vejo que a senhorita tem uma relação muito especial com o que prepara. - comento, mais pensativo. - De fato, algo tão simples quanto uma sopa pode se tornar uma verdadeira obra de arte nas mãos de quem tem esse cuidado.
Ela cora levemente, mas sua expressão de contentamento é visível. Então, olho para a bandeja, onde os pães ainda repousam, e decido provar um pedaço.
- E estes pães, são feitos por você também? - pergunto, quebrando um pedaço macio e o levando à boca. O sabor fresco e a textura leve fazem-me inclinar a cabeça em sinal de aprovação.
- Sim, os pães são uma receita que aprendi com Anastasia. São simples, mas sempre me lembram de tempos felizes. O pão é como um abraço acolhedor, não acha? - ela responde, com uma leve melancolia na voz.
- Com certeza. - digo, dando um sorriso e olhando para ela com mais atenção. - Lembrei-me de minha mãe enquanto saboreava o pão. Ela também costumava fazer pães com muito amor, é um prazer reviver essas lembranças.
- Fico grata que o senhor tenha boas lembranças dela. - Anne responde, com a voz mais suave, e vejo um leve toque de empatia em seu olhar.
- Agora, acho que chegou a hora de experimentar este tal de Éclair. - sorrio, levantando o doce para meu rosto, a tentação agora visível aos meus olhos.
Ela observa, com expectativa, seu olhar fixo em mim enquanto me preparo para dar a primeira mordida. Ao sentir o sabor doce e suave do doce de leite com o chocolate amargo, minha expressão se ilumina.
- Senhorita Wall, me surpreendeste novamente. Esta sobremesa... - faço uma pausa, saboreando cada pedaço com prazer. - É, sem dúvida, a melhor sobremesa que já provei. A textura da massa, a suavidade do creme, o toque do chocolate... tudo combina de maneira sublime.
Ela sorri, visivelmente satisfeita com o elogio, e o brilho em seus olhos é como o de uma criança que vê seu trabalho ser apreciado.
- Fico feliz que goste. Eu sempre tento caprichar no doce, acho que ele é a parte mais importante de qualquer refeição. O que é o fim da jornada senão o melhor pedaço? - ela diz, com um toque de humor em sua voz.
- Sim, é como o último verso de um poema, aquele que deixa uma marca na alma. - respondo, sorrindo com ela, sentindo que as palavras são mais do que uma troca comum, mas uma conexão que se forma.
Após alguns minutos de silêncio, enquanto devoro o Éclair e o calor da refeição se espalha pelo meu corpo, volto a falar.
- Não posso deixar de pensar... como aprendeu tudo isso? Essas receitas parecem ter vindo de uma época distante, com uma sabedoria que só o tempo pode oferecer. - questiono, curioso.
- Quando era criança, passei muito tempo com minha avó. Ela era uma mulher incrível, sabia tudo sobre os temperos e truques da cozinha. Quando ela estava perto, tudo parecia mais... real. - responde Anne, e seus olhos se perdem por um momento, como se estivesse revivendo a memória de tempos passados. - Aprendi com ela que cozinhar é uma arte que nunca se aprende totalmente. Sempre há algo novo a se aprender, algo novo a descobrir. Depois que ela se fora Anastasia preencheu o vazio que ela deixou.
- É um dom raro, senhorita. - digo, com sinceridade. - Muitas pessoas cozinham para sustentar seus corpos, mas poucas cozinham com o coração. E isso, posso ver claramente, é o que faz a verdadeira diferença.
- Talvez seja por isso que me encanta ver a satisfação nas pessoas que experimentam o que faço. Quando alguém saboreia uma refeição e sente que ela não é só comida, mas uma experiência... acho que é isso que faz o coração da cozinha bater. - diz ela, com um sorriso leve.
Enquanto ela falava, terminei a última mordida do Éclair, a sensação de bem-estar preenchendo meu ser, e com um suspiro, me reclinei contra a cabeceira da cama.
- Agora, senhorita Wall, com tudo isso, devo admitir que, além de ser uma dama de grande compaixão e habilidade, tens o poder de fazer um homem sentir-se em casa, mesmo nas mais difíceis jornadas. - digo, com um olhar sincero, sentindo uma verdadeira admiração por ela.
Ela sorri suavemente, seus olhos se suavizando.
- É o que espero, Mounsieur Karahan. Que qualquer que seja a sua jornada, ela seja acompanhada de momentos de alívio e carinho, ao menos por um tempo. - ela diz, com voz tranquila, mas que transmite muito mais do que palavras.
De repente, um silêncio confortável cai sobre nós, e o som da refeição compartilhada parece ser a música que preenche o espaço entre nós.
– Rogo-vos, senhorita, que me chameis apenas de Henry.
Ela, com a postura altiva, hesitou antes de responder.
– Foi-me um prazer servir-vos. Contudo, não sei se seria próprio tratá-lo assim, Mounsieur... – começou a dizer com o semblante sério e os olhos baixos.
Antes que prosseguisse, ergui minha mão, interrompendo-a.
– Quando estivermos a sós, que dizeis disso?
Por um breve instante, ela hesitou, fitando-me com uma mistura de surpresa e indecisão. Então, respirou fundo e cedeu, embora com um leve sorriso nos lábios.
– Assim seja, Henry. E vós, chamai-me apenas Anne, sob as mesmas condições.
Assenti em concordância, sentindo um calor estranho me tomando ao ouvir meu nome dito por ela de forma tão informal.
Ela, então, começou a recolher a bandeja vazia com gestos metódicos e graciosos, tão silenciosos quanto a brisa da noite. Foi quando passos firmes ecoaram pelo corredor, interrompendo o momento.
Logo, um homem alto e robusto surgiu à porta. Sua presença enchia o aposento, e os cabelos grisalhos, bem penteados, sugeriam autoridade e experiência. Vestia-se com a sobriedade de quem liderava, mas seus olhos atentos vasculhavam o ambiente, como os de um estrategista.
– Boa noite, filha minha. Está tudo em ordem? - indagou ele, dirigindo-se à senhorita Anne.
Ela respondeu com um aceno respeitoso e voltou a atenção para a bandeja.
O homem, então, pousou os olhos sobre mim, estudando-me com discrição.
– Boa noite, bom senhor. Nomeio-me Oliver Wall. – disse, estendendo a mão com firmeza.
– Boa noite, senhor Wall, é um prazer conhecê-lo. Sou Henry Karahan e agradeço profundamente por vossa hospitalidade. – repliquei, apertando sua mão com igual firmeza, percebendo o vigor em seu aperto, apesar da idade.
– Concedei-me licença, meus senhores. – Ela faz uma breve pausa, e Oliver a contempla; – Retiro-me a meus aposentos, meu pai. Se de algo precisardes, lá estarei. Estimo-vos uma boa noite. – disse ela, com um leve aceno, antes de deixar o aposento com a graça natural que lhe era peculiar.
– Mestre Karahan, - Oliver volta-se para mim novamente; -sei que deveis estar fatigado após vossa provação no mar, mas preciso vos interrogar, não como vosso anfitrião, mas como Chefe da Guarda Real.
Hesitei por um instante, mas mantive a compostura.
– Pois bem, senhor. Estou à disposição.
– Foi o naufrágio acaso ou obra de algum ataque?
O som das ondas e o caos do confronto voltaram a mim como um golpe. Meu rosto permaneceu inalterado, mas dentro de mim, as imagens do desastre rodopiavam como uma tempestade.
– Fomos atacados, senhor. O céu estava encoberto e o vento rugia com fúria. Um navio surgiu no horizonte, uma sombra negra que logo se revelou um corsário armado até os dentes.
Oliver inclinou-se para frente, intrigado.
– Eles vieram rápidos, senhor. O primeiro tiro atingiu o casco antes mesmo que conseguíssemos avistá-los plenamente. A tripulação correu em desespero, gritos ecoavam pelo convés enquanto o capitão tentava organizar alguma defesa. Mas não havia tempo...
– Não conseguiste ver a insígnia do navio? Nenhuma marca que os identifique? - indagou ele.
Balancei a cabeça, fingindo pesar.
– Não, senhor. A bandeira deles era negra, mas creio que a brisa arrancou qualquer marcação antes que pudesse ser vista. O segundo tiro atingiu nosso mastro principal, e logo o barco começou a afundar. Pulei na água antes que fosse arrastado para as profundezas.
Minha voz tremeu levemente, uma reação que, felizmente, poderia ser atribuída ao trauma. Oliver me fitou por um longo momento, como se avaliasse a verdade em cada palavra.
– Isso é lamentável. Corsários têm atormentado nossas águas, mas vossa história é uma de muitas. Levarei tais informações ao Palácio. Se vos recordardes de algum detalhe que nos ajude a caçá-los, não hesiteis em me informar. - ordenou ele.
– Sim, senhor.
Após um breve silêncio, a tensão ainda pairava no ar, eu me sentia cada vez mais incomodado pela quietude da conversa e pela crescente ansiedade em minha mente. Decidi, então, romper o silêncio.
– Senhor Wall, antes que retireis vossa presença, gostaria de saber se posso ser de alguma utilidade em mais alguma questão, por mais pequena que seja. Tendo em vista os eventos que presenciei, talvez possa ajudar de alguma forma.
Oliver, surpreso pela oferta, manteve sua expressão impassível por um momento, avaliando-me com os olhos penetrantes de um homem que raramente se deixa enganar. Sua postura não mudou, mas sua voz, embora grave, revelou um toque de consideração.
– Uma oferta gentil, Mounsieur Karahan. Porém, não sei ao certo como vos poderia utilizar neste momento. Toda informação sobre o naufrágio já foi dada, e os corsários... Bem, nossa guarda está em alerta. Mas... – Ele hesitou por um instante, e, de forma quase imperceptível, suavizou o tom. – Como vos sentis após tudo o que aconteceu? Após o naufrágio?
Eu fiquei em silêncio por um momento, a pergunta me pegara desprevenido. Sentir... Uma palavra simples, mas que, naquele instante, parecia carregar um peso imenso. A dor física, o caos, a destruição, tudo isso eu conseguia processar. Mas sentir... Isso era algo que eu raramente me permitia fazer.
Eu, um homem acostumado a encarar tempestades, batalhas e mortes sem pestanejar, agora me via diante de um campo desconhecido. O que dizer a ele? Como seria uma resposta adequada?
– Fico grato por vosso cuidado, senhor Wall, mas sou um homem acostumado à tempestade. A dor do naufrágio, embora severa, é algo que deixei para trás nas águas turvas. No entanto, confesso que o mar ... – Fiz uma pausa, buscando as palavras para que não soassem vazias. – O mar tem uma forma peculiar de deixar cicatrizes.
Notei que ele observava cada palavra minha com uma atenção mais profunda, como se tentasse entender o que estava por trás de meu olhar. Não consegui ocultar por completo a luta interna que se desenrolava dentro de mim, mas procurei manter a compostura.
Oliver, ao que parecia, notou isso, mas ao invés de pressionar, falou com um tom mais suave, talvez até mais humano do que eu esperava.
- O naufrágio... bem, é um evento que poucos sobreviveriam sem deixar marcas, tanto no corpo quanto na alma. Muitos homens que atravessam o mar nunca mais voltam a ser os mesmos. – Ele me fitou por um momento, com um olhar que demonstrava uma compreensão que eu não esperava de um homem tão imponente. – Se precisar de algo mais, qualquer coisa, não hesite em me procurar.
Eu apenas inclinei a cabeça em agradecimento, um gesto mecânico, como se tentar reconhecer a sinceridade de suas palavras fosse algo difícil para mim.
- Ah, sim, com toda esta melancolia, já ia deixando passar... amanhã, celebrar-se-á o grandioso baile de noivado de minha filha, e vós sois o nosso convidado de honra. Para vosso conforto e bem-estar, enviarei um pajem, que, com diligência e grande zelo vos conduzirá.
- Agradeço profundamente, senhor Wall. Será uma honra partilhar de tão auspicioso momento.
Quando ele se retirou do aposento, eu fiquei ali, sozinho com meus pensamentos.
Quando ele se retirou, o peso das mentiras que eu havia contado parecia maior do que nunca. Recostei-me na cabeceira do leito, o som das ondas e dos canhões ainda ecoando em minha mente.
Marcas... Ele está certo. O mar, o naufrágio, a perda... Não importa o quanto eu tente esconder, tudo isso fica em algum lugar. O pior é que eu não sei se consigo deixar essas marcas para trás. Tudo o que faço é seguir em frente, mas a verdade é que, cada vez mais, fico me perguntando se estou realmente escapando disso, ou se estou apenas esperando o momento certo para afundar de vez.
Lá fora, o vento rugia, como se zombasse de meus pensamentos, enquanto a vela lançava sombras que dançavam nas paredes.
Oh, quão mentiroso me tornei...
Contudo, se souberem que sou um pirata e não apenas uma pobre vítima, não darei outro passo além dos portões de Marselha. Preciso correr e cumprir o destino que me foi imposto.
Quanto à donzela Anne... como ela reagirá ao ver a cruel face da verdade?
O peso da dúvida me consome, e temo que o desvelo que ela tem por mim se desfaça como névoa ao primeiro raiar do sol.