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O céu estava cinza quando Nicholas desceu do avião. Carregava uma mochila nas costas e no peito, um peso que ainda não sabia nomear. O que sabia era que Arturo, seu irmão mais velho, havia sido encontrado morto dentro do carro, estacionado de forma milimetricamente "acidental" numa ponte isolada da cidade. Um tiro na cabeça. A arma em sua mão direita. Tudo sugeria um suicídio - tudo limpo demais para convencer alguém que conhecia Arturo de verdade.
A polícia havia dado início ao inquérito, mas poucos dias depois o caso estava praticamente pronto para ser arquivado. "Sem indícios de terceiros", dizia o relatório preliminar. "Sem registros de movimentação suspeita nas imediações." Mas Nicholas não era do tipo que aceitava respostas mal embrulhadas.
A cidade parecia a mesma de antes, mas agora tudo nela soava falso, como um cenário que escondia suas sombras atrás de postes e sorrisos educados. Ele não estava ali apenas para velório. Estava ali para descobrir. E, se necessário, para vingar.
Na delegacia, os olhos dela foram a primeira coisa que notou. Valéria Montenegro.
Ela não se levantou quando ele entrou. Estava encostada contra a parede de uma sala secundária, observando um mural de fotos e relatórios, como quem tenta montar um quebra-cabeça cujas peças não querem se encaixar. Tinha o cabelo castanho escuro, longo, preso num coque improvisado. Mesmo distraída, exalava autoridade. Seus olhos castanhos claros percorriam o mural com uma atenção cirúrgica.
Nicholas se aproximou. E, por um instante, ela desviou o olhar para ele.
Ali houve um breve silêncio. Ela não apertou a mão de imediato. Avaliou. Viu um homem alto, loiro, com cabelos claros que pareciam de anjo - e olhos azuis da cor do mar em dia de tempestade contida. Quase perdeu o ritmo do raciocínio por um segundo. Mas não demonstrou. Sua mente foi rápida, prática: bonito demais para ser só luto. Frio demais para ser só dor. Esse homem vai causar problemas - pensou.
- Sim, sou irmão do Arturo. Prazer.
Sou Nicholas... Nicholas Ferrazzi - disse com voz firme, estendendo a mão.
- Estava em Londres quando recebi a notícia. Foi meu amigo quem me avisou... pelas redes sociais.
- Eu não consegui voo direto para o México de imediato. Estava terminando as provas finais do meu mestrado em Direito.
Valéria desviou os olhos dele e voltou a encarar o mural. Ele notou que ela estava olhando, mais uma vez, as fotos da cena do crime. As mesmas que, segundo o sistema da polícia, já deveriam estar arquivadas.
Então ela o encarou de novo - agora com um ar mais analítico.
- Eu achei que você fosse demorar mais a aparecer - disse ela, enfim, apertando sua mão com força controlada.
- Mas chegou a tempo.
- A tempo do quê? - ele perguntou.
- De fazer perguntas demais.
Ela girou sobre os calcanhares e fez um gesto breve com a cabeça.
- Vamos para minha sala.
O corredor da delegacia estava silencioso naquele horário. Ao entrarem na sala de Valéria, Nicholas notou que ela mantinha as paredes nuas, exceto por uma estante repleta de pastas e um quadro branco repleto de anotações com letras pequenas e precisas.
Ela o convidou a sentar com um gesto leve. Ele percebeu que a postura dela mudou sutilmente - menos policial, mais cuidadosa. Estava o analisando, sim. Suas palavras, seus gestos, suas pausas.
Ela havia começado a investigá-lo - ainda que delicadamente, sem que ele soubesse.
- O Arturo tinha falado algo estranho nas últimas semanas? - ela perguntou, enquanto abria uma pasta sem encará-lo.
- Estava animado com o casamento. Falava muito da Michelle, da nova fase... Mas também tinha dito que estava incomodado com "coisas que não podia comentar por telefone".
- Eu achei que era só estresse.
Valéria fez um risco rápido no bloco de notas.
- Você tem contato com os amigos dele? Com a noiva?
- Ainda não. Mas pretendo.
- Quero entender o que estava acontecendo ao redor dele. A rotina, o trabalho, as pessoas.
Ela assentiu com leveza. Mas por dentro, estava mapeando cada informação.
Nicholas Ferrazzi era articulado. Demais para um irmão apenas de luto. E Valéria Montenegro, acostumada com máscaras e farsas, sabia reconhecer quando alguém estava ali por mais do que dor.
Ainda assim, havia algo nele que a desconcertava. Uma energia contida, perigosa.
Mas irresistivelmente magnética.
- Se você realmente quer saber o que aconteceu com seu irmão - disse ela, fechando a pasta e cruzando os braços - vai ter que se acostumar com coisas que preferiria não descobrir.
Nicholas o encarou com frieza.
- Já me acostumei com a dor. Agora, só falta a verdade.
Valéria fitou Nicholas por um instante, então puxou uma pasta mais grossa da gaveta inferior.
- Quer ver as fotos?
Ele assentiu com firmeza.
- Quero sim.
Ela espalhou os registros sobre a mesa, organizando-os com precisão. Mesmo sendo fotografias técnicas, frias, havia nelas algo que cortava como lâmina. Nicholas respirou fundo e se inclinou, os olhos indo direto para a imagem do corpo no banco do motorista. Arturo estava com a cabeça tombada para o lado, sangue seco escorrendo da têmpora direita. A arma ainda presa em sua mão - a mão direita.
Nicholas franziu o cenho. Ficou em silêncio por alguns segundos, depois soltou:
- Isso aqui está errado.
Valéria ergueu os olhos.
- O que exatamente?
Ele apontou a foto, sem hesitar.
- Arturo era canhoto. Extremamente canhoto. Desde criança. Nunca fez nada com a mão direita - nem segurar garfo, nem escovar os dentes.
- A ideia dele conseguir dar um tiro preciso na própria têmpora com a mão oposta... é no mínimo improvável.
Valéria não reagiu imediatamente. Mas dentro dela, o alerta soou alto.
Fez uma anotação curta no canto da ficha. Um novo ponto fora da curva. Um detalhe que não constava nos depoimentos anteriores.
- E mais - ele continuou -, Arturo era metódico. Se realmente fosse tirar a própria vida, ele teria deixado uma carta, um áudio, algo. Isso aqui... isso não parece com ele.
Valéria recolheu as fotos devagar, em silêncio.
- Parece que a estatística ficou mais interessante - murmurou.
Depois, levantou os olhos para Nicholas com uma expressão difícil de ler.
- Isso muda algumas coisas.
- Muda tudo - ele respondeu, com os olhos firmes nos dela.
Ela fechou a pasta.
- Vamos tomar um café?
Nicholas sorriu de lado.
- Você vai me interrogar ou me manter acordado?
- Talvez os dois.