Capítulo 10  Quando a Esperança Tem o Gosto do Desconhecido

O silêncio da manhã ainda adormece o condomínio escondido entre montanhas, mas dentro de Beatriz, um furacão desperta com fúria. O grito não sai da garganta, ele se espalha por dentro, reverberando no peito como um trovão abafado. Ela desperta de súbito, ofegante, o lençol amarrotado em seus punhos. O suor frio escorre pelas têmporas. O coração, em disparada, parece querer fugir pelas costelas.

Mas aquilo não é um sonho.

É uma lembrança. Crua. Cortante. Real.

A cama onde ela viu Felipe e Lívia entrelaçados ainda queima na memória como uma marca feita a ferro quente. A traição foi uma lâmina que abriu a sua alma. O cheiro da mentira, a ilusão que viveu, nada disso ela pode apagar. E no centro de tudo, a voz de Cesare Vassalo, o pai de Felipe, ecoando com uma certeza cruel, como se já soubesse que ela não passava de um capricho passageiro.

Mas Beatriz se senta na cama e encara o espelho com firmeza. Não vai chorar de novo. Já chorou demais. Não é mais prisioneira daquela história. Ela amou, sim. De verdade. Mas ama mais a si mesma. E é por isso que não vai se calar, nem se arrastar pela dor. Ela vai continuar.

Se Felipe morreu dentro dela, então não há razão para lamentar a ausência de um fantasma.

A vida recomeça. E ela tem muita vida dentro de si.

Lá do céu, ela sente os pais sorrindo, orgulhosos. E isso é tudo o que importa.

Vestida com calça jeans, uma blusa leve e tênis de trilha, Beatriz se arruma com cuidado. Confere a sua mochila, tubos estéreis, luvas, álcool, bloco de anotações, canetas, protetor solar, água, lanche e um pequeno kit de primeiros socorros. Cada item é uma promessa de profissionalismo, ela não está ali por acaso. É biomédica. É competente. E vai provar isso.

Ao som suave de música instrumental, ela observa o céu matinal, azul, sereno, como se a natureza sorrisse para ela.

A campainha toca. Beatriz sorri com leveza.

- Bom dia, Rafael.

- Bom dia, Beatriz. O céu nos presenteou hoje, hein? - diz ele, com aquele tom tranquilo que combina com a manhã.

No portão, Marlon já os espera com uma expressão serena e a mochila nas costas.

- Prontos para a expedição? - pergunta ele, em tom meio brincalhão.

- Depois mostro a sauna e a academia. A Stefany já quer agendar o seu horário de musculação.

Beatriz ri, animada.

- Estou dentro! Mas só se tiver playlist animada.

A trilha de terra que corta o vale leva os três para longe da civilização. O carro os leva até onde pode, depois o trajeto continua a pé. A vegetação se fecha como um abraço da mata. Lírios silvestres brotam entre pedras cobertas de musgo. Borboletas azuis cruzam o caminho. O ar é denso, úmido, e cada passo parece uma batida de tambor anunciando algo grande, uma missão, uma descoberta.

Ali, no meio daquele cenário quase mágico, Beatriz sente o coração se acalmar. A profissão pulsa viva nela.

- Este local está intacto há anos - comenta Marlon, em voz baixa.

- Nenhum indício de contaminação até agora.

- Excelente - responde Rafael. - Precisamos de material limpo. Água, fungos, raízes, fragmentos do solo... o mínimo toque pode alterar os resultados.

A coleta é feita com precisão e respeito. Beatriz trabalha com afinco, suas mãos seguras etiquetando cada tubo, anotando os detalhes de localização, ph, temperatura, odor. Ela se ajoelha próxima a uma poça límpida e observa colônias de microrganismos com brilho nos olhos. Ciência é poesia escrita em código invisível - pensa.

Rafael age com uma destreza que beira o artístico. Seus movimentos são calmos, quase hipnóticos. O modo como segura o tubo, como observa o ambiente, tudo nele é harmonia e concentração.

- Rafael tem algo... enigmático - pensa Beatriz, observando-o discretamente.

Há algo que ele não diz. Algo que ele guarda.

O tempo passa sem pressa. Quando o sol já começa a inclinar-se no céu, Marlon sinaliza com um gesto que está na hora de retornar.

- Vamos guardar as amostras nas caixas e transportar - diz ele.

Beatriz concorda, mas hesita ao ver uma planta parcialmente coberta por folhas secas. Uma planta que parece... diferente.

Ela se agacha, curiosa.

- Só mais uma - murmura. - Essa aqui está fora da lista, mas é incomum.

Ela retira um tubo estéril e aproxima-se da pequena vegetação. Sua intuição pulsa. Há algo ali.

E é nesse instante que tudo muda.

Beatriz sente o silêncio cair abruptamente sobre a mata, como se até os pássaros parassem para assistir. O frio sobe por sua espinha, uma intuição afiada como navalha. Ouve um barulho de chocalho, acha muito estranho, o frio na espinha se intensifica.

Ela se ergue devagar... e vê.

Rafael. Parado a poucos metros. Os olhos fixos. A expressão indecifrável.

E na mão dele... uma arma.

Beatriz paralisa.

A pistola está apontada para ela.

O tempo deixa de existir. O vento cessa. O mundo inteiro parece prender a respiração.

Marlon também para. A expressão dele mistura surpresa e algo mais... algo que ela não sabe nomear.

Beatriz sente o sangue gelar. Não entende. Não compreende. O homem que a acolheu, que lhe estendeu a mão, agora a mira com frieza calculada.

Ela tenta falar, mas a voz não sai. Tenta correr, mas os músculos não obedecem.

E então, o som rasga a mata.

O disparo ecoa, violento, faminto.

Pássaros levantam voo em pânico. Folhas tremem. Um cheiro metálico invade o ar.

Beatriz fecha os olhos, esperando a dor. A queda. O fim.

Silêncio.

Um silêncio tão denso que parece engolir o mundo.

Ela está viva?

Aquilo era real?

Rafael... por quê?

O que ele viu?

Ou o que ela não viu?

                         

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