Capítulo 4 O Recomeço Silencioso

Como sempre, o aeroporto está lotado, mas para Beatriz, tudo ao redor parece envolto em um silêncio espesso. É como se o mundo inteiro se movimentasse em câmera lenta enquanto ela, com os olhos fixos no painel de embarque, sente o peso simbólico daquela partida. A mala que arrasta não carrega apenas roupas, está repleta com os seus pertences, alguns sonhos não vividos, a frustração de uma traição, a maior ilusão de toda a sua vida, junto com os fragmentos de uma relação que quase a destruiu. Cada passo é uma tentativa de se afastar da dor, mas também de se aproximar de uma nova esperança.

A brisa matinal que entra pelas portas giratórias acaricia seu rosto, trazendo um certo conforto momentâneo. O sol é gentil naquela manhã de despedidas, como se o universo, em um raro gesto de empatia, desejasse suavizar o momento. Mesmo assim, dentro dela, há uma tempestade silenciosa.

Beatriz não é frágil. Pelo contrário, sua força é uma armadura forjada em perdas. Perdeu os pais para a pandemia, perdeu a confiança, ao descobrir a traição de Lipe, e agora, está deixando para trás tudo o que conhecia. Mas o brilho nos olhos permanece, ainda que ofuscado. Ela sabe que não pode se dar ao luxo de parar.

- Passageiros com destino a Brasília, favor se dirigir ao portão de embarque 6 – anuncia a voz mecânica do aeroporto.

Respira fundo. Chegou o momento.

Com a cabeça erguida, Beatriz caminha em direção ao futuro. As rodas da mala tilintam no chão, como se marcassem o ritmo de um novo capítulo. É por mérito que conquistou essa vaga como biomédica em um centro de pesquisas. Sempre foi a melhor da turma, a mais aplicada, a que chegava cedo e saía por último. Suas notas impecáveis abriram as portas da pesquisa sobre contaminação ambiental liderada pelo renomado Dr. Rafael Antonelli.

- Vai dar tudo certo, Beatriz – ela sussurra para si mesma, como um mantra contra o medo do desconhecido.

Ela passa pelo portão de embarque. Olha para trás por um único instante, como quem se despede de um passado que não deseja revisitar. Então, segue. Cada passo é uma negação ao desespero.

Ao entrar na aeronave, uma mistura de nervosismo e alívio a invade. Busca o seu assento com a calma de quem quer adiar o inevitável. Escolheu a janela, como sempre. Desde criança, gostava de ver o mundo se distanciando, ficando pequeno, insignificante. Acomoda-se, afivela o cinto e repousa a cabeça no encosto. Uma aeromoça inicia os procedimentos de segurança.

- Senhoras e senhores passageiros, sejam todos muito bem-vindos a bordo...

Beatriz ouve, mas não assimila as informações. Sua mente recua no tempo. Volta para o apartamento, para a cama onde encontrou o fim da ilusão. O gosto da traição ainda é amargo. O choro silencioso que vem à tona agora é um lembrete de que ainda não está curada.

Ela relembra o caos da semana anterior. Vendeu seus móveis, entregou a chave do apartamento para uma imobiliária, inventou desculpas convincentes para os amigos. Despediu-se da cidade como quem foge, mas com dignidade. Hospedou-se na pousada de conhecidos de seus pais, buscando abrigo no único laço afetivo que restara.

A dor pela ausência dos pais ainda é profunda. Eles sonhavam com a formatura tanto quanto ela. Imaginava os dois na primeira fileira, sorrindo com orgulho, aplaudindo sua conquista. Mas a pandemia de COVID 19 foi cruel. Levou os seus heróis e a deixou com um vazio que ninguém consegue preencher.

- Ah, mãe... ah, pai... como eu queria vocês aqui hoje – sussurra, e uma lágrima escapa, deslizando lentamente pelo rosto pálido.

Para ela, foi crucial ter sido aceita para trabalhar com o doutor Rafael Antonelli na pesquisa de contaminação ambiental no estado, bem no momento em que a sua vida virou de cabeça para baixo.

É exatamente isso que ela precisa nesse momento, se reerguer emocionalmente, e o trabalho vai ocupar o seu pensamento e vai fazer com se mantenha de pé depois dessa decepção avassaladora que viveu com o seu professor Felipe.

A jovem limpa o rosto discretamente e volta ao presente quando a aeromoça continua:

- Essa aeronave possui luzes de emergência no piso...

O avião começa a taxiar. O coração de Beatriz acelera. Quando as rodas finalmente deixam o chão, ela sente como se parte do seu peso também ficasse para trás. Fecha os olhos e tenta relaxar. Precisa dormir. Quer chegar revigorada para o encontro com o Dr. Rafael. Deseja que ele veja nela uma profissional segura, competente, pronta para atuar.

Ela ainda se sente frágil, sim. Não é fácil recomeçar com tantas feridas abertas. Mas há algo dentro dela que resiste. Algo que acredita que essa nova fase pode ser, enfim, o ponto de virada.

Está empolgada com a oportunidade. Trabalhar com Rafael Antonelli não é para qualquer um. Ele é considerado uma lenda viva na biomedicina. Suas pesquisas já salvaram milhares de vidas. O prestígio dele ecoa por toda a comunidade científica.

Mas, em meio à empolgação, uma incómoda dúvida se infiltra em seus pensamentos.

Quem é realmente Rafael Antonelli, fora dos holofotes?

Por que ele escolheu justamente ela, uma recém formada, para participar de um projeto tão sensível?

Será que está pronta para o que vai encontrar naquela nova cidade?

Mas algo a incomoda, uma dúvida, por mais que esteja magoada pelos últimos acontecimentos, será que realmente está fazendo a coisa certa?

Rafael é conceituado no meio científico, não há dúvidas, mas será que é tão bom e gentil como pessoa ou é apenas uma fachada que será revelada em breve?

            
            

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