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Brasília desperta sob um manto de neblina fina, como se a cidade flutuasse entre dois mundos, o concreto da racionalidade e o invisível das intenções não ditas. O céu, de um cinza melancólico, se espalha sobre as estruturas monumentais da capital federal, enquanto a luz do sol ainda hesita em romper o véu opaco da manhã. Há algo de inquietante no ar, como se a própria atmosfera soubesse que algo novo, e talvez perigoso, está prestes a começar.
Beatriz repousa na poltrona do avião com os olhos semi cerrados, mas a sua mente está muito distante da cabine silenciosa, das luzes suaves, dos cintos afivelados. O cansaço físico da viagem é nada diante do peso que carrega por dentro. A mudança para Brasília representa mais do que uma oportunidade profissional, é uma fuga, uma tentativa desesperada de reconstrução.
Quando enfim o sono lhe vence, ele não vem com doçura. Como nas últimas noites, mergulha num turbilhão de imagens vívidas e perturbadoras.
Está novamente naquele quarto escuro, onde um vulto masculino se aproxima lentamente. O toque dele a princípio é gentil, os dedos percorrem sua pele com familiaridade, os lábios beijam os seus com um calor que ela reconhece. Seu corpo responde, ainda que sua alma hesite. É Felipe. Sempre ele. Seu cheiro, sua voz, sua presença. Mas, de repente, tudo muda.
Ele se afasta.
Não há explicação, apenas o silêncio cortante da rejeição.
- Não! Não me deixe! - grita Beatriz, a voz embargada pelo desespero, os olhos marejados de uma dor insuportável.
Felipe não responde. A imagem dele se desfaz em sombras. E no lugar daquele amor ausente, surge o riso. Um riso grotesco, grave, quase monstruoso. A gargalhada distorcida de um homem que ela jamais esquecerá, o pai de Lipe, um ser pavoroso que ocupa os seus sonhos como um presságio maldito.
Ela desperta com um sobressalto, o corpo encharcado de suor frio. A respiração ofegante denuncia o pânico que ainda ecoa em sua mente. Passa a mão pelo rosto, confere o relógio digital, o pouso é iminente. Retoca o batom com dedos trêmulos, tentando esconder a palidez que teima em não ceder. É hora de enfrentar o novo capítulo.
A voz da comissária irrompe pelos alto falantes com uma calma mecânica:
- Senhores passageiros, estamos nos preparando para o pouso. Por favor, certifiquem-se de que os seus assentos estão na posição vertical e que seus cintos estão afivelados...
Beatriz respira fundo. Brasília se aproxima. Com ela, o começo de uma vida que ela mal ousa imaginar.
Assim que as portas da aeronave se abrem, ela segue com passos firmes até a esteira de bagagens. Tem sorte, as suas malas são as primeiras a surgir. Empilha os pertences no carrinho, ajeita a alça da bolsa no ombro e se dirige para a saída do aeroporto.
E então o vê.
O homem que até agora era apenas uma voz em reuniões online, um nome no contrato, um rosto na tela do computador.
- Que prazer, Beatriz - diz ele, com um sorriso cortês e olhar penetrante.
- O prazer é meu, Dr. Rafael - responde, com um brilho involuntário nos olhos.
Ele estende a mão. O aperto é firme, seguro, com uma delicadeza sutil, quase estudada.
- Espero que sua viagem tenha sido tranquila.
- Foi sim. Nenhuma turbulência. - Seu sorriso tenta disfarçar o cansaço da alma.
- Excelente. Vamos? - Ele faz um gesto para ela seguir à frente.
- Deixe que eu levo o seu carrinho.
Caminham juntos rumo ao estacionamento. A conversa flui naturalmente, como se já se conhecessem há muito mais tempo. Há uma leveza inesperada na presença de Rafael. Seus gestos são elegantes, a voz tem uma cadência agradável, e ele parece genuinamente interessado em ouvi-la.
- O endereço onde você ficará não é exatamente no centro, mas também não é isolado - explica Rafael enquanto dirige.
- Uma região tranquila, ideal para concentração. Acredito que vá gostar. Ainda mais depois de tudo que me contou sobre querer uma mudança de vida.
- Tranquilidade é tudo o que eu preciso neste momento - responde Beatriz, observando a cidade pela janela.
- Sempre preferi silêncio às multidões.
Logo, deixam o centro para trás e adentram uma região mais arborizada. A natureza se entrelaça com o urbano de forma harmoniosa. Árvores antigas margeiam a estrada, e o canto dos pássaros se mistura ao som dos pneus no asfalto. Ao longe, vê-se um condomínio fechado com arquitetura colonial. Charmoso. Discreto. Quase poético.
Ao chegarem à residência que será seu novo lar, Beatriz fica em silêncio por um instante. A casa parece saída de um sonho, a varanda com samambaias balançando suavemente, uma mesa rústica de madeira, cadeiras de balanço, jardim cuidado com esmero.
- Espero que goste - diz Rafael, com um brilho sutil nos olhos.
- É maravilhosa... nem sei o que dizer - responde ela, visivelmente emocionada.
Rafael abre a porta para ela. Ao entrar, Beatriz sente um calor imediato, como se a casa já a conhecesse. O aroma de lavanda e chá fresco no ar, a manta sobre o sofá, as luzes quentes no teto, tudo pensado para acolher.
- Essa era a casa da antiga assistente - explica Rafael.
- Você pode mudar o que quiser. Agora é a sua casa.
- Está perfeita - responde ela. - Realmente parece que foi feita para mim.
Ele entrega a chave, com um gesto lento, quase simbólico.
- Aproveite o dia para descansar. Depois de amanhã começamos de verdade. Por enquanto, só quero que se sinta bem-vinda.
Beatriz sorri, e pela primeira vez essa semana, sente algo parecido com paz.
- Obrigada, Dr. Rafael. De verdade. Já posso sentir que aqui é o lugar onde minha vida vai recomeçar.
- E será um bom recomeço - diz ele, olhando-a com intensidade. - Confio que você trará algo muito especial para o nosso trabalho.
O silêncio que se segue não é desconfortável. É denso. Quase carregado de um significado que ambos ainda não conseguem nomear.
Rafael se despede com um aceno discreto. Beatriz observa enquanto ele se afasta, até o seu carro. Fecha a porta devagar. A casa está silenciosa, mas viva.
Ela respira fundo, tentando assimilar tudo o que está acontecendo. Um novo emprego. Uma nova cidade. Uma nova casa. Um novo homem que, em poucas horas, já mexeu com algo dentro dela que ela achava que havia esquecido.
Mas, ao olhar pela janela da sala, algo lhe aperta o estômago. Uma sensação estranha. Como se estivesse sendo observada. Como se, por trás daquela calmaria planejada, houvesse algo oculto.
Ela não sabe, mas já está dentro de um jogo. Um jogo complexo, cuidadosamente arquitetado. E talvez, só talvez, já tenha avançado demais.
Por que a casa parecia tão... pronta?
Quem era realmente a antiga assistente?
E o que Rafael espera dela, exatamente?