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O silêncio do condomínio a envolve como um cobertor macio, quebrado apenas pelo som distante de cigarras e o farfalhar das folhas ao vento. O carro já se afastou. Dr. Rafael agora é apenas uma lembrança que se dissolve ao longe, e Beatriz permanece ali, parada à frente da porta de madeira envernizada, como quem hesita em atravessar um portal entre dois mundos.
Com as chaves em mãos, ela respira fundo. É mais do que apenas uma nova casa, é o renascimento de uma mulher ferida, mas não vencida.
- Vai, Beatriz... - sussurra para si mesma, quase como um rito de passagem.
Com um leve sorriso no rosto, ela empurra a porta que range suavemente, revelando um ambiente que mistura aconchego e promessas. Ao entrar, ela sente como se a casa a abraçasse. O ar possui um leve perfume de lavanda e madeira antiga, e há uma calma ali que vai além do silêncio: é a paz que ela tanto buscou.
No pequeno hall de entrada, um espelho oval pendurado acima de um aparador exibe o reflexo de uma mulher exausta, mas decidida. Algumas velas decorativas e um vaso com flores brancas e perfumadas compõem o cenário. Ela toca de leve na superfície do móvel e sorri. Até os detalhes mais sutis parecem conversar com o seu coração.
A sala se abre diante dela, espaçosa, clara, pintada em tons pastéis que convidam ao descanso. Sofás amplos, almofadas bem dispostas, uma televisão imponente e uma mesa de jantar com seis cadeiras cuidadosamente alinhadas compõem o ambiente. O canto de leitura, com uma poltrona de tecido rústico e uma pequena estante com alguns livros técnicos e romances esquecidos, chamam a sua atenção. Tudo parece ter sido preparado com esmero, como se alguém soubesse exatamente o que ela precisava.
Ela sente as lágrimas começarem a se formar, mas engole em seco. Não é hora de se render à fragilidade.
- Você venceu, Beatriz. Está aqui. E já deu tudo certo.
Segue o caminho com as malas por um corredor curto, passando por duas portas. O quarto principal é um encanto. Cortinas em tom de pêssego filtram a luz suave do fim de tarde, projetando sombras delicadas nas paredes. A cama king size é coberta por um edredom bege acolhedor e várias almofadas. No canto, duas portas, o closet e o banheiro.
Ela entra primeiro no closet e não consegue conter um sorriso de surpresa. É espaçoso, bem iluminado, com cabideiros e prateleiras estrategicamente dispostos. Ali, ela começa a desfazer as malas, dobrando suas roupas com cuidado. Blusas, vestidos, jalecos... tudo ganha seu lugar.
- Mãe... você adoraria isso - murmura, com os olhos úmidos.
A lembrança da mãe vem como um sopro quente no inverno. O hábito de organizar as roupas por tipo, por cor, foi um ensinamento dela. Beatriz se apega a isso como quem segura a mão de um anjo em meio ao caos.
Após arrumar tudo, ela vai até a cozinha. Está sedenta. Ao abrir a geladeira, uma nova surpresa, completamente abastecida com frutas frescas, laticínios, carnes, verduras. Há até uma melancia cortada com carinho, envolta em filme plástico.
- Rafael pensou em tudo... - diz, emocionada. - Quem diria?
Decide preparar um suco gelado. Espreme o líquido vibrante da melancia no liquidificador, adiciona cubos de gelo e bebe com satisfação. A cozinha é funcional e charmosa, com uma ilha central de mármore, utensílios modernos e detalhes que revelam cuidado: potes etiquetados, panos de prato dobrados, temperos organizados em uma prateleira giratória.
Ao percorrer a casa, nota que o segundo quarto também é uma suíte, com decoração mais neutra, talvez deixada assim à espera do toque de quem habita. A casa é térrea, mas ela percebe uma escada discreta que leva ao terraço, deixará isso para o dia seguinte. Por ora, só quer absorver o presente.
- É mais do que eu imaginava. É mais do que eu mereço... ou será que finalmente eu mereço isso?
Vai até o banheiro da suíte principal, prepara um banho demorado com sais e espuma. A água quente relaxa cada parte do seu corpo, e ela se permite fechar os olhos e mergulhar em pensamentos. Passa os dedos pela cicatriz no braço. A lembrança do acidente, da traição, do chão desabando sob seus pés ainda ecoa. Mas agora, ela é outra.
- Nada disso me define mais... eu estou viva. Eu estou aqui.
Sai do banho revigorada. Veste apenas uma camisa larga e uma calcinha. Sente o frescor da pele e o perfume da espuma ainda no ar. Caminha pelo quarto, descalça, encosta na cama e adormece como uma criança cansada.
Horas depois, desperta. O luar banha o quarto com um brilho prateado, suave. A janela ampla oferece uma vista quase mágica, a lua cheia parece sorrir para ela. Sente-se acolhida. Sente-se... em casa.
- Estou com fome - murmura, ouvindo o próprio estômago reclamar.
Na cozinha, prepara uma refeição leve. Frango grelhado, arroz e salada. Liga a televisão e assiste ao noticiário local. Quer entender onde está. Quer se adaptar rápido, se misturar, ser parte daquilo.
Depois, lava a louça com cuidado, enxuga e deixa tudo em ordem. Ao passar pela sala, pega o notebook e o leva ao quarto. Acessa os arquivos da pesquisa. Lê os relatórios preliminares, se debruça nos dados, nas metodologias, nos impactos esperados sobre os lençóis freáticos e a preservação da água.
- Isso é maior do que eu pensava... essa pesquisa pode salvar comunidades inteiras.
Se sente empolgada. Pela primeira vez em muito tempo, sente que tem um propósito maior do que simplesmente sobreviver.
Mas quando fecha o notebook e apaga a luz, pronta para dormir, um ruído sutil a faz congelar.
Um estalo seco. Como madeira sendo pressionada. Vem de cima. Do terraço?
Ela segura a respiração.
- Será só o vento? Ou alguém mais sabe que eu estou aqui...?
Os olhos vasculham a escuridão, atentos. O coração acelera.
Ali, naquela nova casa, onde deveria começar uma nova vida... algo não parece tão silencioso quanto parecia.
Ou será que o passado encontrou uma forma de segui-la até aqui?