/0/14672/coverbig.jpg?v=826938fa2d6147a359ff89b8580da6c0)
2

/ 1

O corpo de Beatriz permanece no asfalto molhado, inerte, cercado por luzes difusas e silhuetas diversas que começam a se aglomerar ao redor. As pessoas falam ao mesmo tempo, vozes ansiosas, alarmadas, carregadas de tensão.
- Alguém chama o SAMU, pelo amor de Deus! - grita uma mulher, com a mão trêmula segurando um celular molhado de chuva.
- Ela tá respirando? - pergunta um homem, ajoelhado ao lado do corpo.
Beatriz não se move. Os olhos fechados, os cabelos grudados no rosto, os lábios entreabertos. A chuva continua a cair sem cessar, lavando o sangue escasso que escorre de um arranhão no cotovelo. Um guarda chuva surge acima dela, sustentado por mãos trêmulas de uma jovem que tenta protegê-la da água insistente. Tudo parece acontecer em uma bolha, um mundo onde os sons são abafados, como se o universo respeitasse o instante frágil entre a vida e o abismo.
Minutos correm lentos.
A ambulância demora. O trânsito está um caos. Sirenes distantes anunciam socorro vindo de algum lugar da cidade, mas o tempo se arrasta como se o próprio universo hesitasse em dar continuidade à história de Beatriz.
E então, finalmente, o som metálico e crescente de uma sirene rasga a noite. Um clarão vermelho e azul dança nas poças formadas pela chuva. A ambulância para bruscamente, portas se abrem. Paramédicos saltam com rapidez e precisão treinada.
- Feminina, jovem, trauma por atropelamento! - grita um deles ao se aproximar do corpo.
Beatriz emite um gemido fraco. Os olhos se entreabrem por um segundo e tornam a fechar. A voz dos profissionais é firme, mas urgente.
- Pressão baixa. Escoriações leves visíveis. Pupilas reativas. Aparentemente sem fraturas expostas. Mas não podemos descartar trauma craniano. Vamos estabilizá-la.
Colocam o colar cervical com delicadeza e firmeza. Conectam um soro, monitoram os sinais vitais. Removem para a maca. A chuva ainda não cessa, e a sirene soa de novo enquanto a ambulância parte em disparada, como uma flecha rompendo o caos da cidade molhada.
Dentro do veículo, Beatriz se move levemente. Tenta falar. Os olhos piscam devagar.
- Shhh... fique calma - diz uma voz masculina, tranquila.
- Você está segura. Está a caminho do hospital.
Tudo gira. O teto da ambulância parece se afastar. Vozes distorcidas, luzes piscando, o frio do soro correndo na veia. Mas nada disso importa. Não para ela. Porque a dor maior não está no corpo. Está em outro lugar. Queima no peito. No fundo da alma. Uma dor que não tem nome definido, que nenhum laudo médico vai registrar.
Ao chegarem ao hospital, Beatriz é levada diretamente para o setor de traumas. A movimentação é rápida. Médicos, enfermeiras, equipamentos, exames. Palavras médicas flutuam ao redor dela como um idioma estrangeiro.
- Pressão ainda baixa. Colar cervical mantido. Prepara tomografias de crânio, e cervical mais raio X de tórax e membros. Vamos medicá-la para a dor. Monitorar sinais neurológicos.
- Qual o seu nome?
- Be Beatriz Scher.
- Tem alergia a algum medicamento?
Ela nega, mas sabe que não há medicamento no mundo que faça a dor que ela sente no peito desaparecer. Uma medicação é injetada.
Minutos depois, ela acorda. A luz branca do teto parece uma lâmina cortando os olhos. Pisca devagar. A cabeça lateja. Sente um peso estranho no pescoço.
- Onde... eu estou? - murmura, tentando se sentar.
- Calma, Beatriz - diz um médico, aproximando-se. - Você sofreu um atropelamento. Foi trazida por populares. Está estável, mas precisamos fazer alguns exames para garantir que está tudo bem, ok?
Ela balança a cabeça levemente. O mundo gira outra vez. A dor de cabeça aperta, latejando com violência.
- Estou com... muita dor aqui - aponta para a testa.
- Vamos cuidar disso - diz ele, sinalizando para a enfermeira. - Dipirona intravenosa e tramadol, por favor. Depois, levem para a tomografia.
Enquanto a medicação entra pela veia, Beatriz fecha os olhos. Mas a dor emocional não cede. A cena volta com força total: Felipe. Lívia. A cama. O lençol bagunçado. Os corpos entrelaçados. A traição. A humilhação.
Não pode ser verdade. Deve ter algum engano. Deve haver uma explicação...
Mas não há.
Ela viu. Com os próprios olhos.
Sentiu o coração se partir em tempo real.
O exame de imagem é rápido. Ela geme, incomodada com o colar cervical. Tenta mexer o pescoço.
- Por favor... posso tirar isso?
- Ainda não, Beatriz - responde o técnico. - O médico só autoriza depois dos exames de imagem.
Ela resmunga, cansada, com os olhos fixos no teto do aparelho. A máquina ronrona ao seu redor, capturando imagens do crânio, dos ossos, das verdades invisíveis.
Dentro dela, outra máquina trabalha, o coração tentando aceitar o que a mente já compreendeu, mas o peito ainda recusa.
Quando é levada de volta à maca, olha para o teto do hospital como quem olha para um céu sem estrelas. Tudo parece frio, clínico, distante.
Era com ele que ela sonhava dividir a vida. O lar. O futuro.
Mas agora...
Agora tudo mudou.
O mundo desabou.
E mesmo assim, em meio à dor e à confusão, uma chama tênue se acende no fundo da alma. Um fio de algo que ela ainda não reconhece como força, mas que se parece com decisão.
Ela inspira devagar.
Sim, doeu. Sim, ainda dói.
Mas ela não vai se deixar afundar. Não vai se despedaçar por ele.
Não mais.
Ela vai se levantar. Vai se reconstruir. Vai dar a volta por cima.
Nem que precise arrancar cada pedaço de dor com as próprias mãos.
Ela aperta os olhos com força. E pela primeira vez desde que tudo aconteceu, pensa com clareza:
- Ele vai se arrepender.
E o silêncio do hospital é interrompido apenas pelo bip do monitor cardíaco, que pulsa... como uma promessa.
Mas e se o atropelamento não foi um simples acidente?
Quem realmente estaria por trás da dor que Beatriz começa, enfim, a transformar em força?