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Brasília desperta sob um manto espesso de silêncio, como se o tempo hesitasse em seguir adiante. As cores ainda não ousam colorir o céu, e o concreto das embaixadas permanece frio, inerte, indiferente à passagem das horas. Uma névoa preguiçosa rasteja pelas avenidas largas como um véu que tenta esconder algo, ou alguém. O céu, pálido, quase translúcido, confere à cidade uma atmosfera quase angelical, como se tudo estivesse suspenso entre o real e o irreal.
É nesse limiar entre noite e dia, nessa fresta de transição onde a escuridão ainda não cede espaço à luz, que as verdades costumam emergir, cruas, inegáveis. A cidade, por um breve instante, parece despida de máscaras. Brasília respira fundo... e espera.
Dentro do laboratório, isolado do mundo exterior por camadas de concreto, sensores e protocolos rígidos, tudo permanece imutável. Frio. Preciso. Seguro. O ambiente é asséptico ao extremo, não apenas no que se refere à higiene, mas à própria essência. Ali, sentimentos não têm lugar. Emoções não sobrevivem. É um espaço onde apenas os fatos são bem vindos... ao menos, é o que se pretende.
O zumbido grave dos compressores e o sutil clique dos calibradores automáticos compõem uma sinfonia mecânica, quase hipnótica. Para o Dr. Rafael Antonelli, esse som é familiar, reconfortante até. Representa controle. Ordem. Um microcosmo onde tudo obedece a leis claras e previsíveis, ao contrário do comportamento humano.
Ele ajusta com precisão o painel de fluorescência, olhos atentos às curvas dos espectros que começam a se formar na tela diante de si. Os dados sobem, suaves, confiáveis. É como deve ser. Um mundo de exatidão.
Mas, mesmo enquanto os seus dedos operam com maestria o sistema, sua mente não está ali. Ela se afasta. Voa para longe dos tubos e gráficos. Vai em direção a uma figura ainda distante, mas que, em breve, se tornará parte dessa engrenagem.
Beatriz.
Ela já deve estar em algum ponto do seu trajeto. Talvez dentro de um avião, talvez observando pela janela a cidade do Rio desaparecer atrás das nuvens. Está sozinha, ele sabe. E, mais importante, desprotegida. Um detalhe fundamental.
Jovem, recém formada, sem raízes, sem laços afetivos fortes. Sem ninguém que a espere em casa. Um perfil cuidadosamente escolhido.
- Contratá-la foi racional... - ele murmura para si mesmo, sem desviar os olhos da tela.
Mas, no fundo, sabe que não foi apenas isso. Algo em Beatriz o intriga desde a primeira vídeo chamada. O brilho nos olhos dela, um lampejo quase imperceptível de dúvida entre uma resposta e outra. Como se, mesmo sem querer, ela estivesse fazendo perguntas silenciosas. Como se desconfiasse, ainda que inconscientemente, de que o mundo ao redor dela não é o que aparenta ser.
Ele ativa o intercomunicador com um gesto sutil.
- Stefany?
A resposta é imediata, como sempre.
- Sim, doutor Rafael?
- A casa da nova assistente. Quero que esteja pronta ainda hoje. Umidificador ativado. Aquecedor ajustado. Tudo limpo. Alimentos frescos. Ela vem do Rio... o clima pode ser um choque.
Há um breve silêncio do outro lado. Pequeno demais para ser considerado hesitação, mas o suficiente para que Rafael perceba a diferença.
- Estava justamente pensando nisso - diz Stefany, sua voz levemente mais suave do que o habitual.
- Talvez pudéssemos deixar o ambiente um pouco mais... acolhedor.
- Acolhedor? - ele arqueia uma sobrancelha, mesmo sem ser visto.
- Sim. Uma manta no sofá, algumas flores brancas, luzes quentes na sala. Nada íntimo demais. Apenas... humano. Ela está vindo para um lugar novo, sem rostos conhecidos. Talvez se sentir cuidada ajude. Ela não tem ninguém, doutor.
Rafael silencia. Por um instante, seus olhos refletem mais do que cálculo. Stefany não costuma fazer sugestões sem fundamento. Ela conhece bem os limites da função que ocupa. Ainda assim, o gesto o surpreende.
- Tudo bem. Cuide disso pessoalmente. E use o seu julgamento. Quero que pareça um lar... mas sem exageros.
- Compreendido. Vou até lá à tarde. Um bolo fresco, chá natural na prateleira, janelas abertas para o ar circular. Apenas o suficiente para que ela baixe a guarda.
"Para que ela baixe a guarda..." A frase ecoa na mente dele, mesmo que não tenha sido dita em voz alta. Ele sabe o poder do conforto. Sabe que, quando as pessoas se sentem seguras, revelam mais do que pretendem.
Desliga o intercomunicador e encara o reflexo do próprio rosto na tela em branco.
Acolhedor.
Que palavra perigosa.
Volta-se para a bancada, mas não consegue mais se concentrar. Em vez disso, abre seu tablet e começa a digitar com exatidão cirúrgica:
– Corantes de fluorescência
– Lâminas e lamínulas
– Soluções tamponadas
– Água bi destilada
– Máscaras N95
– Luvas de tamanhos variados
– Termômetros infravermelhos
– Luminárias direcionais
– Cadernos novos
– Canetas pretas
– Cópia atualizada do regulamento interno
– Kit de coleta para amostras não declaradas
Envia a lista para o sistema interno, diretamente para Stefany. Mas antes que o som de confirmação ecoe, uma inquietação pulsa dentro dele. Uma urgência silenciosa. Um pressentimento?
Liga novamente.
- Stefany?
- Sim, doutor?
- Priorize a lista que acabei de enviar. Tudo precisa estar no lugar até o fim da tarde. Cada item.
- Está tudo sob controle, doutor.
Mas... está mesmo?
Desliga mais uma vez. E permanece ali. Imóvel. Observando o vazio do laboratório, onde o tempo parece curvar-se à sua vontade.
Beatriz está a caminho. Inconsciente de que está prestes a entrar em um tabuleiro minuciosamente montado. Um cenário meticulosamente arquitetado para parecer inofensivo. Científico. Ético.
Mas há outros corredores. Portas que ela não verá. Áreas restritas que nunca constarão nos mapas. Pessoas que apenas aparentam ser quem dizem. E protocolos... que não estão em papel algum.
Ela será recebida como uma jovem promissora, cheia de entusiasmo e com uma carreira brilhante pela frente.
Mas e se... ela começar a olhar com atenção demais?
E se ela notar as falhas nas fachadas, os ecos que não combinam com a arquitetura perfeita?
E se, por acaso, ela olhar para Rafael... e enxergar além da máscara?
Será que entenderia o que realmente está em jogo?
Ou pior... será que ela já desconfia?
O alarme suave da reação química indica o pico de atividade. Rafael nem se move.
Tudo está pronto.
Falta apenas Beatriz descobrir... que a grande mudança da sua vida está prestes a começar.