Capítulo 3 A fome de Olivia

É SEMPRE IMPORTANTE FRISAR O QUANTO DE GATILHOS ESSE LIVRO TEM, ELE É DOLOROSO E SÓ TEM ISSO A OFERECER, CUIDADO COM OS GATILHOS, FOME, DEPRESSÃO, SOFRIMENTO, ABUSO.

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''Como dois e dois são quatro

Sei que a vida vale a pena

Embora o pão seja caro

E a liberdade pequena''

- Ferreira Gullar

2350 D.C

A jovem menina permanecia sobre a cama, incapaz de abrir os olhos e olhar ao redor, até mesmo de seguir em mais um dia - era sempre a mesma coisa, a mesma rotina. Ela ficava ali, na esperança vã de dormir novamente, mas o duro colchão e o barulho incessante dos pássaros do lado de fora da janela a impediam de completar seu plano. Assim, a dor em seu estômago se fazia presente: ela não conseguira caçar nada no dia anterior. Nem mesmo um pombo atrofiado... Nada que fizesse sua fome diminuir. Ela abriu os olhos, fixando-os no teto, enquanto traçava rotas para sua nova caçada. Teria que achar algo hoje, mesmo que só para si... Desde que Will morrerá, estava cada vez mais difícil se manter viva.

Ela se perguntava constantemente como tinha conseguido chegar até ali. Sabia que, se não fosse por seu tio, não teria conseguido, já que seus pais a abandonaram à própria sorte. Ele a ensinou a caçar e a vender suas caças. A sobreviver nesse mundo doente em que ela se encontrava.

A luta por sobrevivência não era vivida só pela pequena Olivia, mas pela maioria no distrito de Missiting. Cômico e triste, porque, sim, tudo estava em falta naquele lugar.

Faziam dois anos que seu tio se fora, mas as lembranças dele ainda eram presentes na vida da menina. Naquela hora, por exemplo, ele estaria a empurrando da cama com um sorriso animado no rosto, tentando fazê-la ver o quão lindo ainda era o mundo, tentando mostrar que existia mais do que a dor constante que ela sentia.

A garota era um desastre com sentimentos e amizades. Sempre arrumava um jeito de afastar todos os poucos amigos que conseguira em toda a vida. Se ela mantinha contato antes, era por pura influência do seu tio, que não gostava do quão solitária ela parecia. Mas ele não sabia que ela estava bem com a solidão, que não fazia sentido ter alguém com quem se preocupar em um mundo caótico como aquele.

A pequena Oli se esgueirou para o chão, deixando o pouco conforto que seu corpo tinha, quando seu estômago chorou pela terceira vez desde que acordara... Ela precisava comer. Colocou suas calças jeans surradas, que ainda cheiravam mal da última caçada. Olivia apenas espremeu o nariz em sinal de desgosto pelo cheiro de suor e possivelmente fezes de animais, já que ela sempre deitava pela floresta em busca de uma posição que a camuflasse. Após subir as calças e calçar as botas, foi até uma pia velha no fundo da casa e buscou uma cuia no balde com um pouco de água que deveria estar ali por toda a semana. Passou a água gelada pelo rosto, sentindo a superfície fria sobre a pele.

Essa era uma das coisas que ela menos gostava de fazer: buscar água para casa. O riacho ficava a 3 km da pequena vila, e ela nem sempre tinha forças suficientes para ir e voltar a quantidade necessária de vezes para abastecer a casa. Mas sua reserva estava acabando, e Oli teria que ir ao riacho em algum momento. Água era uma das coisas mais caras do reino; ter o conforto de uma encanação não era para pessoas como Oli, que mal tinham o que comer na maioria das vezes...

Após pegar seu equipamento, certificou-se de que havia trancado a casa - roubos eram frequentes naquele lugar. As pessoas não tinham nada, mas mesmo assim queriam achar algo nas casas alheias.

Oli sentia falta do tio. Ir caçar com ele era sempre aconchegante e, com certeza, ele sabia o que fazia.

- Há, Oli, vai tentar a sorte mais uma vez? - A menina não gostava do tom zombeteiro do vizinho, um nojento que volta e meia deixava suas intenções sujas para com ela. - Já disse, você só precisa ficar perto de mim para ganhar umas moedas. - Ele olhava de um jeito detestável para ela, fazendo a menina querer vomitar só de imaginar a sugestão.

Ela revirou os olhos para o moribundo sujo à sua esquerda e seguiu, fingindo que ele não existia.

De todos os possíveis futuros para Olivia, em um mundo machista e sem leis, o que ela menos queria era aquele. Temia o dia da revista, pois poderia ser escolhida para servir a um homem nojento como Gregue. Aos 21, as mulheres podiam "escolher" uma vida diferente. Podiam se prostituir para homens nojentos como Gregue, que se sentia o cheiro de merda e bebida de longe, ou, se tivessem sorte, para nobres ricos. Tinham o direito de escolher, caso fossem selecionadas para a nobreza. Continuar morrendo de fome ali, ou ir para um lugar com comida em abundância? Poucas mulheres da vila de Oli eram selecionadas. As mulheres de Missiting não eram tão bonitas assim... E as pobres que não eram selecionadas nem tinham sorte de achar alguém para ajudar a carregar o fardo da fome se vendiam por míseras moedas para homens como Gregue. Mas até lá, eles eram tecnicamente proibidos de tocar nas garotas; qualquer jovem menor de 21 anos era propriedade do governo. Podiam morrer de fome, mas não eram estupradas - pelo menos até os 21. Depois disso, a lei não era para mulheres, o respeito não era para mulheres, e poucas mulheres encontravam o amor.

- Você não vai poder reclamar quando receber uma porra de uma bala na testa, Gregue. - A voz rouca, com um sotaque puxado, do único amigo que Olivia ainda tinha ao seu lado se fez presente.

Eles não se viam há alguns dias. Harold estava forte em seu uniforme. Ela tentava afastá-lo há meses desde que ele se tornara guarda no distrito. Mesmo feliz que o magricela do amigo tivesse um futuro melhor que o dela, não era bom estar muito próximo da guarda.

- O que você quer, Harold? - Ela disse, revirando os olhos para ele. O mesmo correu ao seu alcance; a jovem parecia querer fugir do amigo, apressando os passos.

- Você está péssima, Oli. - Ele disse, vendo as feições caídas da menina pela falta de comida. Ele podia imaginar o que ela estava passando. - Sabe que deve reportar esse tipo de comportamento do Gregue. - Ele falou em tom de advertência à amiga. Harold tinha uma afeição pela Olivia que superava suas intenções. Ela sempre fora indiferente com todos, mas, com ele, claro, por insistência dele, era razoável.

Ele foi o único que ela não espantou ao longo dos anos.

- Gregue é Gregue desde que eu tinha 17 anos, e até antes, com seus olhares sujos em minha direção. Não vai ser agora que vou me importar com o que esse porco acha, Harold. Não venha me reprimir só porque agora tem poder pra isso. - Ela sabia que isso deixaria o amigo sem jeito de continuar com a advertência. Mesmo sabendo que ele só pensava no bem dela. Mesmo a jovem tendo apenas 19 anos, era uma mulher sozinha, não tinha ninguém no mundo por ela. Vê-la ser desejada de forma suja por outros homens deixava o guarda desajeitado e irritado. Ela era boa demais para qualquer um daquela vila. Até mesmo para ele, pensava o guarda.

- Qual foi a última vez que você comeu? - Ele perguntou, fazendo o estômago da jovem se contorcer com a lembrança.

- Não importa, Harold! Estou me virando... Já me viro sozinha há dois anos, e um ou dois dias com fome não vão me matar. - A garota era rude, todavia sempre queria afastar as pessoas de perto dela. Mas isso não funcionava com ele, e, bom, nem ela queria que funcionasse. No fundo, tudo que ela ainda tinha de contato com outras pessoas era ele. Os olhos verdes que assombravam seus sonhos, mas Olivia se obrigava a não pensar em nada desse tipo. Pensar em alguém que não fosse ela não era nem sequer aceitável. Mal conseguia se alimentar, imagina se preocupar com a alimentação de outra pessoa - era o que ela menos queria.

- Você sabe que só quero seu bem, Oli. - Ela revirou os olhos para o amigo, enquanto tentava não olhar diretamente para ele. Não queria falhas na voz, e isso sempre acontecia quando ele estava perto demais. Ou quando os olhos dele a consumiam com todo o carinho que o garoto tinha pela jovem. Harold se preocupava com Olivia todos os dias. Ela foi uma das motivações para ele entrar na guarda; queria poder estar com ela, mesmo que nunca fizesse a mesma perceber suas intenções.

Ela era o que havia de mais importante para o jovem que, assim como Oli, também não tinha família.

- Bom, você precisa comer, não vai conseguir caçar nada sem forças. - Ele disse, olhando ao redor para ver se alguém via seu ato, e tirou da bolsa um pão. Os guardas comiam duas vezes ao dia no acampamento; ele escondeu o pão para poder trazer algo para a menina comer.

- Nem sempre você estará aqui, Harold. Se você sempre buscar motivos para me alimentar, eu não vou suportar os meus piores dias. Você precisa comer também, agora que é guarda. - Ele estava irritado, olhando para a amiga com descrença. Como ela podia julgar sua índole daquela forma? Como achava que ele a abandonaria algum dia? Ele seria incapaz de tal ato.

- Só pega, tá legal? Preciso ir. Boa caçada, Oli. - Ele deu um sorriso de canto que deixou a garota mole das pernas e saiu, tão perfeito em seu uniforme quanto poderia ficar em qualquer coisa.

...

            
            

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