Capítulo 8 Love Harold

"Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor, estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia.

-Clarice Lispector"

O corpo da jovem era balançado de forma bruta. O guarda estava impaciente de tanto que tentava chamar a atenção de sua amiga.

- OLIVIA! - Ele havia terminado a tarefa e até mesmo feito algo para eles comerem, mas, quando foi acordá-la, viu a menina se debatendo sobre a cama, suando frio. Ela balbuciava coisas incompreensíveis e, logo, abriu os olhos confusa, para perceber que tinha tido um sonho , tão real que a mera presença de Harold a tocando agora a fazia corar e sentir raiva ao mesmo tempo.

- Você está bem? - Ele perguntou, vendo-a olhar ao redor sem saber o que estava acontecendo.

- Saia. Agora saia, antes que eu mire uma flecha no seu olho e faça com você pior do que fiz com o pobre cervo... - Ela estava furiosa. As duras palavras do seu sonho a confundiam, deixando-a tonta com as verdades ditas pelo seu subconsciente. E o pobre Harold, que só pensou em alimentá-la, estava confuso com toda a situação, mas deixou seu corpo ser empurrado porta afora, se dando ao trabalho apenas de pegar sua camisa. Em sua mente, Olivia estava furiosa por ele tê-la acordado, e ele não queria abusar da hospitalidade da amiga já que a tinha despertado.

Mas ela estava se contorcendo sobre a cama, parecia que não estava bem. Ele não queria que ela estivesse em um pesadelo. O Will uma vez dissera que Olivia vivia tendo pesadelos. Ela temia o abandono a tal ponto que sempre sonhava com alguém a deixando. Mas Harold entendia que não havia mais ninguém que pudesse abandoná-la. Ele não era nada além de um amigo chato para a garota, e talvez o dia que ele deixasse de vir seria o dia mais feliz da vida dela.

Mas ele estava tão enganado. Agora que todos se foram, ele era o único que lutava contra todo o sistema de defesa da garota. E só a menção de deixá-la algum dia, ou de sua rejeição , a fazia perder a razão.

Ela não queria perdê-lo. Não podia...

Ele era a coisa mais bela , e a única , que ela tinha. Ela não podia se dar ao luxo de muita coisa. Não podia se dar ao luxo de nada. Muito menos de perdê-lo.

Mas agora, ela só conseguia pensar em sua rejeição. Em cada maldita palavra dura que saiu de sua boca em seu sonho , e de quanto eram verdadeiras. Ela não era para ele. Não. Ele não era para ela. Ele era demais. Ele nunca a iria olhar como algo além de uma irmã caçula. Como alguém que precisa de ajuda. Como alguém que não merece ser amada.

Por que alguém a amaria? Ela é rude, solitária, não tem nenhum dote feminino, não se importa com vaidade. Há dias ela nem arruma o cabelo. Eles estão um caos, cheios de galhos e folhas secas.

Ela fede a estrume a maioria das vezes, porque passa o dia na floresta, e às vezes nem se preocupa em se lavar. Já que está sozinha, quem vai se importar com seu cheiro? Por que alguém iria querer alguém como ela?

Alguém que se esconde do mundo, das pessoas. Que tem medo da rejeição e do abandono a ponto de não criar laços com ninguém. Alguém que se recusa a acreditar que um dia possa ser amada. Porque ela sabe que está quebrada. E sabe que ele sabe disso também.

Ele não precisa remendá-la. Ele pode ter qualquer uma. Qualquer uma daquele lugar. Ele pode estar com elas no momento em que se der conta disso , do quanto é querido e desejado por todas ao seu redor.

Ela não passa de uma garota triste que não tem ninguém a quem se agarrar. E por isso todas as palavras que o seu Harold imaginário disse no sonho têm tantos motivos para ser algo real. Por que alguém como ele iria querer alguém como ela?

Mas, se ela notasse, até mesmo agora, enquanto o chuta para fora de sua casa, se ela se desse o trabalho de enxergar, veria que ninguém além dela poderia ter o coração do rapaz. Ele a ama desde o primeiro momento em que colocou os olhos nela.

Ela era a coisa mais perfeita que ele já tinha visto.

Ela tinha um sorriso meigo, um olhar brilhante. Ela ainda sonhava. Ela vivia em um mundo onde todos os seus sonhos eram possíveis. E, todos os dias da vida dele, a única coisa que ele pensa é em trazer aquela menina sorridente de volta. Em fazê-la ver o mundo como algo bom. Em vê-la perceber que nem tudo está destruído. Que ainda há uma chance para a humanidade.

Ele só pensa em como o sorriso dela ilumina cada maldita noite de fome ou frio que ele passa. Que sonhar com ela, mesmo acordado, é a melhor coisa que ele faz. Que ele espera que um dia seja merecedor do seu afago, do seu carinho. Do seu amor.

Se ela olhasse agora em seus olhos, ele a tomaria em seus braços e diria que está tudo bem. Que ele não vai abandoná-la. Que ele nunca iria.

Mas ela não tinha forças para olhá-lo. Ela só queria que ele saísse de sua vista para que pudesse esquecer a visão que teve.

Da única pessoa que ela queria estar, a rejeitando.

Era só um olhar que não foi dado. É sempre assim. Nenhum dos dois tem forças o suficiente para essa conversa. O medo de se afastarem com a descoberta, com a rejeição. Ambos imaginam não serem dignos um do outro. Mas não existe ninguém em todo o reino que seja mais digno um do outro do que eles.

Eles deveriam saber. Ela deveria saber. Ninguém nunca se esforçou por você, Olivia. Por que alguém o faria, se não por amor? Em um mundo onde o egoísmo impera, onde ninguém se importa com ninguém... você deveria saber, Olivia. Que toda vez que ele te olha, ele queria colocá-la em seus braços e te aquecer por toda a vida. Você deveria...

Deveria saber que não é normal a forma como ele se preocupa com você. Que se certifica se está bem ou viva, em uma vila onde já se encontrou cadáveres com mais de um mês de esquecimento. Você deveria saber...

Harold saiu batendo os pés e xingando a amiga de algo que ela não conseguiu distinguir. Mas ela sabia que não era uma palavra bonita.

Ela voltou seu corpo pesado para a cama, querendo esquecer o sonho que dominou sua razão por segundos. Que a fez expulsar seu único amigo de sua casa só para não ver, nos olhos dele, a verdade.

Que ela era melhor sozinha.

Após alguns minutos rolando de um lado a outro sem conseguir dormir, batendo os dedos na madeira da cama, revirando-se para lá e para cá, buscando uma única posição que a fizesse voltar a dormir... ela desistiu.

Sabia que não conseguiria voltar ao sono, pois o medo de continuar o sonho de onde parou era sufocante. Ela havia pedido para sonhar com Harold, mas não para que ele a rejeitasse no sonho... Mesmo que, bom, ele estivesse sem camisa e tão suculento aos seus olhos.

Ela queria sonhar com ele a tomando de formas impuras e sujas. De formas que ele nunca tinha tomado ninguém... Ela queria ser dele. Em seus sonhos, porque sabia que, na vida real, isso não seria possível.

Ela só queria...

Mas não podemos julgar a menina. Ela estava mal. Seu corpo precisava de proteínas. Seu estômago a lembrou disso, fazendo-a pular de sua cama tão rápido.

Seus passos arrastados para fora do quarto, seu corpo sonolento, sua mente trabalhando em mil coisas diferentes para tentar não pensar em coisas impuras com Harold ou, principalmente, não pensar em seu sonho com ele.

Seus olhos correram por toda a sala. Sua cozinha estava impecável. Tudo organizado. A carne estava no pequeno varal que ficava em cima do forno para que secasse. Ela se perguntou quanto tempo dormiu, porque ele não só limpou tudo como fez algo para ambos comerem. Os pratos estavam sobre a mesa. E ela se amaldiçoou por ser tão estupenda com Harold. Ele saiu com fome por sua causa.

Ele fez mais do que deveria e nem ao menos se alimentou depois. Nem ao menos levou um pouco da carne para si.

- Burra... - Ela disse, batendo em sua própria cabeça como se fosse acalentar a sua dor. O seu desprezo. - Ele realmente nunca iria amar uma idiota bruta como você. Além de tudo, mal agradecida. - Ela deu um grunhido de raiva que fez até seu estômago estremecer em repulsa a si mesma.

Como podia ser tão rude com alguém tão doce feito Harold? Não importa o que seu subconsciente ferrado lhe mostrara, ele nunca seria tão rude assim. Você sim, ela pensou.

E, pela primeira vez, ela estava certa sobre isso. Ela podia ser rude o quanto quisesse, ele jamais a trataria dessa forma. Jamais seria rude com ela.

Ele só queria o seu bem. Só queria protegê-la, até mesmo dele. Mas ela não via as coisas com clareza. Ela só estava tentando desesperadamente se manter viva. E isso custava tanto para ela. Para eles.

A menina respirou fundo, tentando afastar as lágrimas que se formavam em seus olhos. Tentando tirar da mente a forma como tratou Harold , como sempre o trata. Mas foi em vão.

Lá estava ela, caída no chão em lágrimas. Por tanto. Por medo, por dor, por rejeição. Ela sofria de uma forma que, se não chorasse, com certeza a consumiria em algum momento.

Ela queria aprender a ser mais gentil com ele. Queria ser merecedora do seu amor. Mesmo que ele não a venha a amar como ela deseja.

            
            

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