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Mesmo não desejando estar com ninguém, Harold seria alguém por quem Oli faria um esforço para estar ao lado. Ele sempre se esforçava para estar ali, para estar com ela. Era bonito e muito atraente. Eles se conheciam desde a infância, quando a dor ainda não os consumia.
Os pais de Harold, assim como o tio de Oli, trabalhavam na mina - a única fonte de renda da vila. Há dois anos, houve uma explosão. Eles acabaram morrendo no acidente. Depois disso, tanto Harold quanto Olivia foram incapazes de trabalhar na mina novamente. Olivia usou do ofício que seu tio lhe ensinara para sobreviver. Nem sempre conseguia vender suas caças, mas não desistia. Ter o que comer já era mais que suficiente para a jovem que já passara noites em claro por fome.
Após guardar o pequeno pedaço de pão, a garota seguiu em direção à floresta. Eram por volta de 7h da manhã, e ela sabia que deveria ter saído mais cedo. Ceder ao sono daquela forma não a ajudaria em nada.
O dia estava nublado, mas não parecia que iria chover. Olivia conhecia a brisa da floresta. Mesmo com as gotas de orvalho sobre as folhas, sabia que não passaria de uma leve neblina. Seus passos eram firmes em direção às armadilhas deixadas no dia anterior. Ela amava seu arco, mas não podia contar apenas com ele. A ideia de conseguir um cervo era tão suculenta... Ela não comia há exatamente três dias. Algumas migalhas de carne seca que encontrara em cima do fogão foram tudo o que conseguiu digerir em casa. Mas aquilo só parecia aumentar sua fome.
Não havia muitos caçadores na vila, o que ajudava Olivia a não perder suas presas com frequência. As pessoas do vilarejo preferiam trabalhar na mina. Algumas mulheres faziam ponto nos bares ou nas esquinas, mas nenhuma dessas alternativas era para Olivia. Ela não queria correr o risco de morrer soterrada, fora que só a ideia de estar na mina já trazia lembranças dolorosas de como devia ter sido difícil a morte do tio.
Olivia nem chegou a conhecer os pais. Tudo de referência que tinha da vida vinha do tio. Ele era doce, gentil e muito educado. A ensinou a ler, escrever, caçar, sobreviver nesse mundo que não foi feito para garotas. Dizia que, quando ela crescesse, poderia ir para outros reinos. Contava histórias de lugares com mais igualdade, com mais respeito. Ela chegava a sonhar com a ideia de viver em um lugar onde homens como Gregue não a olhassem como se fossem devorá-la a qualquer instante. Chegava a fechar os olhos imaginando um lugar bonito, onde não sentisse fome a todo instante, onde o governo se importasse com o povo, com as mulheres - e não somente com suas virgindades.
Ela se esforçava para seguir os sonhos, mas, depois da morte do tio, a menina tinha algo mais importante: manter-se viva era sua maior preocupação. A dor constante que a fome lhe causava era sufocante. Bebia uma quantidade absurda de água para tentar acalmar a fúria de seu estômago. Seu maior tempo sem comer foi de cinco dias. Quando chegava ao quinto e seu corpo era incapaz de sair da cama, Harold aparecia preocupado por não vê-la e lhe trazia algo que deveria comer naquele dia, empurrando goela abaixo da menina - que, mesmo em estado deplorável de fome, protestava. Na época em que ele ainda não era oficial, só tinha uma refeição por dia. Ela sabia que ele abria mão da própria comida para alimentá-la.
Ela sentia inveja do amigo enquanto ele estudava para se tornar um oficial. Mulheres não podiam fazer parte da guarda do reino. Durante o treinamento, os jovens recebiam uma refeição por dia. Após se tornarem oficiais, duas. Mas a maioria dos guardas era corrupta e sempre dava um jeito de tirar o pouco que o povo tinha, aumentando suas vantagens. Harold não era assim - pelo menos com a amiga. Preferia ficar sem a lhe negar algo. Sempre fora assim.
A ligação que tinham era surpreendente, bonita e tão pura. Ele a entendia quando mais ninguém se esforçava. Sabia dos medos que a consumiam, do medo constante de ser deixada, de ser incapaz de ser amada. O abandono dos pais sempre a fez se manter fechada para o mundo. Mas ele sabia - ela precisava dele. E ele não fazia ideia do quanto precisava dela. Essa era a constante na vida dos dois. Se completavam, se mantinham bem, mesmo sem saber que faziam isso. Harold sempre passava pela rua de Olivia para ver se ela estava bem. Ela sempre contornava pela frente da vila para vê-lo em seu posto, para saber se estava bem... Se cuidavam, se protegiam, mesmo que inconscientemente.
O medo atual dos jovens era a idade se aproximando para Olivia. Ela ainda tinha 19 anos, mas os tempos passavam rápido. Ela temia não sobreviver até sua liberdade. Ele temia não tê-la quando essa liberdade chegasse. Tinha medo que ela escolhesse ir com um nobre, em vez de viver na miséria constante. Sabia que sua beleza atrairia vários homens. Já não era fácil mantê-los longe. Tinha sorte que ela passasse mais tempo na floresta tentando achar algo para comer do que na rua à espera de alguma migalha. Isso deixava seu coração leve. Não que ela fosse se deixar ir para essa vida - mas que escolha tinha? Ele entendia que qualquer vida que pudesse dar a ela não chegaria aos pés do que ela merecia. Queria poder fugir com ela para outro reino. Juntava cada maldita moeda que podia, na esperança de um dia ter essa chance. Mas não se deixava enganar: ela era mais do que ele podia ter.
Ele só não sabia o que a menina realmente sentia por ele. Do quanto ansiava, inconscientemente, que ele a tirasse daquela merda e a levasse para um mundo melhor. Que ninguém no mundo era importante para ela, mas ele era. Que ela não se deixava estar perto de ninguém, mas sentia falta dele. Ele não sabia quantas vezes foi o motivo dos sonhos dela. Até mesmo agora, naquela floresta, sonhando em conseguir um animal grande o suficiente para saciar sua fome enquanto dava mordidas desesperadas no pedaço de pão que ele lhe dera, ela imaginava quanto de carne conseguiria dividir com ele.
O vento soprava forte sobre as árvores, e a menina sentia que aquele não seria seu dia novamente. Foi quando ela avistou o imenso cervo pastando tranquilamente na floresta. Era de uma beleza extraordinária, e se não estivesse sedenta de fome, com certeza o deixaria passar. Mas agora, depois de seis horas andando pela floresta, seu corpo já fraco pelo cansaço, não podia se dar ao luxo de deixá-lo ir. Precisava dele. Ansiava desesperadamente por ele, porque seu corpo faminto de três dias sem nada além de migalhas gritava por socorro. Sua vida não era dada ao luxo de fazer esse tipo de escolha. Poderia ter feito se tivesse ficado próxima à cidade. Poderia passar mais um dia graças ao pedaço de pão que Harold lhe dera. Mas ela estava cansada de não conseguir nada e foi além do que deveria. Agora, toda a força do corpo estava esgotada.
Ela precisava daquela criatura se quisesse seguir mais alguns dias, se quisesse chegar a mais um ano - na esperança vã de algo que nem ela sabia. Já agradecia o fato de o inverno ainda estar longe, pois não havia abastecido nada em casa para o período.
Olivia olhou novamente para o animal, a cerca de quatro metros de distância. Tentou ao máximo não fazer barulho para não o assustar. Corrigiu a postura e a respiração e então puxou a corda do arco. A flecha acertou em cheio o olho esquerdo do animal. Ela tinha uma ótima mira - anos de prática e esforço. Lá estava o animal, caído no chão, pronto para o golpe final.
- Desculpe! - Ela disse, afastando a dor no peito ao apunhalar o animal ferido que seria seu alimento pelos próximos dias.