Capítulo 5 5

- Menina, não brinca! - Patrícia arregala os olhos totalmente estarrecida. - Sério que aquele raparigueiro te traiu?

- Seríssimo, por isso vim pra cá, tentar respirar novos ares. - dou de ombros, buscando soar natural e não tão melancólica.

- Você e Miguel poderiam dar as mãos e sair voando. Eu hein, xô xô com essa zica, Dani. - ela faz um gesto caricato com os dedos, como se afastasse algo ruim ao seu redor.

- Nossa, obrigada pela solidariedade. - murmuro, me jogando no sofá de frutas vermelhas também.

- Oxente, só fiquei surpresa. Homem realmente não vale nada, exceto, talvez, o próprio Miguel. Ah, ele parece ser uma exceção, sem dúvidas. - garante suspirando. - Não é à toa que tem nome de anjo.

- Arcanjo. - a corrijo, apesar de ficar um pouco tentada com sua descrição sobre Miguel.

- Dá no mesmo, vem tudo do céu! - contesta veementemente. - Tem algo pra beber? Precisamos comprar coisas gostosas pra tua casa e mudar essa decoração, sangue de Jesus. - Pati muda de assunto, passeando pela pequena sala e observando tudo ao redor.

Eu só dou risada de sua irreverência. Talvez seja isso que eu preciso, alguém que ouça minha trágica história e não faça drama. Afinal, minha vida não acabou, certo? Está só começando.

Nem parece que cheguei ontem a Ipojuca, pensei que ficaria isolada como um pinguim no verão. Mas, nada disso ocorreu, o destino gosta de brincar conosco mesmo. Pois, cá estou eu, já sorri muitas vezes e tomei cerveja com alguém que praticamente acabei de conhecer, como se já conhecesse há anos.

Quando Patrícia termina de inspecionar minha casa, decidimos sair para comprar alguns ítens. Dessa vez, como não tinha ninguém roubando minha atenção, consegui reparar bem no ambiente ao meu redor. É tudo muito lindo, as pessoas são receptivas e extrovertidas, pelo menos algumas que conheci. O clima, o ar puro e limpo que respiramos... Todo o conjunto é bem apreciável, fora a praia de águas cristalinas, com uma infinidade de areia branca e fofinha. O entardecer deslumbrante, a lua que brilha gigante e gloriosa no céu estrelado. Olha, eu poderia ficar aqui eternamente, porém preciso me lembrar de que não tenho emprego e minha vida não é em Pernambuco.

Contudo, posso aproveitar essas férias da melhor forma possível e é isso o que farei. Ontem foi só o primeiro dia de muitos, terei bastante tempo para aprender sobre a cultura do local, para namorar o pôr do sol... Quero sentir a brisa do mar bater contra meu rosto, observar o amanhecer no píer que tem próximo à praia, caminhar pela areia branca, mergulhar e ver a vida existente abaixo das águas. Quero viver novamente, longe da sombra de Richard e tudo de ruim que ele representou para mim.

- Terra pra Dani. - ouço a voz de Patrícia e foco meus olhos, vendo-a acenar em frente ao meu rosto.

- Desculpe, estou assimilando esse lugar, é tudo tão lindo. Me sinto bem aqui. - confesso sorrindo feito uma garotinha deslumbrada.

- Que massa, assim você ficará mais tempo. Eu queria muito uma amiga, depois que minha quase irmã faleceu. - percebo que o brilho e a alegria no olhar de Pati desapareceram.

Pelo menos momentaneamente.

- Sinto muito. - toco delicadamente seu ombro.

- Não sinta, está tudo bem. Até ganhei outra Dani, olha só. - ela afasta as nuvens escuras que outrora lhe afligiam.

- Outra Dani? - ergo a sobrancelha direita em sinal de confusão.

- Então, não te contei. Talvez por não estar preparada, mas acho melhor eu falar logo... - Patrícia crispa os lábios, buscando algo na memória. - A irmã de Miguel, Daniele, era minha melhor amiga. Ela faleceu há um ano em um acidente de carro.

- Nossa! - é tudo o que consigo formular. - Foi por este motivo que Melanie se aproximou, será?

Me sinto um tanto desapontada, Mel não gostou de mim pelo que sou e sim pelo que meu nome representa a eles.

- Preciso confessar que o teu jeito e até um pouquinho tua aparência, realmente fazem que nos lembremos da Dani, ela era bem assim... - Pati se alegra ainda mais ao mencionar a amiga. - Animada, mas um pouco tímida, explosiva e ao mesmo tempo calma, além de também não ter tido muita sorte no amor.

Suspiramos juntas, meio sonhadoras.

- Nunca imaginei isso, achei que a tia da Mel estava viajando ou algo assim. - minha voz soa um tanto pesarosa.

- Pois é, foi um bocado difícil pra eles. Principalmente para a Mel, já que as duas eram bastante apegadas. - Patrícia continua relatando a história. - Dani era praticamente uma mãe para a menina, que cresceria sem uma referência materna, não fosse ela.

Sinto um aperto no coração ao ouvir tal relato, tanto que ele fica pequenino feito um caroço de azeitona.

- Deve ter sido complicado. - constato baixando os olhos para os meus pés.

- Tudo bem, ambos estão superando. Pode ver a Mel, ninguém diz que ela sofreu duas perdas na curta vida. - Pati observa e eu só faço que sim com a cabeça.

Porque é a mais pura verdade, ainda não conheci uma criança tão inteligente e expansiva com a pouca idade dela.

- Quantos anos ela tem, afinal de contas? - inquiro curiosamente.

- Sete, acabou de fazer. - Patrícia afirma, sorrindo de canto.

Dá para notar que nutre um profundo carinho pela menina.

- Imaginei que fosse mais ou menos essa idade mesmo, apesar de que, pela forma como a Mel se expressa. Eu daria uns dez anos. - argumento, sorridente.

- Mel sempre foi assim, desde pequenininha. Na verdade, ela e Miguel são os xodós aqui de Ipojuca, todo mundo se preocupa com eles. É como se os dois fossem nossos bichinhos de estimação ou nosso patrimônio cultural. - ela dá uma risadinha contida após a comparação.

- Eu verdadeiramente acho que ele parece muito com um cachorrinho mesmo. - confirmo brincalhona e nós duas caímos na gargalhada.

Nas próximas horas engatamos em diversos assuntos, enquanto Patrícia me ajuda a redecorar a casa e quando dou por mim já são 18h30min.

- Menina, a hora voo, você precisa se arrumar! - Patrícia me lembra, afoita.

- Para que? Não estou indo a um encontro. - retruco, refazendo meu coque que jaz todo desfeito.

- Após me contar sua triste história, acha mesmo que não serei seu cupido? - provoca divertida.

- Eu não preciso de um cupido, Pati. Só quero viver minha vida em paz. - explico indo tomar banho.

- Tanto faz, algo me diz que você é uma boa mulher. Miguel precisa de alguém assim. - Patrícia responde displicentemente, como se eu tivesse caído do céu.

- Olha, eu só estou aqui de passagem. Meu foco não é me envolver com ninguém, aliás, eu nem acharia justo fazer algo do tipo com um homem que tem uma filha. Fora o que ele passou com a ex-esposa. - pondero, usando um tiquinho da minha sensatez.

- Tudo bem, sem pressão. Só vá se arrumar porque está cheirando a produto de limpeza. - ela faz uma careta cômica.

- Já te disse que você é uma chata? Acabei de te conhecer e já cheguei a essa conclusão. - cutuco Patrícia em tom de brincadeira.

Ela só ri e dá de ombros. Uma hora depois, estou pronta.

- Uau, você está um arraso! - Pati leva a mão direita à boca em um gesto exagerado.

- Que isso, só tomei um banho e troquei de roupa. - protesto e fico até um pouco acanhada.

- Nossa, beleza natural é uma coisa, né? Para eu ficar assim preciso me emperiquitar toda. - Patrícia solta um muxoxo.

- Sem essa, você é maravilhosa, eu queria ter essa cor bronzeada e esses olhos esverdeados. - a elogio, fazendo meu papel de amiga que empodera a outra.

- Tá, chega de rasgação de seda. Vá já comer aquele bendito bolo com Miguel, quero dizer, com a Mel. - ela ri debochada.

Eu apenas ignoro e saímos, me despeço de Patrícia, tranco a porta e caminho em direção ao mercadinho do Miguel. Não fica muito longe, talvez uns sete minutos andando. Chegando lá, ele já está fechando o comércio, mas não vejo sinal da Mel.

- Boa noite, Miguel. - cumprimento sem saber o que fazer, agarrando meu vestido em seguida, para tentar controlar a ansiedade e o nervosismo crescente dentro de mim.

- Boa noite, Daniele. - a aparência dele é um tanto abatida.

- Você está bem?

- Sim, só um pouco cansado. - ouço em resposta. - E você?

- Estou bem. - Miguel não parece apenas cansado. Contudo, não posso forçá-lo a se abrir. - Mel está? - mudo de assunto para não ser intrometida.

- Sim, ela foi tomar banho, disse que não queria te receber cheirando a "trabalho". - faz aspas com os dedos e me dá um sorriso de canto.

Eu dou risada também.

- Trabalho? Lembra que exploração infantil é crime. - faço uma piadinha, me sentindo um por cento mais à vontade.

- Não conta pra ninguém. - ele une às duas mãos em forma de prece, eu sorrio novamente pela brincadeira. - Mel é uma garota peculiar. - e abaixa os olhos, encabulado.

- O pai dela também. - escapa - Ainda estou tentando entender sua referência aos fones quebrados.

- Esquece esse assunto, eu nem sei por que falei aquilo. - Miguel coça a nuca constrangido.

Esse deve ser um dos tiques dele, já descobri dois.

- Tudo bem, você foi espontâneo.

- Certo, entra. Você pode esperar a Mel lá dentro. - ele indica uma porta aos fundos, deve ser a que dá acesso à casa deles.

Eu o acompanho, ainda pisando em ovos. Observando que Miguel parece mais abatido a cada minuto, não obstante, tenta disfarçar estoicamente.

Passo os olhos ao redor, de um jeito contido, óbvio. Percebendo que a casa é simples, mas bem organizada. A sala é ampla, já a decoração varia de preto, cinza e branco, achei diferente, porém harmonioso. No canto direito há uma pequena estante com vários livros, ao lado tem uma vitrola e na parede oposta fica um aquário razoavelmente grande.

- Nossa!

- O que foi? Não tive tempo de organizar a casa, me desculpe. - argumenta na defensiva e morde o lábio inferior.

- Não, que isso, só achei lindo seu aquário. E você tem uma vitrola? - questiono, atestando que sou uma completa tapada.

Se estou vendo uma, é porque ele tem, não é?

- Ah sim, eu gosto de música antiga, e nada melhor do que ouvir em vinil. - Miguel relaxa um pouco a postura e me repreendo em pensamento por invadir tanto a privacidade daquela pequena família.

- Que massa. - eu digo, pronunciando essa gíria que sempre ouço Mel e Patrícia dizerem, enquanto aquele tão costumeiro sorriso bobo não abandona meus lábios.

Por constatar que eles devem levar uma vida bem tranquila aqui em Porto.

- Olha só, já está até falando como a gente. - Miguel brinca e eu devolvo sorrindo ainda mais.

Vou caminhando em direção ao aquário, vendo que as pedrinhas no fundo são coloridas. Talvez Mel as tenha escolhido, os peixinhos diferem de tamanho, mas não são maiores do que um dedo indicador. A luz que reflete no aquário varia de azul, verde e roxo, dando ainda mais visibilidade para o colorido dos peixes. Também noto algumas algas na decoração e várias outras coisas que não sei descrever ao certo, enfim. Eu poderia ficar horas admirando a calmaria que essas águas transmitem. Já que, devido ao filtro, elas tremeluzem fracamente, enquanto as luzes intercalam de cor e os peixinhos nadam tranquilamente.

- Lindo. - me ouço elogiar.

- Gostou? - Miguel me tira dos meus devaneios.

- Muito, sempre gostei de aquário, só não levo jeito para cuidar. - dou de ombros, consternada.

- Não tem segredo, eu gosto bastante de aquarismo. Se quiser algumas dicas... - a frase morre no ar.

- Seria ótimo. - afirmo ainda sorrindo, sentindo-me incrivelmente tranquila.

- Você se importa de esperar um pouco? Acho que a Mel já está descendo e eu também preciso de um banho. - anuncia educadamente e aponta para o próprio corpo.

Já eu escolhi uma roupa simples e fresca para não passar calor. Pois aqui deve estar uns 40° agora, brincadeira. Com certeza menos, mas a sensação térmica não colabora.

De toda forma, só prendi meus cabelos em um rabo de cavalo, pois odeio ele caindo por meus ombros no calor. Meu vestido é branco, levemente decotado, um pouco acima dos joelhos e com algumas flores azuis. Além disso, só passei uma colônia com cheiro de morango, não estou aqui para conquistar ninguém. Em contrapartida, também não preciso sair toda baranga por aí.

- Não se preocupe, eu espero. - Miguel morde ligeiramente o lábio inferior e noto que está reparando em mim.

Visto que seus olhos passeiam pelo meu corpo e se demoram por alguns segundos em minha boca. Por sinal, o que Miguel diz a seguir, me deixa totalmente desconcertada e fora de órbita.

- Você está... - ele hesita antes de continuar, desviando o olhar por um breve instante antes de voltá-lo a mim novamente. - Muito linda. - tanto que o elogio quase não sai.

- Obrigada. - agradeço, me sentindo uma adolescente, sério.

Com direito a bochechas coradas e tudo. Eu fiquei vermelha? Jura?

- Bom, quer ouvir alguma coisa enquanto aguarda? - Miguel desvia o rosto outra vez e cria imediatamente uma distância razoável entre nós, como se fosse uma barreira segura, e vai em direção à vitrola.

Em seguida acordes muito suaves invadem meus ouvidos.

- KC and The Sunshine Band?

- Please don't go. - completa e sorri ao constatar que eu conheço a banda.

- Também gosto de música antiga, mas sou modesta e ouço pelo Spotify. - gracejo, apreciando a melodia.

- Eu também, não é como se eu pudesse levar a vitrola pra todo canto. - acabo dando um sorrisinho de lado por ser tão idiota. - Já volto. - e se afasta.

Não consigo deixar de reparar em suas costas largas por baixo da camiseta de malha. Miguel não é bombado, é magro e alto, eu diria que normal. Todavia, algo nele realmente chama a atenção, talvez seja o conjunto todo, olhos cor de mel, covinhas, costas largas, jeito de bom moço... enfim. Terra pra Daniele!

Enquanto aguardo, permaneço admirando os peixinhos, ainda ouvindo música, até que Mel se materializa ao meu lado.

- Oi, Dani! - ela sorri me mostrando a janelinha.

- Oi, Mel. - me abaixo e lhe dou um abraço apertado.

Ela é tão adorável, aliás, Mel tem os mesmos olhos do pai. Os cabelos são num tom de castanho queimado do sol, pele ligeiramente bronzeada também; mas, dá para notar que Miguel abusa do protetor solar na filha. As covinhas irresistíveis são as mesmas, a janelinha na frente então, nem se fala, uma fofura. Mel também não é muito grande para sete anos, eu diria que padrão. Concluindo, um doce de criança.

Nós duas começamos a conversar sobre os peixes e, como eu suspeitava, as pedrinhas coloridas ao fundo do aquário foram escolhidas por ela. Porém, logo ouvimos um barulho vindo do andar de cima.

Arregalo os olhos, preocupada e Mel dispara pelas escadas.

O que eu faço? Devo acompanhá-la? Mais algum tempo e a resposta vêm:

- Dani! - é a voz angustiada da Mel.

Eu corro em direção às escadas que a vi sumindo, percebendo que existem algumas portas no corredor. Obviamente deve ser onde ficam os quartos, vejo que uma está entreaberta e me aproximo devagar. Não quero invadir a privacidade deles ainda mais.

Quando olho ligeiramente para dentro, vejo que Mel está abanando o pai de um jeito estabanado. Dessa vez entro com tudo, notando que Miguel derrubou algumas coisas que ficavam em cima da cômoda e a cor de seu rosto sumiu. Ele está sentado no chão, encostado na cama.

Sabia que ele não parecia apenas cansado.

- Está tudo bem? - que pergunta idiota, claro que não.

- Sim, não se preocupe. Eu só fiquei um pouco zonzo. - garante, claramente envergonhado por eu estar ali.

- Certo. - me aproximo devagar, vendo que Mel está aflita e com os olhos marejados.

Tadinha, deve ter ficado preocupada.

Eu coloco o braço direito de Miguel em cima do meu ombro e nós duas o ajudamos a deitar na cama. Devido ao contato e ao fato de ele estar sem camiseta, percebo que Miguel está quente demais. Consequentemente encosto meu rosto no dele sem cerimônia, para me certificar.

- Você está com febre, vou chamar uma ambulância. - informo preocupadíssima.

- Não. - ele segura meu pulso com delicadeza. - Estou bem, só preciso descansar.

- Você está ardendo em febre, Miguel. Não acho sensato deixá-lo assim. - minha voz soa estranhamente rouca, já o coração bate como louco dentro do meu peito.

Enquanto argumento com Miguel, Mel não diz nada, permanece com os olhos fixos no pai.

- Cuida da Mel, por favor? Acho que vou... dormir... - e apaga.

Eu corro lá embaixo, com Mel em meu encalço e pego um pouco de água bem morna. Não sou boa em cuidar de ninguém, mas preciso cuidar de Miguel. Ele pareceu tão vulnerável há pouco, além disso Mel está visivelmente alarmada com o estado do pai.

Quando retorno, ela aponta onde ficam os lavados. Molho uma toalha e coloco sobre a testa de Miguel.

- Você cheira a morangos. - ouço em resposta.

Ele não está dormindo, está delirando.

- Papai vai ficar bem? - Mel pergunta e seus olhinhos estão completamente vermelhos.

- Vai sim, meu amor. Vou chamar uma ambulância. - afago levemente seus cabelos para confortá-la.

Pego meu celular e estou sem sinal.

Droga!

Faço menção de descer novamente, para pegar o telefone sem fio que vi na sala, mas sou impedida.

- Não vá, meu amor. Não de novo. - a voz de Miguel soa sussurrada e sofrêga.

- Mel, pode buscar o telefone, por favor? - peço educadamente.

Nos entreolhamos e ela dispara porta afora, quando retorna vejo o telefone fixo em uma de suas mãos pequenas.

            
            

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