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- Prefiro não contá-la, não ainda. - me esquivo e Miguel logo percebe que sem querer foi invasivo.
- Tudo bem, mas pelo menos come o bolo. - ele recua estrategicamente.
- Só se você comer também. - proponho e Miguel faz uma careta hilária. - Apenas um pedaço, vai ajudar a tirar o amargo da boca que os antibióticos deixam.
- Certo. - aceita vencido e eu sorrio vitoriosa, na sequência entrego meu pedaço para ele e corto outro para mim.
Miguel saboreia o bolo, enquanto eu faço o mesmo, sentindo o açúcar tomar conta dos meus sentidos e praticamente passear por minhas veias.
- Está gostoso. - constato fechando os olhos, para apreciar um pouco mais o sabor.
- Concordo, não sou muito chegado a doce, mas Bernardo sabe o que faz. - Miguel observa, sorrindo marotamente para mim.
- Vocês são muito amigos, não é? - tento achar um assunto confortável, que não seja minha vida particular.
- Sim, desde que me mudei para Porto de Galinhas. Bernardo já me ajudou muito. - outra confissão.
- Queria te perguntar uma coisa - recebo seu olhar curioso em resposta. -, o que quis dizer com "é por essas e outras?"
- Ah, eu acredito que já expliquei o meu receio, mas não posso ignorar o que você fez pela Mel e por mim, mesmo sem ter obrigação nenhuma. - Miguel faz uma pausa, como se procurasse as palavras certas. - Acho que seu jeito espontâneo me desarmou um pouco.
- Quer dizer que geralmente você não é mudo? - questiono de um jeito sarcástico.
Deve ter funcionado, porque Miguel ri gostosamente, inclinando a cabeça para trás.
- Não, sou muito na minha, confesso. Contudo, ao menos sei manter um diálogo coerente, bom, na maioria das vezes sim. - Miguel explica em um tom brincalhão e vai parando de rir aos poucos.
- Olha só, fico feliz em saber. Se bem que, pelo menos nos últimos dias, você deixou essa questão um pouco clara para mim. - pondero, despertando imediatamente a curiosidade dele.
- Como assim? - Miguel une às sobrancelhas e aguarda.
- Bom, todas às vezes que fui te visitar, você até conversou civilizadamente comigo. Acho que isso conta, não conta? - ironizo, me sentindo um pouco mais segura com a estranha aproximação entre nós.
- É um avanço, penso que se eu ainda continuasse te ignorando, na certa apanharia do Bernardo. - Miguel responde, entrando no clima de descontração.
- Por quê? - dessa vez não faço esforço para esconder minha própria curiosidade.
- Bernardo simpatizou com você de cara, segundo o que ele mesmo disse: "Nem todas as mulheres cuidariam de uma criança que não é dela, sem ganhar nada em troca." - parafraseia a fala do amigo, fazendo aspas com os dedos e eu faço uma careta.
- Ele realmente falou isso? - fico um pouco desconfortável.
- Sim. - Miguel coça o queixo.
- Seu amigo pensa muito mal do meu sexo. - faço um bico de canto.
- Ao contrário de mim que tive algumas experiências para formar uma opinião concreta a respeito. Porque, bem, quando eu preciso, sempre tenho a Lúcia e algumas vezes Patrícia para cuidar da Mel. - reflete com um quê de gratidão na voz.
- Foi difícil cuidar da Mel sozinho? - me vejo cada vez mais interessada em sua história.
- Um pouco, mas minha irmã sempre esteve ao meu lado, me dando apoio, sendo uma mãe pra Mel. Por isso meu fardo ficou leve. - e seu tom soa carregado de nostalgia.
- Ela deve ter sido uma boa irmã.
- Ela foi.
Um silêncio confortável se instala entre nós por alguns instantes.
- Está ficando tarde, preciso ir. - anuncio, me levantando. - Foi um prazer, Miguel.
Desfaço a atmosfera de melancolia que se formara. Não posso ficar deprimida de novo, do contrário, ninguém conseguirá me arrancar do fundo do poço.
- Mas nem assistimos ao filme. - Miguel observa, levantando-se delicadamente também.
- Podemos assistir outro dia, quando Mel estiver acordada, que tal? - tento sair pela tangente.
- Está certo. - aceita resignado. - Queria poder te acompanhar.
- Não há necessidade, eu moro a menos de dez minutos daqui.
- Eu sei, mas não é muito cavalheiresco da minha parte te deixar ir sozinha. - Miguel resmunga, com um certo pesar na voz.
- Tudo bem, quando estiver melhor você pode me acompanhar. - proponho displicentemente, não esperando que realmente algo assim aconteça.
- Pretende ficar quanto tempo em Porto? - ele muda relativamente de assunto.
- Não sei, o tempo que meu coração desejar, ou enquanto durarem os estoques. - afirmo divertida, sem saber ao certo se Miguel entenderá minha referência idiota.
Para minha surpresa ele sorri de leve.
- Você é engraçada. - ouço em seguida.
Ofereço também um sorriso singelo e me despeço:
- Boa noite, Miguel.
- Boa noite, Dani. - ele retribui e me dá um beijo rápido na bochecha, o que causa um estranho formigamento em todo o meu corpo.
(...)
Já em casa, como de costume, repasso toda minha conversa com Miguel. Ele realmente estava disposto a se abrir comigo? Contar de fato toda a sua história? Patrícia tomou a dianteira, eu sei. Porém, ouvir da própria pessoa é razoavelmente diferente, é como se alcançássemos outro nível. Se bem que, Miguel deixou claro o que pensa sobre Mel se apegar e tudo mais, também explicou o porquê de baixar um pouco a guarda com relação a mim. De todo modo, não esperava que Miguel me contasse sobre a irmã.
Mas, ele estava inclinado a isso, correto? Eu que o impedi.
Não sei se estou preparada para ouvir suas confidências, é bobagem, estou ciente disso. Entretanto, tenho em mente que, quando você se abre com alguém, querendo ou não, um vínculo é criado, nem que seja um fiozinho transparente de intimidade. E eu não posso me tornar íntima deles, não mais do que já estou. Essa história de se apegar é uma via de mão dupla, como mencionei a Miguel, eu também corro esse risco. Aliás, percebo, desde já, que o risco é sério e real. Como posso explicar, eu me senti extremamente bem em passar minha noite conversando com Miguel, fiquei emocionada pelo presente que ganhei. Inclusive, estou com o cartão colorido em minhas mãos nesse momento. Isso é um sinal, não é?
Preciso ser cautelosa, não quis entrar em detalhes com Miguel de quanto tempo ficarei em Porto, pois nem eu mesma sei. Contudo, meu dinheiro não durará eternamente e, como eu escolhi uma casa avulsa para alugar, estou gastando bem mais, em comparação a me hospedar em alguma pousada. No entanto, prefiro assim, não queria dar de cara com várias pessoas todos os dias, ter que dar bom dia e sorrir forçadamente na hora de tomar café. Nesse caso, para mim, a solidão está sendo mais confortável. Eu até me surpreendi quando achei essa casa, o valor em si era demasiado superior ao que eu poderia bancar. Não obstante, mesmo assim, resolvi ligar e tentar negociar, então, depois de falar meu nome, acabei conseguindo um aluguel muito mais razoável, que coubesse no meu orçamento. Estranho, não? Meu nome me proporcionou muitas coisas aqui em Porto de galinhas.
Porém, devo admitir, foi bom ter conhecido Patrícia e àqueles dois, não esperava isso de forma alguma. Pensei em me isolar por aqui, não imaginei que faria amizades.
Agora, parando para refletir, como será que Miguel se sentiu? Vendo eu cair de paraquedas em sua vida, tendo o mesmo nome de sua irmã falecida e, como ele mesmo mencionou, com até alguns traços de sua personalidade. Sem dúvidas deve ter sido no mínimo complicado para Miguel, talvez tenha doido olhar para mim. Isso justifica um pouco a frieza dele e, ao mesmo tempo, sua atitude confusa. Aliás, foi assim que ele definiu como se sentiu...
Confuso.
Acho que se eu estivesse em seu lugar, por certo também me sentiria assim. Afinal, a ferida é super recente, imagine, você tentando superar uma perda e aparece alguém do nada para te lembrar. Esse alguém se aproxima de sua filha rapidamente e se enfia em sua casa. Olha, analisando por esse ângulo, eu que fui inconveniente.
Não ponderei o que minha presença poderia causar a Miguel. Com tudo isso em mente, alguns minutos depois, eu adormeço.
(...)
Hoje eu e Patrícia decidimos levar Mel para passear, como não tenho a mínima noção do que fazer aqui. Pati que escolheu nosso trajeto, pegaremos uma jangada na praia de Porto, em seguida iremos até às piscinas naturais. Descobri que para aproveitar o melhor do mar precisamos entender a maré, porque ela é influenciada pela força gravitacional do sol e principalmente da lua. Pois a medida que os astros se movem, a atração sobre o mar varia. Ou seja, se der sorte e a maré estiver baixa, você pode visitar as piscinas naturais que se formam, já com a maré alta, o nível do mar não colabora muito para isso. Também tem todo um esquema, precisaremos pegar uma senha porque é limitado a quantidade de pessoas em alguns pontos turísticos, que é de preservação ambiental. Por isso estamos saindo bem cedinho para aproveitar.
Olha só, então eu estava relativamente certa, realmente esse local é especial. Eu bem que senti uma certa conexão com a lua, agora vejo que não me equivoquei.
Deixando isso pra lá, vou até a casa de Patrícia e descubro que ela ainda não está pronta, na real me convence a checar se Mel precisa de algo. Porém, sei que isso é só uma desculpa para que eu veja Miguel com o mínimo de testemunhas. Eu contei à Patrícia tudo o que aconteceu ontem. Visto que não vi maldade alguma em suas ações, Miguel estava apenas mais à vontade em minha presença. Isso não significa nada. Nem quero que signifique.
Algum tempo após, estou em sua porta.
- Bom dia. - dessa vez, contrariando minhas expectativas, quem vem me atender é Miguel.
- Bom dia, tudo bem? - dou um beijo rápido em sua bochecha e espero ele me convidar para entrar.
- Tudo bem também, Dani e você? Chegou segura em casa? Dormiu bem? - Miguel soa meio redundante, no que eu acho uma graça.
- Dormi sim, Miguel e estou segura. - permaneço parada na entrada, com um sorriso bobo nos lábios.
- Bom, desculpe, nem falei pra você entrar. Mel ainda está se arrumando, ela quer ficar bonita igual a você. Palavras dela. - ele sorri para mim, mostrando a charmosa covinha.
- Ah, que isso. - vou entrando, tentando ignorar minhas bochechas rosadas pelo sutil elogio.
- Quer um suco, um copo de água? - Miguel pergunta solicito.
- Não, estou bem. - garanto esperando minha acompanhante aparecer.
Ficamos em silêncio por alguns segundos e eu percebo que sua aparência está melhorando. Ele não está mais tão abatido comparado aos últimos dias.
- Posso te perguntar uma coisa? - seus olhos amarronzados passeiam pelos meus.
- Claro.
- Qual perfume você usa? Por que toda vez que vai embora, a casa toda fica cheirando a morangos, visse? - despeja do nada.
Eu fico sem saber o que dizer, não entendi ao certo se foi uma crítica velada.
- Me desculpe, é minha colônia favorita. Mas vou tentar evitar para não empreguinar sua casa. - sorrio acanhada e mordo o lábio pela culpa que senti.
- Não, você entendeu errado, Dani. Eu gosto, só fiquei curioso. - contrapõe se defendendo.
- Ah, menos mal. - sorrio amarelo, tentando aquietar as batidas do meu coração.
Outra vez o silêncio constrangedor paira sobre nós.
- Vocês vão sozinhas? - ele quebra o silêncio opressor, porém, seu tom está carregado de preocupação.
- Não, Pati deve estar vindo já, ela pediu para eu vir na frente. - ponho as mãos na cintura visando soar ameaçadora.
- Ah, tá. - Miguel suspira de alívio, com a mão direita no coração.
- Ei, eu sei cuidar de uma criança!
- Arrã. - Miguel faz cara de anjo inocente e eu dou um tapinha de leve em seu braço direito. - Oxente, como ousa agredir um recém operado? - sua voz soa divertida.
- Ele mereceu. - revido, arrancando um sorriso expansivo seu.
Nesse momento, Mel desse as escadas e vem correndo em minha direção.
- Bom dia, Dani. - e se agarra nas minha pernas.
- Oi, Mel. Você está linda! - a elogio, de forma sincera.
Ela é uma graça mesmo.
- Você também tá linda, não é paizinho?
- Hã - Miguel pigarreia antes de responder. - Está sim, Dani. - me espia de rabo de olho e desvia os olhos.
- Cadê Patrícia que não chega? Ela acha que vai casar na jangada? - mudo de assunto, sentindo meu rosto esquentar consideravelmente.
- Toma alguma coisa enquanto espera e senta um pouco. - Miguel indica o sofá, parecendo agradecer aos céus por eu ser sensata e pela filha não bater na mesma tecla.
Mel aparece posteriormente com uma jarra de suco e deposita em cima da mesinha de centro. Miguel surge com três copos e nos serve. O gosto do líquido me lembra graviola e algo mais, que não consegui identificar ao certo. Entretanto, quando vou questioná-lo, a campainha toca e deixo essa ação para trás.
E, após os novos cumprimentos de Patrícia, nos despedimos e finalmente estamos a caminho do passeio.