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- Ele vai ficar bem? - questiono, angustiada, à enfermeira do pronto socorro.
Mel está adormecida no sofá da recepção, juntamente com Patrícia. Que segue acariciando seus cabelos castanhos.
- Sim, por sorte você ligou para a emergência. Ele precisará fazer uma pequena cirurgia, está com o apêndice inflamado, por isso a febre alta. - a enfermeira baixinha, de cabelos avermelhados, explica calmamente. - É bem atípico os pacientes com apendicite terem febre, no entanto, pode acontecer. E, acaso não fosse medicado, logo sentiria muita dor.
- Entendo, mas Miguel ficará bem? - torno a perguntar e minha voz sai apenas um sussurro rouco.
- Sim, estamos preparando-o para a cirurgia. Fique calma. - responde, tocando sutilmente meu ombro.
- Posso vê-lo?
- O paciente está um pouco zonzo devido aos antibióticos. Porém, acredito que pode sim, vou acompanhá-la. - eu prontamente a sigo.
Suspirando, entro no quarto branco, em completo silêncio, sentindo meu coração bater forte contra o peito. Mal consigo respirar.
Não entendo o motivo dessa apreensão toda, a enfermeira já disse que Miguel ficará bem. Além do que, não tenho nenhum vínculo emocional com ele, já que acabei de conhecê-lo. Por esse motivo, essa sensação estranha na boca do estômago não é perfeitamente compreendida por mim.
- Daniele? - a voz ligeiramente rouca dele soa baixa e falhada.
- Sim.
- Vem cá. - apesar do verbo imperativo, seu tom não é de ordem e sim de suplica.
Me aproximo lentamente, sem saber o que dizer, quando estou bem perto da cama, sinto sua mão na minha.
- Me desculpe pelo transtorno e obrigado.
- Não precisa agradecer. - engulo em seco e suspiro de alívio ao vê-lo relativamente bem.
- Preciso sim, você não tem obrigação nenhuma com a gente. Mas está aqui, deve estar tarde, não? Mel está bem? - pergunta em um tom de voz preocupadíssimo e aperta sutilmente minha mão.
- Está sim, Patrícia está cuidando dela. Fique tranquilo. - nossas mãos continuam unidas e eu coloco a outra por cima da dele.
Fazendo, assim, uma casinha.
- Certo, obrigado mais uma vez. Posso te pedir outro favor?
- Claro.
- Se puder ligar para o Bernardo, ele vem buscar a Mel. Dessa forma vocês podem ir descansar, não quero dar mais trabalho. - reflete um tanto quanto pesaroso e esfrega os olhos com a ponta dos dedos.
- Que isso, já está tarde. Nós duas cuidamos da Mel, você precisa descansar. - afirmo convicta e sorrio, passando tranquilidade a ele.
- Tudo bem, o... - eu corto suas palavras antes da conclusão.
- Se me disser obrigado mais uma vez, eu ficarei brava.
- Tá bom. - Miguel aceita a contragosto. - Você cheira a morangos. - sou pega de surpresa pelo comentário e acabo dando risada.
- Você já disse isso.
- Eu disse? - seu olhar é uma mistura de confusão e constrangimento.
- Sim, mas não se preocupe. Foi o efeito da febre. - garanto para que Miguel não se sinta tão envergonhado.
Só que foi em vão, porque suas bochechas adquirem imediatamente uma coloração vermelha.
- Ah, espero não ter te constrangido.
Nossas mãos permanecem juntas e me sinto até confortável com o contato prolongado. Contudo, alguém bate à porta e eu me afasto imediatamente.
É a Mel juntamente com a Patrícia.
- Pazinho! - ela corre para abraçá-lo.
Na sequência eu e Patrícia os deixamos a sós.
(...)
Hoje Miguel sai do hospital, por este motivo estou indo vê-lo. Nós últimos dias, acabei passando a maior parte do meu tempo em sua casa, cuidando da Mel. Bom, eu gosto da menina, não faço por obrigação ou algo do tipo. Ele me pediu várias vezes para deixá-la com a esposa de Bernardo, Lúcia. Ademais, me sinto bem ficando perto dela.
Além disso, Mel está um pouco abatida e assustada, visto que já não tem a mãe presente e perdeu a tia recentemente. Fico imaginando o que se passa em sua cabecinha, apesar de ser bem madura para sete anos, ela ainda é criança. Eu, claro, tentei ao máximo confortá-la, afirmando categoricamente que Miguel ficará bem. Que foi apenas uma cirurgia simples, nada sério. Entretanto, por mais que Mel sorria e diga que entende, sei que lá no fundo, ela ainda está angustiada por ver o pai no hospital, parecendo tão abatido.
- Bom dia! - cumprimento Miguel, com uma tulipa que comprei próximo à quitanda em minhas mãos.
- Bom dia, Daniele. - seus lábios se curvam em um grande sorriso, demonstrando que já está mais disposto.
- Posso pedir uma coisa? - me aproximo, entregando meu presente singelo. - Me chame só de Dani, ninguém me chama de Daniele. É tão estranho, sempre que ouço meu nome tenho impressão de que fiz algo errado. - faço um bico e ele sorri, admirando a flor.
- Como quiser, Dani. - Miguel dá ênfase no apelido. - A propósito obrigado pelo presente.
- Bem melhor agora. - brinco para descontrair a situação.
Porém, sinto que as feições suaves de outrora mudaram. Acho que meu apelido traz lembranças dolorosas a Miguel e tento voltar atrás.
- Quero dizer, se preferir me chamar de Daniele, tudo bem. Eu acostumo. - me corrijo e um sentimento ruim se apodera do meu coração.
Mais precisamente culpa.
- Não, Dani é bonito também. - insisti, tentando soar suficientemente seguro. - E a Mel, como está? - muda de assunto, enquanto eu ainda reflito sobre minha recente gafe.
Talvez esse fosse o apelido que ele usava para chamar a irmã.
- Ah, ela ficou dormindo, não quis acordá-la tão cedo. Mas Patrícia está na minha casa, logo as duas virão. - explico de forma carinhosa.
Mel dormiu comigo na noite de ontem, disse que não queria ficar na casa dela sem o pai.
- Certo, e por que veio tão cedo? - Miguel franze o cenho, demonstrando um grau elevado de curiosidade.
- Bom, eu estava ansiosa pra ver como você estava.
Ele parece um pouco desconcertado com minha sinceridade, mas sorri timidamente.
- Ao invés de estar aproveitando sua estadia em Porto, está cuidando da minha filha. Me sinto mal por isso. - e sua voz soa um tanto triste.
- Já falei que gosto da Mel, não precisa se sentir mal. Eu tenho tempo. - o tranquilizo e abro um sorriso espontâneo por me lembrar da Mel.
Bom, espero que eu realmente tenha tempo.
(...)
Mais tarde, no mesmo dia, após Miguel receber alta do hospital, Lúcia e Bernardo foram levar comida para eles. Eu sou uma negação na cozinha, portanto, nem me atrevi. De todo modo, Miguel precisará fazer repouso absoluto por um tempo, acho que vai ser difícil para ele ter de ficar de molho. Contudo, são ordens claras do médico, Miguel não pode ir contra.
Enquanto isso, eu estava pegando algumas coisas que esqueci na casa, dá última vez que cuidei da Mel. Até que decido ir ao banheiro, por isso, sem querer, acabo ouvindo uma conversa de pai e filha:
- Paizinho, o senhor pensou que fosse a mamãe quando chamou a Dani de amor? - a voz da Mel está carregada de dúvidas.
- Oxente, eu a chamei de amor? - em contrapartida, a de Miguel denota uma surpresa sem precedentes.
- Chamou, antes de ir pro hospital. Além disso, também pediu pra ela não te abandonar de novo. - completa e faço uma careta de desgosto.
Essa menina tem uma memória de elefante!
- Preciso me desculpar então. - ele suspira pesarosamente. - Eu estava delirando, filha. Não leve a sério o que eu falei, visse?
- Uhum. - Mel murmura em resposta.
Começo a ouvir passos e fujo para o quarto de hóspedes, fingindo que estou guardando as coisas que, na verdade, eu já guardei.
- Dani? - ouço Miguel chamar da porta.
- Sim. - atendo um pouco constrangida por ter ouvido o que não devia.
- Já está indo? - ele chega mais perto.
- Estou, só vou guardar minhas coisas. - termino de colocar alguns ítens na bolsa teatralmente e me viro.
- Você foi ótima nesses últimos dias, não sei nem o que dizer. Gostaria de te agradecer de alguma forma. - anuncia me olhando com ternura.
- Não se preocupe, só se cuide e descanse, tudo bem? - peço um tanto autoritária, mas Miguel não parece ter se importado. - Bom, vou indo. - me aproximo e dou um beijo rápido em sua bochecha.
No entanto, sinto seus dedos pressionarem levemente meu pulso direito.
- Antes de ir eu queria pedir desculpas... Sabe, se de repente acabei falando algo incoerente a você... - explica meio encabulado.
- Não precisa se preocupar, você estava febril, é natural. - olho em seus olhos, esperando que Miguel solte meu pulso, para eu poder sair correndo toda vida dali.
- Certo. - ele assente um pouco relutante, com certeza deve estar se martirizando por ter me falado aquilo. - Outra coisa, como eu não posso sair, nem fazer nada da minha vida por algum tempo, pensei em assistir a um filme mais tarde, com a Mel. Se você puder vir, ela vai gostar muito. - o convite me pega de surpresa. - Aliás, vocês nem comeram o bolo de morango, agora ele já deve ter estragado.
- Ah, Mel não quis comer sem você aqui. Ela preferiu te esperar. - respondo para que Miguel não fique bravo comigo, por permitir que o bolo estragasse na geladeira.
- Vou pedir outro a Bernardo. - ele prolonga a conversa e dá um sorrisinho de canto, evidenciando a covinha na bochecha.
- Tá bom. - concordo em meio ao nervosismo que me domina por completo.
- Te espero? - indaga ainda me prendendo com os dedos.
- Sim, eu volto mais tarde. - asseguro com o coração aos pulos.
Ele sorri mais abertamente, solta meu pulso e eu saio apressadamente do quarto. Me despeço da Mel rapidamente, alegando que volto à noite, enquanto sinto meu coração extremamente acelerado e minhas mãos um tanto suadas. Porque, não sei dizer ao certo.
Ao chegar em casa, me jogo embaixo do chuveiro gelado e tomo um banho bem demorado, repassando mentalmente tudo o que aconteceu nesses últimos dias. Como me aproximei tanto deles em tão pouco tempo? Sobretudo, por que me sinto ligada aos dois dessa forma estranha? Não posso me apegar a ninguém daqui, essa não é minha vida, não por muito tempo.
Ao sair do chuveiro, decido ligar para Eduarda e contar que Miguel já recebeu alta. Talvez também ligue para minha mãe, a essa altura do campeonato, ela já deve ter se conformado com o término do meu relacionamento.
- Você jura, bandida? Então o bonitão te convidou para assistir filme com ele? - Duda questiona eufórica.
- Não, ele me convidou para assistir filme com a Mel. - a corrijo de pronto.
- Que seja, esse homem tá tão na sua, Dani! - imita a voz do Greg da série todo mundo odeia o Chris.
- Eduarda, não de uma de Greg pra cima de mim e para de loucura! Ele não é igual aos outros, já te contei a história. - ralho com ela. - Miguel só está agradecido pelo que eu fiz por sua filha, nada mais. Além do que, já te falei, eu não vou ter um lance casual com um homem bacana como ele, depois sumir. Eu também levei um belo chifre recentemente, lembra?
- Por isso mesmo que deve se jogar, que mal vai fazer? Pelo que me descreveu, esse Miguel é um pedaço de mal caminho. - insisti.
- Não seria justo com ele, muito menos com a menina. Não posso entrar assim na vida dos outros feito uma britadeira, depois ir embora do nada. Meu coração também não é uma feira. - contesto, tentando fazê-la entender.
- Certo, certo. Você é corretinha demais, de todo jeito, preciso te contar. Richard me procurou para saber onde você está, o safado estava até parecendo abatido, quem via quase acreditava no arrependimento dele. - o tom de Duda é totalmente sarcástico.
- Não quero mais saber desse embuste, amiga. - garanto, pois é a verdade. - Me fala como estão as coisas aí, minha mãe está mais calma? Como está seu novo trabalho na redação?
Eduarda é jornalista, assim como eu.
Fico praticamente uma hora pendurada ao telefone com Duda e sinto ainda mais saudades dela, do meu pequeno apê, dos meus pais, de trabalhar, de estar em uma redação com prazo apertado, enfim. Por outro lado, também me sinto feliz por estar em Porto, sei que precisava dessas férias, além de tudo que me aconteceu com Richard. Trabalhei por muitos anos direto, sem pausa, como diria Gustavo Lima:
Não há ser humano no mundo que aguente.
Mas, voltando ao que importa, Duda está agindo feito Patrícia, me jogando pra cima do Miguel. Oras, já disse que não pretendo me envolver com ele, eu hein.
Só porque o cara foi gentil comigo, as duas acham que Miguel está afim. Por Deus. É como aquela comunidade antiga do finado orkut: Sou legal, não estou te dando mole. O coitado nem deve ter esquecido a ex-mulher, pelo menos foi o que percebi por aquele delírio recente.
Porquanto, para que me enfiaria em uma confusão desse tipo. Já me lasquei toda com Richard, que tecnicamente gostava de mim. Imagine sonhar em ter algo com um homem que gosta de outra! Aliás, eu já superei aquele traste? Nem sei dizer ao certo, estou bem agora, não penso mais nele com frequência, a dor da traição dói menos, sem dúvidas, mas o esqueci completamente? E se Richard aparecesse na minha frente agora? Eu conseguiria dizer não? Pois é, ainda não posso responder a essas perguntas, então para que bagunçar ainda mais as coisas.
Por falar nisso, nesse momento, eu deveria estar conhecendo a cidade, pegando um bronze na praia, admirando a paisagem. Como Miguel mesmo disse, sou uma turista e mal pude apreciar Porto de Galinhas nos últimos dias.
Cá entre nós, foi muito bom ficar com a Mel, eu realmente gosto dela e, pior, me senti estranhamente confortável indo visitar Miguel, levando coisas gostosas para ele comer, conversando sobre peixes e aquarismo. Já que nenhum de nós consegue adentrar em assuntos de cunho particular um com o outro. Não obstante, preciso reconhecer que talvez seja melhor assim.
Quanto mais eu me aproximar deles, mais será dolorosa minha partida. Sou adulta, eu sei, deveria ser fria e não me apegar facilmente às pessoas. Porém, é aquela velha história, não consigo.
Está no meu DNA, eu me apego fácil. Depois faço do alvo do meu apego, meu mundo e me lasco.
Essa é a sequência correta.
Consequentemente, agora que Miguel está melhor, eu deveria me afastar. Curtir minha viagem, me banhar nas águas cristalinas do mar, curar minha dor de cotovelo e, só após, voltar para São Paulo, encontrar um novo emprego e reestruturar minha vida.
Mas não, cá estou eu, me sentindo a pior das criaturas, só por cogitar dar um bolo naqueles dois seres humanos adoráveis. O que não deveria ser um problema, visto que, de fato, não tenho obrigação nenhuma para com eles.
Droga, mil vezes droga!
Resolvo caminhar pela praia, observando as rochas gigantes ao horizonte. Se eu não fosse tão medrosa, iria até lá, porém, tenho medo de cair e rachar meu crânio. Com a sorte que estou tendo, não duvido nada. Mais seguro me manter em terra firme, ou melhor, em areia fofa.
Logo vai escurecer, os sinais do crepúsculo vespertino já estão surgindo no céu. Todavia, ainda não sei se vou cumprir com minha palavra, posso inventar uma desculpa e ponto. Tudo certo e resolvido. Contudo, a vontade que tenho por hora é de passar a noite na companhia de Melanie e Miguel.
Olha só, eles dariam uma bela dupla sertaneja.