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Palavra de Honra

RuDamas
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Capítulo 1 Prólogo

10 anos atrás.

Está ligeiramente escuro, a pequena janela no cômodo não deixa a luz do dia se infiltrar nada além do que pequenos fios dourados. Mi-nha cabeça dói, os machucados no rosto e corpo em um latejar constan-te que me mantém acordado. O olho esquerdo está tão inchado a ponto de nem mesmo conseguir abrir enquanto o outro está parcialmente cer-rado. Observo os dois guardas parados na porta com suas mãos segu-rando armas pesadas, as roupas ainda manchadas com meu sangue.

O da direita funga, seu nariz quebrado após minha cabeça atin-gi-lo. Sorrio depois de cuspir aos seus pés, o que o faz grunhir. Não te-nho a melhor reputação em ser comportado quando me encurralam, que foi exatamente o que fizeram comigo. Pego desprevenido, não tive tempo para analisar uma rota de fuga ou mesmo defesa. Por um mo-mento de descuido dos meus homens, e também meu, acabamos sendo alvejados saindo de uma reunião importante.

Venho de uma família que já foi muito temida, mas meu pai fez certas escolhas que o transformaram em uma piada, assim como o resto de nós. Com muito custo, suor e noites sem dormir, estou tentando re-erguer nosso nome e formar alianças com outras famílias. A Famiglia Gallo, por exemplo, cederia uma parte do território para nossas máqui-nas de caça-níqueis ilegais se nós deixássemos passar parte de suas dro-gas. Era um acordo mais que conveniente para ambos os lados.

Porém, como minha família possui seus inimigos, os Gallo tam-bém possuem os deles. A relação entre as famílias é frágil, levando a conflitos constantes e muitas vezes sequestros seguidos de assassinatos. Fui pego no fogo cruzado, levado amordaçado, espancado e minha calma controlada está esvaindo por entre os dedos como areia a cada minuto que passa.

Remexo as mãos e sinto os pulsos arderem com a corda aperta-da. Meus pés descalços doem, as pernas formigando pela mesma posi-ção nas últimas horas. Ou seriam dias? Não consigo saber, ou mesmo lembrar. Barulhos começaram a ser ouvidos do lado de fora da porta. Um estouro estremece o chão e vozes alteradas se tornam gritos que se aproximam cada vez mais. Os guardas se entreolham ao empunhar as armas ao mesmo tempo em que a porta é aberta com um empurrão.

Só tempo de jogar o corpo para o lado, tombando com a cadeira, quando duas metralhadoras têm seus gatilhos puxados. O som dos tiros se mistura com os gritos e os cartuchos caindo no chão. Do lado de fora pode-se ouvir a confusão de um ataque e meu sangue ruge com a ex-pectativa de uma luta.

― Solte-o. - Um deles instrui, passando a alça da metralhadora no ombro e pescoço.

Minha cadeira é erguida e resmungo com a dor em meu ombro pela queda de mau jeito. A corda ao redor dos pulsos é afrouxada, meu corpo indo para frente e sendo segurado por uma palma quente no cen-tro do meu peito.

- Devagar, ragazzo .

Ergo o rosto e, pelo olho entrecerrado, reconheço o rosto sério do homem de cabelos grisalhos nas laterais.

― Costa... De Nobrega...

Tento sorrir, mas acho que mais se parece com uma careta dolo-rida quando o homem me puxa de pé. Solto um grunhido quando mi-nhas costelas latejam e apoio o peso do corpo contra o homem.

- Esses filhos da puta... Como vocês...?

- Tenho meus aliados. - Costa sorri brevemente antes de tor-nar a ficar sério. - Seu pai implorou por ajuda. Eu devia um favor a ele há muito tempo atrás. Agora, ande mais rápido.

― Acho... que quebrei uma perna. - Torço o rosto.

- Você já foi melhor.

Sorrio com a alfinetada. Teve uma vez que quebrei duas costelas e levei um tiro, mas ainda consegui derrubar três homens e fugir de carro. Talvez esteja realmente fora de forma.

― Porra, vocês demoraram ― murmuro.

― Sua forma de agradecimento é bastante questionável. - Costa gesticula para a porta. - Liderem nossa passagem, estamos saindo.

Com passos apressados, tento seguir Costa sem tropeçar. Porém, o homem anda rápido demais e meus pés insistem em se manter incon-sistentes. Saímos pelo corredor e chegamos à frente da enorme mansão abandonada convertida em prisão, o sol me atingindo o rosto com in-tensidade e me forçando a fechar o olho e gemer de dor.

― Aguente firme, Matteo.

Caminhamos com dificuldade, sangue escorrendo da minha tes-ta e dos vários ferimentos no corpo. O carro destrava e, com esforço, Costa abre a porta e me empurra para dentro. Sento sobre o banco do passageiro com uma careta, meu sangue misturado com sujeira deixa manchas sobre o couro branco. Viro o rosto para a janela e vejo os guardas armados, e fico tentado a erguer o dedo do meio.

Entretanto, minha cabeça lateja, meu corpo dói e a língua pare-ce inchada. A luz do sol parece piorar tudo. Encosto a cabeça no apoio do banco, a visão nadando, meu nome ecoa e parece longe demais. To-do o cansaço e machucados cobram seu preço e me levam ao esqueci-mento.

***

Três semanas depois.

O som do tiro ecoa pelo salão, o alvo preto e branco de uma si-lhueta balança com a força da bala o atravessando. Analiso o buraco feito dois dedos acima de onde deveria ser o coração e movo o alvo para mais longe. Não posso perder a prática de conseguir matar um filho da puta de uma distância segura. A raiva em ter sido pego de sur-presa ainda me assola. Os machucados e roxos ainda doem e me lem-bram a cada segundo de como fui fraco.

Meu olho esquerdo não está mais inchado, mas a coloração ver-de e amarela ao redor parece terrível. A córnea está vermelha e dolori-da. Segundo o médico de confiança de Costa, a pancada foi realmente forte. Tanto, que posso ter perda de visão em vinte e cinco por cento. Recarrego a arma com habilidade e miro novamente, praguejando com a visão um pouco embaçada. Grunho ao errar os dois tiros seguidos e trago o alvo para mais perto, analisando que, se fosse uma pessoa de verdade, teria atingido de raspão.

- Se girar um pouco o pulso, você consegue acertar entre os olhos.

Tiro a atenção do alvo e viro para encontrar a garota de tranças com laços vermelhos que me visita todos os dias pela manhã. Eva, a pequena valente e filha de Costa, com seus grandes olhos castanhos curiosos e impressionáveis.

- Entende de tiro, Piccolina ?

- Meu papà tem me ensinado há alguns meses. - Encolhe um ombro, seus olhos indo para o meu alvo. - Não é difícil depois que pega prática.

Assinto brevemente e apoio a arma de volta sobre a mesinha. As balas tilintam com o movimento e puxo um pano do bolso para limpar meus dedos sujos quando vejo que Eva me olha, a ponta do dedo indi-cador coçando a sobrancelha esquerda.

- Vai ficar uma cicatriz aí - diz baixinho.

Passo o polegar abaixo do corte no meu supercílio.

- Apenas mais uma lembrança dolorida.

Ela assente, cruzando as mãos nas costas.

- Você parece melhor, senhor Mazzari.

- Um pouco menos triturado. E pensei ter dito que poderia me chamar de Matteo.

A garota sorri timidamente, seus olhos me sondam de longe.

- Papà não acha adequado.

- Mas ensinar tiro para uma garotinha é?

Seu semblante fica sério, toda a tenacidade que cobre sua feição infantil mostra como seria uma mulher obstinada no futuro.

Perigosa.

- Não sou mais criança, tenho quase treze anos. Os meninos aprendem a manusear uma arma com a mesma idade. - Eva franze o cenho, seus braços cruzando. Seu vestido azul céu com laços brancos desmente sua fala. - Papà me prometeu uma faca Cold Steel de aniver-sário.

Sorrio de lado ao guardar a arma no cós da calça.

- O que está fazendo aqui, cara Eva?

- Não o achei em seu quarto, assim, imaginei que poderia estar aqui - resmunga, uma carranca torcendo suas feições novamente. - Papà quer vê-lo no jardim assim que possível para uma conversa antes do jantar. Ouvi dizer que mataram o Chefe da Famiglia Gallo depois que sequestraram você. Acham que pode ter sido seu pai e eles querem vingança. Senhor Mazzari, acha que vai ter que atirar em alguém? Vo-cê não vai morrer, não é?

Observo o rosto curioso da menina, minha mão passando pelas costelas já cicatrizadas. Se isso realmente tivesse acontecido, seria um grande problema para minha família. Franzo o cenho, meus olhos des-viando para os dedos de Eva retorcendo um laço de seu vestido quan-do me aproximo devagar.

- Não há nada que Matteo Mazzari não possa resolver. - Aperto seu ombro levemente. - E se tiver que atirar em alguém na cabeça, vou usar sua dica, Piccolina.

Eva sorri quando Jade aparece na porta.

- Aí está você! Incomodando o senhor Mazzari novamente?

- Ela veio me trazer um recado e um ótimo conselho. - Olho para Jade e coloco minha mão sobre os cabelos de Eva. - Ela é uma garota brilhante, inteligente e perspicaz. Costa teve sorte de tê-la e vo-cês deveriam apreciá-la melhor.

- Senhor Mazzari...

- Ela é a filha do Chefe da Famiglia De Nobrega. Trate-a como tal. - Viro para Eva e seguro seu queixo em um aperto suave. - Nun-ca abaixe sua cabeça. Para ninguém, Eva. Confie em seus instintos sempre e lute até o último suspiro. Me ouviu bem?

Eva assente rapidamente quando solto seu queixo e me viro pa-ra Jade com um aceno antes de sair do salão. Poucos passos depois ain-da posso ouvir suas vozes ecoando pelo corredor.

- Eva, o que faço com você?

- Sou filha de Costa De Nobrega, vou assumir seu lugar um dia. E também vou me casar com Matteo quando for adulta.

- Não diga bobagens. Agora vá para seu quarto e se lave para o jantar.

Balanço a cabeça. Com meus vinte e cinco anos e com um casa-mento marcado para o próximo mês, estou mais do que inacessível pa-ra uma criança de treze anos. Nossos caminhos não iriam se cruzar dessa maneira.

Puxo meu telefone e envio uma mensagem para meu homem de confiança e braço direito, guardando o aparelho sem esperar sua res-posta. O sol da tarde está se pondo no horizonte quando saio para o jardim, o laranja se misturando ao azul do mar. A brisa fresca sopra na varanda, a rede de franjas brancas balança, roçando o chão de piso vermelho. Árvores cheias agitam, pássaros cantando não muito longe.

Faz qualquer um se sentir em paz.

Entretanto, as últimas notícias ainda me perturbam.

- Aí está você. Como se sente hoje?

- Menos pior que ontem. - Seguro sua mão em um aperto ao me aproximar. Costa gesticula para que me sente e suspiro ao encostar no estofado claro da poltrona. - Fiquei sabendo sobre o Chefe da Fa-miglia Gallo.

Foi a vez de Costa suspirar.

- As notícias correm rápido. - Seus olhos escuros fitaram so-bre o ombro na direção da casa antes de voltar para mim. - A família está pedindo retaliação. O filho mais velho, Anthony, tomou o lugar do pai. Ele não está nem um pouco feliz.

- Não há motivos para meu pai ter feito isso. - Balancei a ca-beça, esfregando o queixo. - Não fui sequestrado pelos Gallo, assim como não existe poder na mão do meu pai para mandar matar alguém.

- Mas Anthony não sabe disso. E ele está agindo na dor. - Costa cruzou as mãos sobre as coxas. - Você sabe que pode ficar aqui o tempo que quiser, Matteo, mas existem tarefas a serem feitas.

Assenti, meus dentes rangendo até sentir a picada de dor no maxilar.

― Sei muito bem disso, Costa. Um dos motivos de já ter pedido minha carona para casa no caminho até aqui. Minha família precisa de mim.

Costa assentiu, observando o mar batendo contra as rochas.

― Você faz aquilo que é melhor. Minhas portas sempre estarão abertas para você e sua família.

Levanto, sentindo minhas costas doerem. Os cortes no rosto ainda estão avermelhados e se unirão às outras diversas cicatrizes pelo corpo em breve. Esfrego o pulso, os olhos presos no jardim florido da casa que fiquei nas últimas semanas para me recuperar.

Vejo Cristian surgir pela trilha de cascalho que levava à saída da grande casa De Nobrega e estendo a mão para Costa.

― Sou grato por me resgatar e por me hospedar em sua casa. ― Apertamos as mãos, meus dedos mantendo os de Costa com força. ― Eu, Matteo Mazzari, como Chefe da minha Famiglia, a minha palavra de honra de que pagarei pela ajuda. Quando precisar, seja onde for, estarei lá para ajudá-lo. Mesmo que tenha as mãos cheias de sangue, ou que custe minha vida.

Costa apertou minha mão entre as suas e assentiu seriamente.

― Tenho sua palavra, rapaz.

Sem mais o que dizer, viro as costas e saio da grande casa com aquela promessa caindo sobre os ombros. Virando a curva, Eva surge de trás da pilastra, seus olhos tristes ao acenar. Parto, sem imaginar que anos mais tarde estes mesmos olhos me olhariam com súplica.

Minha palavra seria cobrada.

E pagaria com minha alma se preciso fosse.

            
            

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