Capítulo 3 Eva

Meu dedo flexiona no gatilho quando as mãos de Jade tocam minhas costas, minha mão erguida e pronta para atirar caso alguém apareça. Os gritos eram poucos, sinal de que: ou as pessoas haviam escapado; ou a maioria estava morta no fogo cruzado.

- Eva...

- Shh.

Viramos o corredor e observo o começo da escadaria que leva para o salão. Tiros seguidos podem ser ouvidos, assim como vozes de homens dando ordens e alguns gritos de dor. Algo se quebra e imagino ser uma janela. Som de passos pesados vêm dos degraus quando dois homens armados surgem. Sem piscar, meu dedo puxa o gatilho uma, duas vezes.

O coice da arma mal treme meu punho, os dedos firmes ao redor do cabo. As balas atingem cada um, derrubando-os assim que os projé-teis atingem a carne e sangue espirra na parede e corrimão. Limpo as lágrimas da bochecha com o dorso da mão quando pisco, tentando fir-mar a visão e praguejo baixinho por não melhorar muito.

A Desert Eagle dourada e preta de Enrico parece pesada agora, contando mais duas mortes em minha bagagem. Puxo o pente para baixo, olhando quantas balas ainda tenho. Seis. O bastardo arrogante nem mesmo carregou todo o pente. Fecho de volta o carregador quan-do falo para Jade sem olhá-la.

- Vou descer e encontrar meu papà. Prometa que vai para o es-conderijo e se mantenha segura, va bene?

- Bambina, você não pode...

- Me prometa que vai ficar a salvo, Jade. - Olho sobre o om-bro e a vejo assentir rapidamente. - Obrigada.

Caminho até o começo da escada e vejo os dois homens caídos nos degraus. Meu pé enrosca no tecido da saia e grunho ao quase cair e minha mão bate contra o corrimão. Pego a faca da bainha novamente e seguro a arma entre os dentes enquanto enfio a ponta da lâmina negra contra o tecido vermelho e o rasgo na altura dos joelhos. Ouço o suspi-ro de horror vindo de Jade, mas não me importo com isso agora. Meus olhos seguem para a porta abaixo quando um tiro de metralhadora ecoa e um dos nossos homens cai com metade do corpo do lado de cá.

A parede se enche de furos e sangue, poeira voando como neve sobre o piso escuro. Guardo a faca e tiro a arma da boca, segurando o cabo com firmeza mais uma vez. Jade se mantém parada do outro lado, as mãos cobrindo a boca e os olhos arregalados. Ela viveu praticamente a vida toda nessa casa, mas nunca viu de perto a chacina que as famí-lias poderiam criar em segundos.

Eu já.

Empurro um cacho sobre o ombro e desço as escadas, pulando um dos corpos e quase escorregando no sangue. Meus pés deixam pe-gadas vermelhas sobre o piso polvilhado de poeira e me agacho perto da porta. Olho para o homem caído, seu peito furado como um queijo suíço, a poça de sangue crescendo lentamente abaixo dele. Espio pela porta e franzo os lábios ao ver o salão bagunçado.

Mesas viradas, o enorme lustre espatifado no centro. Corpos es-palhados, vestidos coloridos no meio de ternos escuros. Engulo em seco ao ver o rosto de Flávia salpicado com sangue. Seus enormes olhos abertos na minha direção, assim como sua boca. Congelado em um momento de dor. Como se estivesse prestes a gritar e sua vida foi rou-bada antes que pudesse piscar. Seu braço caído e esticado, a palma vol-tada para cima como se esperasse por ajuda, alguém que a puxasse do abismo sombrio que estava caindo.

Não há volta.

Meus olhos se desviam para o canto do salão quando vejo três homens escondidos atrás de uma mesa virada. Dois deles ajoelhados, seus rostos suados, suas mãos trocando os pentes com agilidade en-quanto os homens de Avillano atiravam das portas. Uma tosse molha-da chama minha atenção e percebo que o terceiro homem está deitado. Meus dedos apertam a arma com força ao perceber a camisa ensopada e sua mão apertando o ferimento no estômago com força.

Não! Meu papà não!

Agachada, quase me arrasto até onde Costa De Nobrega está, junto com seus homens. Meus joelhos doem ao pressionar pedaços de madeira e vidro, abaixo a cabeça quando uma chuva de balas de me-tralhadora perfura a parede atrás de mim e as bordas da mesa. Uma bala escapa pela madeira, rasgando meu braço esquerdo. Meus dentes rangem com a dor, mas não emito um único som quando aperto minha mão livre sobre o ferimento do meu pai.

- Oddio ! Eva, você está viva! - Salvatore exala, seu ombro se apoiando na mesa.

- O que você está fazendo aqui? - Meu papà entrelaça nossos dedos, seus olhos presos nos meus, sua voz furiosa.

- Vocês deveriam saber como sou difícil de matar - falo, es-condendo o nervosismo atrás de um meio sorriso. Olho para Giancarlo, seu cabelo loiro platinado escorrido em sua testa, sangue manchando sua bochecha esquerda. - Quantos?

- Três na porta de saída, dois na lateral. Avillano e mais dois homens atrás da mesa principal. - Giancarlo olhou sobre a borda, er-gueu a arma e atirou duas vezes antes de se esconder. - Perdemos mais da metade dos nossos.

- Inferno - murmuro, me encolhendo quando mais uma chu-va de balas passa sobre nossas cabeças.

Meu braço arde, o sangue pingando no cotovelo quando os de-dos do meu pai se enrolam no pulso da mão que segura a arma.

- Eva, me ouça com atenção. - Sua língua sai, lambendo o lá-bio inferior. - Preciso que vá até o esconderijo e pegue o carro...

- Não - digo com firmeza.

Seus dedos apertam meu pulso com mais força, seus olhos escu-ros e sérios para mim.

- Droga, Eva! Isso não é um pedido! - Costa estremece, mais sangue molhando nossas mãos. - Você deveria estar longe daqui uma hora dessas. Eles possuem mais homens do que nós, estamos em uma maldita desvantagem na minha própria casa!

- Não vou sair daqui correndo e deixá-lo para trás!

- Saia do buraco, seu rato! - Borges ri de trás de sua barreira. - Saia para que eu possa te furar como uma peneira maldita!

Desenrosco meu braço do aperto do meu papà e levanto, apon-tando a arma na direção do rosto sorridente de Borges. Seus olhos se arregalam quando me vê e se esconde quando meu dedo aperta o gati-lho da arma de seu próprio filho. Sou puxada para baixo mais uma vez, raiva borbulhando minhas veias quando olho para meu papà no-vamente.

- Você é a minha filha e a herdeira dessa casa e do sobrenome De Nobrega. Você não pode morrer, entendeu? - Os dedos do meu pa-pà me apertam para enfatizar seu ponto. - Então faça o que mando ou eu mesmo faço um furo na sua cabeça com a minha arma.

Ranjo os dentes, olhando para o teto antes de assentir uma vez.

- Ótimo. Agora... - seus dedos me soltam e passa a revirar os bolsos de seu terno e pragueja ao perceber que não pode encontrar o que procura. - Maledizione... Eva, preste muita atenção. Você vai sair do nosso território imediatamente.

- Ma che dici ?

- Apenas me escute uma vez na sua vida, bambina testardo ! - Papà estremece, seus olhos fechando brevemente antes de tornar a me olhar. - Você vai sair do nosso território, não é mais seguro aqui. Vai seguir pela estrada para o sul, direto para o porto em Reggio Calabria.

- Mas...

- Não há um "mas". - Ele puxa sua arma, verificando o pente antes de tornar a olhar para mim. - Peça a Jade pelo número do Chefe da Famiglia Mazzari. Ligue para ele imediatamente e diga que Costa De Nobrega está cobrando por sua palavra. Ouviu, Eva?

- Saia logo, seu covarde filho da puta! - Borges esbraveja do outro lado.

- Abaixe! - Giancarlo me empurra para o lado, sua arma apontada para a porta atrás de nós.

Três homens caem enquanto Borges continua xingando de seu posto protegido.

- Nós estamos em um maldito ponto perigoso aqui! - Salvato-re puxa seu pente, trocando por outro cheio. - E são minhas últimas balas.

- O mesmo aqui - Giancarlo resmunga. - Senhor?

Papà assente, apertando minha mão.

- Diga a ele que deve protegê-la. Fique viva, Eva.

- O senhor não pode ficar aqui - falo apressada. - Borges vai...

- Eu sei. - Seus olhos ficam ainda mais sérios, balançando su-avemente a cabeça. - Quando meu pai morreu e me tornei o Chefe dessa Famiglia, sabia que nunca morreria de outra forma que não fosse lutando. Jurei no túmulo da sua mãe que manteria você viva, Eva. Agora vá. Salvatore, escolte-a até o carro.

- Não!

Minha voz é cortada quando o braço de Salvatore se enrola em minha cintura e me puxa para cima com ele. Tudo, de repente, passa a se mover em câmera lenta. Meus olhos arregalam quando vejo Borges de pé, atirando uma granada no ar. Meu grito se mistura aos tiros da arma de Giancarlo e do meu papà. Meu dedo puxa o gatilho da arma de Enrico e a bala voa pelo salão ao mesmo tempo em que a granada cai no chão.

Minha bala atinge Borges.

A granada estoura.

Eu vejo os olhos do meu papà segundos antes da luz e fogo cho-ver e o inferno se abrir na terra. Meu corpo é jogado com força e calor lambe minha pele quando bato as costas contra a parede do outro lado. Salvatore cobre meu corpo com o seu tardiamente, seu rosto coberto de suor, sangue e fuligem. Seu grunhido se mistura ao meu resmungo quando o empurro para o lado e me sento.

O salão é apenas um buraco cheio de fumaça e focos de fogo, madeira destruída e teto desabando. Levanto trôpega, meus pés se ma-chucando ao pisar sobre vidro e madeira. Porém, não sinto nada disso além da dor da perda. De algo que me rasga o peito de forma lenta, sangrando por dentro. O braço de Salvatore torna a enlaçar minha cin-tura, sua voz rouca no meu ouvido.

- Vamos, Eva.

- Não...

Tento empurrar seu braço, mas não consigo. A droga em meu sangue ainda me deixa lenta, meus sentidos estranhos. E a dor que sin-to por saber que meu papà não está mais vivo faz meus joelhos fraque-jarem.

- Papà...

- Ele não está mais aqui, Eva. Andiamo ! Nós temos que...

- Papà! - meu grito é como o uivo de lamento de um animal ferido. Minhas unhas arranham o terno de Salvatore quando ele me iça, levando-me para longe. - Papà! Non mio papà!

Jade surge no final do corredor, seus olhos com lágrimas ao ou-vir meus gritos. A mão de Salvatore cobre minha boca, abafando mi-nha voz conforme me arrasta para os fundos da casa. Pelo lado de fora das grandes janelas, posso ver a noite escura, o manto azul coberto de estrelas.

- Precisamos do carro - Salvatore diz, me soltando.

Pisco ao sentir algo molhado caindo nos olhos e limpo com os dedos, vendo-os manchados de sangue em seguida. Toco minha testa, sentindo o corte e imploro em silêncio para não precisar de pontos. Aquela seria uma tarefa lenta e não tinha tempo agora.

Limpo os olhos, manchas de rímel pelo pulso e provavelmente por todo meu rosto, assim como sangue, suor e fuligem. Entro na cozi-nha e pelo canto do olho vejo um vulto e giro, erguendo a arma ao mesmo tempo em que dois homens atiram. Jade grita, caindo no chão, enquanto Salvatore coloca seu corpo na frente do meu para me prote-ger. Atiro três vezes, atingindo um dos homens ao mesmo tempo em que uma bala me acerta no ombro esquerdo e Salvatore tomba sobre mim, atirando no outro.

Caio sentada, meu braço pendendo inútil enquanto o outro en-volve Salvatore no peito e seu corpo sobre minhas coxas. Soltando a arma, apoio a bochecha de Salvatore na minha palma, observando seus olhos desfocados.

- Tori? Não ouse morrer, Tori!

- Você sempre... falou alto demais... Polpetta .

Ele tosse, seus olhos perdendo o foco e sua cabeça escorregando de minha mão e caindo.

Morto.

O garoto cheio de espinhas na adolescência cresceu no jardim da nossa casa. Que treinou e lutou comigo, me ensinou sobre a hierar-quia das Famiglias e onde nos encaixamos. Sobre como ser um Chefe de respeito como Costa De Nobrega.

Mortos.

Todos estavam mortos.

Mordo meu lábio inferior até sentir o gosto do meu próprio san-gue e vejo Jade se aproximando engatinhando. Seus olhos estão verme-lhos e apavorados ao olhar para Salvatore, seus dedos trêmulos pas-sando pelos cabelos grossos do homem. Recolho a arma do chão e aper-to o punho da mesma contra a ferida no ombro ao levantar com joelhos fracos e Jade me ampara.

- Precisamos sair daqui, Bambina! Agora!

Assinto, tropeçando pelo caminho até a pequena porta escondi-da atrás do armário. Jade usa o código para abri-la e passo para o outro lado, o cheiro de terra e umidade parecendo melhor que sangue, poeira e pólvora.

O corredor apertado leva direto ao esconderijo abaixo da casa, onde há um carro de fuga que sai pela parte de trás do terreno por uma garagem escondida. Jade tranca a porta do lado de dentro e lidera o caminho pelo corredor iluminado por uma parca luz verde.

Sinto sangue escorrendo pelo braço, a dor como um pulso late-jante até a ponta dos dedos, a arma de Enrico ainda presa entre meus dedos. Só percebo que estou mancando quando Jade retorna e me aju-da, seu braço envolvendo meu corpo e agindo como uma muleta. En-torpecida, caio sentada sobre um banco quando Jade puxa o lençol que cobre o carro preto blindado. As chaves tilintam na fechadura da porta escura.

- Parece bom. - Seus olhos voltam para mim, preocupação por todo seu rosto. - Precisamos limpar suas feridas.

- Não agora. - Nego suavemente, olhando ao redor. - Pegue tudo o que acha que vamos precisar. Papà disse sobre o número do tele-fone do Chefe da Famiglia Mazzari que estaria com você?

Jade para, olhando para mim e seus dedos retorcem no babado de seu vestido sujo.

- Ele disse isso?

- Algo sobre a palavra que estava cobrando agora. Papà estava falando sobre Matteo, Jade?

- Seu pai e seus contatos - Jade resmungou, revirando o baú empoeirado e tirando duas mochilas de dentro e levando para o carro. - Não precisamos de ninguém da Casa Mazzari. Podemos nos virar sozinhas.

- Jade. - Chamo, levantando com dificuldade e ando até ela. Seguro seu pulso quando está prestes a jogar a mochila marrom no por-ta-malas. - Não temos mais ninguém. Borges matou... - Engulo em seco, fechando os olhos brevemente e engasgo ao falar: - Matou o Chefe da nossa família. Costa De Nobrega está morto e ninguém vai aceitar a mim em seu lugar, mesmo sendo a herdeira. Enrico não vai desistir e estarei sendo caçada, Jade. Precisamos de ajuda.

Com um suspiro, Jade assente.

- Tudo bem.

Indo até um pequeno cofre escondido atrás de alguns livros na estante, Jade digita o código e o abre após o sinal verde. Tira de lá de dentro um pequeno caderno preto de couro e o estende para mim ao mesmo tempo em um estouro vibra sobre nossas cabeças.

- A porta! - Jade segura meu braço e me empurra para o car-ro. - Vá! Eu vou atrasá-los.

- Não!

Não posso perdê-la também.

Não posso...

Não me sobrou ninguém...

- Vá, Eva! - Jade me empurra pela porta aberta do carro. - Neste caderno tem o telefone que precisa. Fique segura, Bambina.

- Jade...

Outro estouro vibra o chão desta vez, fumaça surgindo pelo cor-redor. Porra, eles arrombaram a porta.

- Vá! - Jade grita, jogando a chave para mim e batendo a por-ta do carro.

Ligo a ignição, meu pé afundado no acelerador ao mesmo tempo em que Jade tira uma longa M4A1 da parede. Meu braço esquerdo é praticamente inútil e tenho que mudar a marcha e logo segurar o vo-lante para não bater. Quando o carro pega a rampa de acesso para os fundos do terreno, vejo pelo retrovisor os homens de Borges surgindo pelo corredor e Jade atirando.

O resto se torna embaçado na minha visão, lágrimas me atrapa-lhando quando passo pelo portão de saída. Os ecos dos tiros de fuzil e das armas me perseguem pelo caminho da estrada esburacada, meus soluços silenciosos sendo abafados pelo som rouco do motor do carro. Na colina, a casa que morei por vinte e três anos é uma imensa pira de concreto brilhando contra o céu escuro noturno. É tudo o que restou para mim ao olhar para trás: cinzas, dor e nenhum lar para qual voltar.

            
            

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