Capítulo 6 Matteo

Desligo o telefone, completamente alheio ao redor. Minha cabe-ça está passando e repassando as palavras de Eva, tentando achar algo que seja mentira, mas não encontro. Sua voz parecia realmente preo-cupada e um pouco trêmula, mesmo que ela tentasse esconder.

- O que está acontecendo, Matteo? Quem estava no telefone?

Viro, sem deixar uma resposta para mia madre, e saio da sala com passos apressados. Subo as escadas até meu escritório e abro o co-fre escondido atrás da estante de livros. Minhas principais armas estão ali. Recolho as duas pistolas semiautomáticas Beretta M9, 9mm, e verifi-co o pente de balas de cada uma. Coloco o coldre peitoral e guardo as armas, pegando um jogo de facas em seguida e as amarrando em am-bos antebraços e as cobrindo com a manga da camisa.

Não sei o que vou encontrar quando chegar na pensão e resga-tar Eva. Preciso estar preparado para qualquer tipo de situação. Saio do escritório, pegando meu celular e ligando para Cristian.

- Pronto.

- Onde você está?

Ele parece sentir a urgência na minha voz, respondendo imedia-tamente:

- No portão principal. O que está acontecendo?

- Stefano está com você?

- Acabei de vê-lo entrar na casa principal.

- Cris, preciso que me ouça com atenção - digo, entrando no quarto e pego uma mala pequena com uma muda caso seja necessário. - Vou precisar sair e resolver um pequeno problema. É indispensável que fique e cuide de tudo na minha ausência.

- Algo que necessito saber?

- Por enquanto não. Estou saindo hoje e espero estar de volta pela manhã.

- Entendido, Chefe. Estou de olho em tudo, nada vai dar erra-do.

Assim espero.

- Conto com você. - Desligo, digitando o número de Stefano em seguida. Ele mal atende e já começo a falar: - Estamos saindo em cinco minutos. Esteja na saída do barco e leve algumas armas com vo-cê.

Enfio o telefone no bolso sem esperar sua resposta e saio do quarto enfiando a jaqueta. Está calor, mas não posso deixar que vejam o coldre e as armas que carrego. No andar de baixo, vejo mia madre olhando o jardim com os braços cruzados e então seus olhos estão sobre mim.

Vejo nas esferas verdes diversas perguntas que gostaria de fazer, mas franze os lábios quando olha meu rosto. Ela sabe que não deve perguntar nada. Deixo um beijo rápido em sua testa quando vejo Ste-fano vindo correndo da cozinha. Um pão está entre seus dentes, óculos escuros cobrindo seus olhos e seu cabelo é uma bagunça no coque de-sarrumado.

- Puta que pariu, você nem mesmo respirou pra falar no tele-fone comigo - diz quando se aproxima de mim no meio do caminho, puxando o pão com os dentes e mastigando.

- Você está aqui, isso que importa. - Bato em seu ombro, aper-tando e o fazendo torcer o rosto pela força que uso. - Tem suas armas?

- Não saio sem elas. - Sua mão balança na direção do cinto e da canela.

Ao contrário de mim, Stefano não se importa que o vejam ar-mado. Ele pensa que isso o faz parecer mau, enquanto eu acho que ele é apenas um idiota arrogante.

No jardim, os empregados estão em plena atividade. Cadeiras brancas são colocadas alinhadas, vasos de flores e arranjos são coloca-dos pelo caminho. O casamento será amanhã, mas tudo já está quase pronto. Passo por entre as mesas e saio pela lateral ao mesmo tempo em que Isabel surge do estacionamento.

- Matteo!

Ignoro seu chamado, colocando os óculos escuros e apressando o passo. Meu nome é chamado mais duas vezes, sua voz se tornando estridente e apressada, o que me deixa mais irritado. Desço os degraus de acesso à rampa que leva ao helicóptero e Stefano xinga ao lado ao tropeçar, tentando acompanhar meu passo.

- Mona , pra um homem grande como você, não deveria an-dar tão rápido.

- Você reclama demais - grunho.

Entro no helicóptero e coloco os fones, o piloto levantando vôo assim que a porta se fecha. Olho pela janela, pensando no que estou me metendo ao pagar uma promessa de dez anos atrás. Seria uma armadi-lha? Ou Eva realmente estava com problemas?

Stefano estica as pernas, a calça jeans clara justa em suas cane-las, e cruza os braços ao me observar. Sua camisa branca tem as man-gas dobradas nos cotovelos e os botões de cima abertos.

- Pode me dizer aonde estamos indo com tanta pressa?

- Uma amiga está com problemas - falo no headset. - Não sei o que vamos encontrar quando pousar, mas prepare-se para um possí-vel embate. Ela está sendo caçada e esses homens mataram o Chefe da Famiglia De Nobrega.

As sobrancelhas de Stefano franzem.

- Col cazzo . No que sua amiga está envolvida, grande fratello?

- Eu não sei - murmuro.

E odeio isso. Não ter o controle das coisas.

Envio uma mensagem rápida, deixando um carro reservado pa-ra quando pousarmos. Ligo, em seguida, para o número da pensão e tenho uma conversa séria com Maria. O tempo está correndo contra mim e nas próximas horas eu não tenho muito o que fazer além de ter paciência.

***

O relógio atrás do volante marca seis e trinta e cinco e meu pé se afunda no acelerador. Stefano verifica suas armas novamente, mais como uma mania do que realmente segurança. Tudo ao redor parece quieto, mas é como uma lagoa calma na superfície escondendo algo perigoso nas profundezas escuras.

O carro balança quando entro na estrada de pedra e trepida quando saio e corto por um caminho estreito, indo ao contrário da pla-ca indicando o local que Eva me passou. Dirijo quilômetros pelo cami-nho estreito e quase apagado, esquecido dentro da mata, e desligo o motor ao parar alguns metros longe de um muro antigo e saio do veícu-lo.

- Você vai me dizer o motivo de estarmos nos esgueirando ao invés de entrar pela porta da frente? - Stefano segura a porta do car-ro, cenho franzido. - É nosso território, porra.

- Não sei quem está lá na frente e não sei o perigo que podemos correr. Eva está sendo caçada. Prefiro entrar e sair em silêncio, do que urinar na porta pra mostrar quem manda - digo, olhando ao redor.

- Porca miseria. - Stefano bate a porta, puxando seus cabelos em um nó confuso. - Se soubesse que estaríamos entrando em uma corrida maluca dentro do cu de Judas, a pé, não teria calçado meus ita-lianos essa manhã.

- Zitto , Stefano! - Seguro sua nuca, apertando, e o empurro para frente. - Não me faça querer atirar em você, stronzo .

- Tudo bem, tudo bem. - Stefano ergue as mãos em rendição.

Caminhamos em linha reta pela vegetação, cortando o riacho e seguindo até o muro que dá a volta na propriedade. Com um impulso, ergo o corpo sobre a parede um pouco bamba e caio do outro lado e Stefano me segue.

A pensão de três andares é visível daqui, assim como os três car-ros pretos e homens armados andando farejando como cães. Um deles está gesticulando, gritando ao telefone sobre a herdeira De Nobrega ser uma verdadeira vadia. Seu rosto tem um rasgo feio e recente. Maria está de pé na porta, guardando a entrada como um soldado, seus fun-cionários servindo como barricada. Em silêncio, gesticulo para Stefano me seguir e passamos dentro de um pequeno jardim e uma piscina pe-quena com cadeiras dobráveis dispostas ao redor.

Olho pela pequena janela e encontro a cozinha com duas mu-lheres encolhidas no canto. Elas sussurram, olhos arregalados. Bato no vidro, fazendo uma delas gritar e a outra cobrir sua boca. Os olhos da mais velha encontram os meus, conhecimento chegando até ela. Meu rosto não é desconhecido daqueles que dependem de mim. Dos que residem no território da Famiglia Mazzari.

Aponto com o dedo na direção da porta e a mais velha assente, erguendo-se devagar. Quando a porta se abre, sua voz é baixa e um dedo apontado para cima.

- Terceiro andar, quarto trezentos e dois.

Assinto, puxando minha arma e subindo pela escada dos fun-dos. O lugar está muito silencioso, assim como meus passos no piso de madeira. As portas dos quartos estão fechadas e nenhum som vem de dentro delas. Posso sentir o medo de cada um, escorrendo pelos poros e infectando o ar com cheiro rançoso.

O medo faz as pessoas ficarem caladas.

Acuadas.

No terceiro andar, vejo a porta com o número trezentos e dois um pouco gasto, a madeira lascada e riscada. Com a arma em punho, seguro a maçaneta e a giro, encontrando-a trancada. Olho para Stefa-no, nossos olhos se encontram em silêncio e entendimento. Suas costas colam na parede, arma apontada para o final do corredor enquanto endureço o corpo e o braço.

A porta, trancada por dentro, não é um obstáculo para mim. Com um impulso, meu ombro se choca contra a madeira e a tranca explode para dentro quando a arrombo. Assim que piso no quarto ilu-minado pelo entardecer, uma arma é engatilhada e o cano pressionado contra minha bochecha.

A porra de uma arma.

Viro lentamente a cabeça e olho ao longo do cano dourado, en-contrando olhos castanhos determinados, cheios de fúria e medo. Olhos que um dia foram infantis e curiosos, mas ainda escondem a mesma valentia.

Uma força perigosa.

Obstinada.

A potência desse olhar possui uma atração que te torna cativo cada vez que te pega como foco de atenção. É impossível desviar. Ouço Stefano xingando baixinho ao engatilhar a própria arma e apontar pa-ra Eva, a herdeira da Famiglia De Nobrega.

***

Eva

Cada parte em mim está alerta desde o momento que vi os car-ros pretos se aproximando. Meu instinto de fuga aumentou ao ver En-rico saindo do carro da frente, brandindo sua arma e gritando como o louco que é. E eu teria fugido se Maria não tivesse entrado pela porta e me mandado ficar e esperar pelo senhor Mazzari.

Matteo.

Olho para seu rosto, o homem que se tornou, fazendo o garoto que conheci ser enterrado nas minhas memórias. O Matteo de dez anos atrás não é esse que está na minha frente agora.

Mais alto.

Mais largo.

Mais sério.

Mais perigoso.

Um meio sorriso puxa o canto do seu lábio fino e vejo que existe uma cicatriz ali, uma que não tinha antes. Um pequeno risco cortando o canto esquerdo perto da curva.

- Não se atreva a atirar, donne .

O outro homem chama minha atenção, mas não desvio os olhos dos de Matteo.

- Tudo bem, Stefano. Eva não vai atirar no homem a qual pe-diu ajuda. Giusto? - pergunta ao guardar sua Beretta e a mão se apoiar sobre o cano da arma que seguro e a empurrar suavemente para baixo.

Meu braço ainda dói, mas oculto isso atrás de uma máscara de indiferença. Meus olhos vão de Matteo para Stefano e então voltam para Matteo.

- Quem é ele?

- Meu irmão. Não se preocupe com ele.

- A arma apontada na minha cara mostra o contrário - digo, olhando o homem com desconfiança.

- Abaixe a arma, Stefano, e cuide da porta. - Matteo cruza os braços, seus olhos cerram ao olhar meu rosto por completo, descendo pelo pescoço e braços. - O que aconteceu com você? Isso é um corte na sua cabeça?

Pisco, dando um passo para trás enquanto meus dedos tocam a ferida coberta por um curativo. Olho para a porta arrombada que Ste-fano tenta fechar, seus cabelos loiros estão amarrados em uma bagunça sobre sua cabeça, as roupas elegantes parecendo deslocadas em seu jeito relaxado. Lambo os lábios secos e volto a olhar para Matteo. Mes-mo que eu tenha crescido, ele continua muito mais alto, me fazendo arquear a cabeça para olhá-lo.

- Houve uma... explosão. Eu... - Balanço a cabeça e guardo a arma no cós da calça. - Obrigada por vir tão rápido.

- Eu disse que viria - Matteo fala, procurando meus olhos. - Não temos muito tempo. O que está acontecendo? Quem são aqueles lá embaixo?

Engulo em seco e olho para a janela.

- Enrico Avillano e seus homens - respondo baixinho.

Apenas dizer seu nome me faz cerrar os dentes com raiva.

- Mona - Stefano grunhe. - Você se meteu em grande en-crenca, donne.

Você não faz ideia.

- Por favor, me diga que todos esses machucados não foram causados por aquele filho da puta. - Sua voz soa fria, seus olhos des-cendo por meu corpo como se tentasse olhar através das roupas.

Balanço a cabeça, não querendo essa preocupação agora. Não quando posso ouvir Enrico gritando lá embaixo sobre queimar a pensão se não deixarem seus homens vasculharem o prédio. Ando até o armá-rio e pego minha mochila enquanto falo:

- Isso não importa agora.

- Para mim importa, porra - Matteo rosna, sua grande mão segurando meu braço e me girando. - Eva, Enrico te machucou?

Passo a mão pelo cabelo, exalando.

- Ele tentou, mas eu não sou uma garota que não sabe se cui-dar. - Puxo meu braço de sua mão, olhando em seus olhos verdes fu-riosos. - Estou irritada, cansada, mas bem. Preciso da sua ajuda para fugir, me esconder por um tempo, apenas isso.

Matteo cerra os olhos, seu corpo próximo ao meu me encurra-lando contra o armário.

- Você cobrou a minha palavra e é apenas por isso que estou aqui. Agora, comece me dizendo o motivo de estar sendo caçada por Enrico Avillano e porquê ele matou seu pai. - Sua cabeça inclina, ni-velando nossos olhos. - Se vou te ajudar, preciso saber onde estou me enfiando.

Desvio os olhos de seu rosto, procurando por uma saída, uma forma de escapar. Apenas para ter meus pensamentos cortados quando suas mãos espalmam uma de cada lado do meu corpo, me prendendo. Arregalo os olhos, minhas mãos se fechando em punhos apertados ao redor da alça da mochila e da arma. Ergo o queixo em desafio e nossos olhos travam uma pequena batalha silenciosa.

- Eva.

Meu nome soa grave em sua língua.

Uma ameaça velada por um pedido.

Um tiro soa do lado de fora e gritos ecoam em uníssono.

- Vocês podem conversar mais tarde antes de ter o corpo fura-do por uma bala? - Stefano questiona, olhando para o irmão e então para mim.

Matteo assente, suas mãos envolvendo meus braços e me pu-xando para perto.

- Confia em mim, Eva?

- Não. - O olho de cima a baixo. - Mas posso tentar.

Matteo me observa por longos segundos, assim, puxa suas duas armas e as engatilha sem tirar os olhos de mim. Um gesto automático de quem faz isso há anos e anos.

- Nós vamos descer e sair pelos fundos. Stefano vai cobrir nos-sa retaguarda até o carro. Se eles atirarem, quero que você corra o mais rápido que puder. Você só atira se for realmente necessário, me enten-deu? - Matteo me olha, esperando uma resposta.

Eu assinto, porque sei que neste momento não teria motivos pa-ra ficar e enfrentar um confronto. Eles são muitos e nós somos apenas três. Não suportaria mais mortes por culpa da minha família e suas escolhas erradas. Mesmo Matteo sendo o Chefe e dono deste território, iniciar uma briga não era a melhor opção. Ainda mais com a insanida-de de Enrico.

O canto do lábio de Matteo se ergue em um sorriso antes de me dar as costas.

- Acho que ainda posso te chamar de piccolina.

Não, você não pode.

Envolvo os dedos na Desert Eagle e inspiro, encarando as costas de Matteo quando ele se vira para a porta. Desta vez eu estaria saindo dali sem deixar nenhuma morte para trás. Matteo está aqui e tudo vai ficar bem.

Pelo menos é isso o que repito para mim mesma uma e outra vez todo o caminho até o andar de baixo. É o que digo a mim mesma em silêncio enquanto sigo os passos de Matteo e rezo baixinho para que, desta vez, o sangue espirrado em mim não seja dos meus aliados, mas apenas dos meus inimigos. É o que digo a mim mesma quando ergo a arma e conto as batidas do meu coração.

Um, dois, três.

O sol do final de tarde me banha quando a porta do fundo se abre. Meus pés descalços tocam a grama do jardim. E tudo o que posso ouvir acima do barulho do meu coração batendo, é o tiro de aviso e o grito de Enrico Avillano.

- Eva!

            
            

COPYRIGHT(©) 2022