Capítulo 8 Matteo

Cazzo, nada está saindo conforme planejei. E isso me deixa com-pletamente louco. Apoio as costas no carro enquanto permaneço senta-do e olho sobre o ombro no momento exato em Eva sai, rugindo como uma leoa. Congelado, observo seu braço erguido, arma em punho e olhos furiosos. Seu rosto distorcido pela raiva sendo banhado pelo pôr do sol e tingindo nuances de laranja e dourado em sua pele.

Seu dedo puxa o gatilho, sem hesitação, e Enrico cai após ser atingido. Só então Eva solta um som engasgado, o braço caindo ao lado do corpo e a arma atingindo o chão ao ser solta. Espero, em silêncio, que ela comece a soluçar e chorar, mas ela continua em silêncio. Levan-to, meu braço usando o carro como alavanca, e olho para a mulher cheia de hematomas e curativos à minha frente. Sangue mancha sua camiseta, seus cachos revoltos e selvagens caindo sobre seus ombros e balançando suavemente com a brisa do começo da noite.

Seguro o chiado de dor quando dou um passo à frente e isso chama a atenção de Eva, que corre para mim com olhos preocupados.

- Você foi atingido?

- Nada que seja grave - grunho, olhando Enrico caído e imó-vel. - Eu dei minha palavra que ia te salvar, mas acabou que foi você quem deu o tiro final.

- Apenas nos enfiei em mais problemas, isso sim - Eva diz, passando meu braço por seus ombros.

- O que está fazendo? - a olho de cima, uma sobrancelha ar-queada.

- Está machucado. Me use de muleta.

- Não estou morrendo. Posso andar sozinho - digo, mas Eva finge não me ouvir.

Sua mão segura cuidadosamente logo acima do machucado, seus dedos leves mal tocando a camisa. Ela não é uma mulher baixa, mas ainda assim sua cabeça mal chega abaixo do meu queixo. Seu cor-po se encaixa no meu, quente, curvilíneo. Desvio os olhos, e pensamen-tos, de Eva e olho para o carro, vendo o pneu estourado e os vidros destruídos. Fumaça escura sobe pelo capô.

- Porra, o farabutto destruiu o carro. Vamos ter de mudar de condução.

- Mas... - Eva olha ao redor, parando no escuro veículo caro à frente. - O carro dele?

- Você vê outro?

As sobrancelhas de Eva arqueiam lentamente ao me olhar de cima a baixo.

- Se o cavalo não estivesse machucado, poderia pensar em an-dar no lombo já que coice ele sabe dar - responde secamente, o queixo erguido com petulância.

- Eu não quis...

Eva me corta ao menear a mão com descaso e solta um suspiro curto.

- Não há necessidade em se explicar. Para onde vamos a partir daqui?

- Existe um lugar seguro. Um que Stefano também conhece e vai nos encontrar lá mais tarde. - Solto a respiração entre os dentes, sentindo o ferimento arder e mais sangue molhar minha camisa quando caminhamos. - Você sabe dirigir?

- Claro. O pé freia e a mão acelera, giusto?

Pisco, parando um momento para olhar o rosto limpo de expres-são de Eva. Seus olhos castanhos viram para mim quando um sorriso faz seu rosto machucado parecer mais vivo.

- Você deveria ver seu rosto agora.

- Isso foi uma piada? - digo, tirando meu braço de seus om-bros e olho para o corpo de Enrico.

- Oddio, seu senso de humor é quebrado.

- Não estamos em um momento propício para brincadeiras, Eva.

- Desculpe. Tenho tendência a usar piadas para aliviar o es-tresse.

Espiro, agachando sobre um joelho e lançando um olhar para Eva. Seus punhos estão apertados em seu quadril, seu corpo contra o sol formando um halo dourado ao redor e deixando seu rosto um pou-co sombrio. Seus olhos analisam Enrico, os dentes mordendo o canto do lábio.

- Acha que está morto?

Volto a olhar para baixo e verifico o pulso no pescoço de Enrico, não encontrando um batimento. Nem deveria ter perdido meu tempo, já que o tiro de Eva acertou entre os olhos do filho da puta. Isso me faz lembrar da garotinha de tranças que me deu dicas de como atirar e que acaba de fazer uma demonstração, agora como uma adulta competen-te.

- Você tem uma ótima mira.

- Anos de treino - responde, encolhendo um ombro.

Levanto, ofegando um pouco pela ferida e balanço a cabeça em negativa quando Eva se aproxima para ajudar. Tenho meu orgulho e pretendo mantê-lo intacto. Vou até o carro, abrindo a porta e obser-vando Eva sentada no banco do motorista. Seu pulso gira a chave na ignição assim que me sento, seu pé rugindo o motor e virando o volante para voltar para a estrada. Aperto a mão sobre a minha lateral, sentin-do os dedos molhados com sangue pegajoso.

- Está doendo?

Olho para o perfil de Eva, seu cenho franzido e lábios apertados. Um cacho cai sobre seu olho direito e ela assopra, fazendo-o voltar pa-ra o lado e recosto no banco.

- Vou sobreviver. E você? Como se sente?

- Tem me perguntado muito isso nas últimas horas. - Seu sor-riso de lado parece um pouco triste.

Sem perceber, estendo a mão e empurro o cacho que havia vol-tado para seus olhos e o coloco atrás da orelha, deslizando a ponta dos dedos pela pele macia do lóbulo e pescoço.

- Você foi confiada a mim. Me importo em saber como se sente. Principalmente por não parecer se importar de matar um homem.

Eva pisca, seus dedos relaxando no volante e mudando a mar-cha. Após duas curvas, sua voz é calma, porém, firme.

- Eu deveria sentir?

- Talvez.

Ela balança suavemente a cabeça.

- Tenho enfrentado o inferno desde a noite anterior, fugindo há quase vinte e quatro horas. Não sei como ainda estou caminhando. - Suas sobrancelhas cerram, olhando para mim rapidamente antes de voltar para a estrada. - Talvez eu esteja anestesiada. Não vou surtar a qualquer segundo, se essa é sua preocupação.

- Não estou preocupado - murmuro, olhando pela janela o sol desaparecendo entre as montanhas e árvores.

- Ótimo. Não sou como as mulheres que costuma conhecer, Matteo - diz suavemente.

- E que tipo de mulheres você acha que conheço? - pergunto, olhando-a com atenção.

- Não sei. As típicas? - Ela me olha rapidamente e encolhe os ombros. - Fúteis, egocêntricas, dramáticas, controladoras?

Sorrio, porque ela descreveu Isabel sem nem mesmo conhecê-la.

- E você não é nada disso, Piccolina?

- Não. - Sua voz sai baixa, seus dedos envolvendo o volante com força novamente. - Deixei de ser criança quando ganhei aquela faca e me tornei mulher aos dezesseis. Ser a herdeira faz você amadu-recer rápido. Querendo ou não.

- E o que a fez amadurecer? - questiono em voz alta.

Percebo que quero saber tudo sobre essa mulher. Seu passado, seus gostos, o que a faz sorrir. Quem é Eva De Nobrega além de ser a herdeira da Famiglia?

Ela espira, entrando na pequena estrada que indico e os pneus passam sobre a terra batida, o carro chacoalhando com a mudança de chão.

- Eu... não quero falar sobre isso agora.

Assinto, respeitando sua decisão. Entretanto, ainda continuo me perguntando em silêncio: quem é você, Eva?

***

Meia hora depois, entramos pela porteira velha que leva para a cabana escondida. O silêncio é como um manto pesado entre nós e me sinto esgotado pela perda de sangue. Eva não parece melhor, seus olhos estão pesados quando finalmente estaciona na garagem na parte de trás.

O farol é desligado e nós mergulhamos na escuridão.

- Acha que esse carro tem rastreador?

- Difícil. Parece um carro de descarte - digo, abrindo a porta. A luz acende, iluminando o rosto duvidoso de Eva na direção do pai-nel. - Não se preocupe com isso. Quem estava com Enrico não vai nos encontrar tão cedo. Vamos entrar e descansar, va bene?

Eva assente, abrindo sua própria porta e saindo. Caminho de-vagar até a porta dos fundos e passo a mão sobre o beiral largo de ci-ma, encontrando a chave perto da ponta. Eva bate o porta-malas e me viro para vê-la carregando nossas bagagens.

- Eu poderia ter pegado depois.

- Estou com as mãos vazias agora e não sou inválida.

Essa mulher...

Seguro o suspiro e encaixo a chave na fechadura e giro, o clique baixo sendo seguido pelo ranger da porta ao abrir. O cheiro de mofo é presente, assim como umidade e poeira. Abro a janela da cozinha para entrar um ar e Eva acende a luz. O brilho amarelado ilumina armários de cedro com fechaduras antigas de aço, uma mesa de mogno com qua-tro cadeiras e uma geladeira antiga. Provavelmente vazia. Faz tantos anos que ninguém vem até aqui...

- Lugar legal.

Assinto, olhando ao redor. Encosto o quadril na pia, meus dedos grudando com sangue seco.

- Está com fome?

- Não. - Eva deixa as mochilas de lado, seus olhos indo para onde minha mão está coberta com sangue. - Primeiro vamos cuidar da sua ferida. A comida pode vir depois.

- Estou bem.

- Como pode ter certeza disso? - pergunta, inclinando a cabe-ça de lado.

- Já levei vários tiros antes. Vou sobreviver a uma ferida de raspão, tenho certeza. - Olho-a sério, gesticulando para o armário. - Deve ter algum enlatado que podemos fazer até Stefano...

- Matteo, não deve ficar assim. Pode infeccionar. - Eva apon-ta para a cadeira. - Sente-se ali. Vou procurar por curativos e primei-ros socorros.

- Eu já disse que não preciso...

- E eu estou fingindo que não estou te ouvindo. - Sua mão ba-lança com descaso e me olha sobre o ombro. - Sente-se, Matteo.

Tento controlar a raiva ao ser mandado como uma criança e sento sobre a cadeira, que oscila com meu peso.

Ninguém ignora minhas ordens. E ter alguém que faz – Eva, ne-cessariamente – é realmente desconcertante. O que me lembra que devo ligar para Cristian e saber como tudo está na Ilha. Eva se ocupa em abrir as portas do armário, procurando algo que sirva como remédio ao invés de comida, quando apalpo meu bolso.

Solto um grunhido, que faz Eva me olhar.

- O que houve?

- Acho... que perdi meu telefone.

- Deve ter caído no meio do tiroteio.

Estou desabotoando a camisa quando Eva retorna carregando uma caixa de madeira e senta ao meu lado.

- Posso fazer isso...

- Não se preocupe.

- Eu mesmo cuido disso, Eva.

- Per l'amor di Dio, você pode ficar quieto e apenas me deixar cuidar de você? - Bate minha mão longe, seus olhos castanhos furiosos para mim e sobrancelhas arqueadas.

Teimosa.

Donna testarda e pazza .

Com lábios franzidos, assinto devagar e isso parece satisfazê-la. O sorriso vitorioso é uma grande indicação de quão satisfeita ela está. Termino de abrir a camisa e inspiro quando o tecido está um pouco colado na pele machucada. Eva mergulha o algodão dentro de um frasco com líquido transparente e se debruça sobre mim. Seus dedos são gentis quando limpa ao redor, seus olhos focados em sua tarefa. O que me deixa observá-la com calma e de perto.

Seus cílios são longos e ainda há um pouco de lápis preto borra-do na linha de baixo dos olhos. Seu lábio superior é mais cheio que o de baixo, fazendo a curva nos cantos mais generosa. Nariz fino e com a ponta arrebitada, dando um ar de eterna petulância, assim como as maçãs do rosto altas e bochechas côncavas. Um rosto não muito femi-nino, machucado, mas ainda bonito.

Quando o algodão toca a ferida aberta, eu chio e reteso, fazendo os olhos de Eva subirem para os meus e só então percebo quão perto nós estamos. Observo seus olhos castanhos preocupados, as pupilas dilatando.

- Aguente firme.

Assinto mais uma vez, não conseguindo falar. Uma mecha cas-tanha do cabelo revolto cai sobre sua têmpora quando ela inclina a ca-beça, seus olhos descendo por meu peito e abdômen antes de voltar para a ferida.

O algodão é pressionado outra vez e grunho, meus dedos segu-rando a borda da mesa com força.

- Dói muito?

- Não, estou bem - falo ao redor de dentes cerrados. - Já passei por coisas piores.

Isso parece diverti-la, sua boca subindo nos cantos em um sorri-so escondido. Seus olhos sobem novamente para meu peito antes de desviar.

- Aparentemente. Há diversas cicatrizes debaixo das tatua-gens.

Sinto suor escorrendo pela nuca e entrando no colarinho quan-do as pontas dos cabelos de Eva escorregam e resvalam sobre minha pele. Meu corpo retesa novamente, mas por algo completamente dife-rente. Inspiro, me esforçando em controlar a frequência cardíaca e não deixar o sangue descer mais para o sul. O toque de dedos gentis me faz estremecer, mas não por conta da dor.

Cazzo, não deveria ficar tanto tempo sem transar.

Eva mergulha outro algodão em líquido vermelho com cheiro forte e coloca sobre a ferida, olhando de perto e franzindo as sobrance-lhas. Sua mão puxa os cabelos para longe, revelando seu pescoço e a curva macia que une o ombro.

- Acho que vai precisar de uma costura. - Seu indicador pas-sa pela borda de baixo, arrastando ao longo da pele até a lateral da mi-nha cintura e sobre o osso do quadril. - A bala não chegou a perfurar, mas rasgou bem.

Não consigo dizer nada. Apenas sinto o toque de seus dedos se arrastando sobre minha pele, arrepiando meus pelos e me fazendo es-tremecer. Eva rasga um pedaço de esparadrapo com os dentes e coloca com cuidado sobre o curativo enquanto fala:

- Acha que Enrico vai ser encontrado? Eu atirei e então... nós apenas o deixamos lá...

Olho para baixo onde seus dedos pressionam para manter o cu-rativo preso.

- Ele atirou contra mim, no meu território. Isso foi uma afronta que não posso ignorar e sua morte foi mais do que justificada.

- Eu sei. - Eva franze o cenho, colocando suas mãos sobre o colo e só então sou capaz de respirar com calma. - Não consigo sentir remorso. Isso faz o quê de mim?

Olho-a atentamente e seguro sua mão na minha, deixando um aperto suave.

- Ele ia matar você, Eva. Autopreservação não te faz uma pes-soa ruim.

- Você não entende. - Ela nega suavemente. - Eu queria matá-lo. Senti certa satisfação quando o tiro o atingiu. - Eva expele, seus dedos massageando a têmpora. - E agora sua Famiglia está en-volvida em problemas por isso.

- Não pense nos problemas que posso enfrentar. Apenas pense que, se não atirasse, você não estaria viva. - Aperto seus dedos, cha-mando sua atenção novamente. - Va bene?

Eva anui fracamente.

Levanto, tirando a camisa e a deixando sobre as costas da cadei-ra. Pego a mochila e tiro uma camiseta de dentro, colocando-a, e viro a tempo de ver Eva me analisando. Dentes mordendo o lábio inferior, bochechas levemente ruborizadas. Seus olhos desviam para a parede no último segundo, mas tarde demais.

Pigarreio, abaixando a camiseta com cuidado.

- Tome um banho, troque suas bandagens, descanse. Vou espe-rar por Stefano na porta e vigiar.

- Vou preparar algo para comer. - Eva levanta, guardando os remédios e algodão na caixa novamente.

Saio da cozinha e vou para a varanda, sentando sobre a cadeira de balanço. Se eu não sabia no que estava me enfiando no começo de tudo isso, agora parece ainda pior. Uma ideia está se formando na mi-nha cabeça e não sei se isso é para proteger Eva do futuro incerto, as-sim como minha família, ou apenas porque não consigo imaginar eu a deixando ir.

Bufo, cobrindo os olhos com a mão.

Estou perdido.

            
            

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