Após três semanas, estamos no porto esperando o navio atracar, chegou o grande dia, entre a tristeza da Madame e o chororô das damas de companhia, eu me sinto triste, é como se pressentisse algo ruim em meu peito, talvez um mau presságio. Sinto como se nunca mais fosse os ver, mas para minha alegria e a única forma de aquietar meu coração, o rei veio não só se despedir como me entregar uma fita que ele amarra em meu dedo, para ser o símbolo do nosso compromisso ao meu pai, e chocamos o público ao nos beijarmos sem pudores na frente dos súditos. Se estaríamos em breve comprometidos não havia nada a ser temido, e aqui ao olhos dos súditos era algo comum beijar os lábios de qualquer conhecido, era um sinal de afeto e carinho, mas no nosso caso era algo mais intenso e vivido.
É um beijo diferente do anterior, é algo mais terno, embora cheio de significado.
O mordomo da rainha me entrega minhas malas aos choferes do navio, logo noto um pajem correndo ao meu encontro e sorrio quando ele se joga em meus braços.
- Não nos deixe, é a única que nos trata com o devido valor... ou me leve, sei que se um dia se casar com Sua Majestade, pode vir a me esquecer... - As lágrimas rolam em sua face juvenil.
Embora seja dura, sei como os serviços dos pajens são importantes.
- Eu sei, meu querido, se pudesse, o levaria comigo... - Noto a tristeza de César e as lágrimas caírem, minha aia já vai comigo. - Nunca iria te esquecer, é meu pajem mais leal e se um dia vir a me casar... - sussurro em seu ouvido -... levo-te como um filho para morar conosco.
Não é uma atitude aceita em nossa sociedade, ainda mais um menino sem berço e negro que, aos olhos impiedosos da sociedade, será sempre repudiado e malvisto. Não ligo para cor da pele ou qualquer outra coisa, acho que o coração é a alma que revela se a pessoa é boa ou não e ele é um menino maravilhoso.
Ele me abraça feliz e sinto que esta vida é repleta de surpresas.
- Algum problema, lady Isabelle? - pergunta o rei, colocando a mão em minha cintura.
- Queria levar César, o pajem, comigo para Grécia, já que ele não conhece lá, mas não posso me dar ao luxo de comprar mais uma passagem e o queria comigo...
O rei me encara com certo brilho no olhar.
- E por que não pediu?
- Porque não quero que pense que me dá coisas em troca de algo...
Ele respira fundo e sorri.
- Você é diferente de tudo que já conheci e cada dia me apaixono mais por sua bondade.
O rei então acaricia o cabelo do pajem e se afasta, indo falar com o capitão do navio. Noto em César um brilho que nunca vi, e logo o rei retorna.
- O navio sai quando o sol estiver mais alto no céu, ainda temos alguns momentos e, enquanto levamos vocês aos aposentos, pedirei a dois servos que levem o pajem César para escolher roupas para a viagem.
O menino abraça o rei sem se importar com nada e ele retribui.
A bondade do rei me encanta.
- Obrigada, meu rei!
Sua mão acaricia meu rosto e sorrio.
- Agradeça voltando para mim.
Nossos lábios se unem brevemente e ele me guia ao navio, já que me levará ao meu aposento junto com Giulia.
O ambiente é amplo e, pelo visto, o rei mexeu alguns pauzinhos para que ficasse em um bom quarto, nos sentamos na cama admirando o local, enquanto Giulia se senta na poltrona, pegando um livro e olha para o outro lado, nos dando privacidade.
- Logo o menino chegará, pedi que o colocassem em uma cama ao vosso lado e espero uma carta enquanto a viagem ocorre.
As cartas vão demorar demais, mas o rei possui outros planos. Trouxe o quarto uma gaiola e dentro dela há um falcão belíssimo.
- É uma ave muito esperta e fará nossas cartas chegarem em tempo curto um ao outro.
- Majestade, eu não sei o que dizer, me deixa sem palavras... -Aproximo-me da gaiola e o rei, antes que eu toque a ave, acaricia minha mão para que ela saiba que sou sua nova dona. - Qual é o nome dele?
- É Emanuel, ele nos manterá sempre em contato, não precisa agradecer... foi a primeira mulher que me mostrou o real significado de sentimentos como bondade e humildade, ou minha irmã nunca aceitaria que flertasse sem que estivesse caído nas graças dela - confessa antes de abrir a gaiola.
Acariciamos a ave, enquanto ele me abraça por trás e os empregados trazem nossas malas.
- Logo, César chegará e quando descermos na Grécia, envio a primeira carta junto com as que escrever durante a viagem.
Seus lábios tocam meu pescoço e sinto meu corpo estremecer. Ele é o primeiro e o último homem que me tocará.
Temos que nos despedir e, embora algo em mim grite que para que desça e espere até me casar, ignoro tal sentimento.
Voltamos à lateral do navio e ficamos acenando até que as pessoas no porto ficam minúsculas e não as vemos mais.
Seguimos para a nossa cabine e logo noto que em cima da minha cama há um saquinho vermelho com o selo real, engulo em seco ao tocá-lo e percebo que está cheio. Abro e posso ver as moedas de ouro reluzirem contra a luz.
- Lady, o rei te ama mesmo, me fez colocar o saquinho sem que visse e falou que é para as despesas da viagem, já este aqui... - César mostra um saquinho dourado menor. - É para comprarmos roupas e tudo que precise. - Seus olhos brilham enquanto fala.
Mal posso conter uma lágrima traiçoeira e sorrio com a sua felicidade, Giulia se senta na cama e me sento ao seu lado.
- Nunca vi um rei se curvar diante de uma nobre que não é princesa e dar seu coração a ela.
- Eu não serei tola em dizer que o amo ou sou amada, não sei se tal sentimento existe, mas posso afirmar que sentimos algo forte um pelo outro e iremos nos casar. - Solto um gemido baixo de excitação.
- Isabelle - chama o pequeno e o encaro. - Você está no castelo há mais tempo do que eu, meus pais me deixaram lá para ter uma vida melhor que a dos meus irmãos e sou grato por tê-la encontrado.
- Não precisa agradecer, há dois anos estamos nos ajudando, é o mais leal dos pajens e isso é raro hoje em dia, a rainha e eu confiamos em você. Fiz uma promessa que no dia que me casar, levarei você como filho e assim o farei.
Ele corre e se joga em meus braços.
- Meus pais não têm condição, sumiram no mundo e agora terei pais maravilhosos e não me importo se for um rei ou um guarda que venha a se casar com milady, que tem o coração mais puro e doce, e derreterá até os corações mais gélidos.
Começo a rir.
- Para um menino de 11 anos, é mais esperto do que aparenta, mas Ravenna discordaria da sua afirmação... A condessa de Aldemonth ainda odeia as damas de companhia pelas peças que pregamos ao longo dos anos.
Começamos a rir e Giulia eleva a mão aos lábios, assustada.
- O que foi, menina? Se está enjoada, vá ao banheiro, faça tudo na tina e jogue pela janela.
- Não é isso, Isa.
Embora ela seja ingênua demais, criamos uma certa amizade e agora ela me chama pelo apelido que apenas as minhas amigas me chamam.
- A condessa Ravenna é minha tia, ela é uma bruxa, sim, mas é madrinha do meu irmão e adora fazer intrigas da Corte.
- Aprenda, pequena Giulia, o mundo da Corte é baseado em mentiras, traições, fofocas e flertes... Quanto mais rápido se inteirar disso, mais fácil será sua adaptação! - exclamo e antes que possa responder, batem à nossa porta e deixo entrar.
- Senhoritas e rapaz, sou o lacaio desta parte do navio e seu criado... O almoço será servido em breve e terá uma bebida que trará alívio aos possíveis enjoos durante a viagem.
Agradeço ao rapaz e me levanto.
- César, pegue uma roupa e se vista no banheiro. Giulia e eu iremos vestir algo mais confortável, tirar as anáguas e os corpetes que nos matam e avisamos quando puder sair.
A viagem durou vinte dias e estávamos a todo vapor.
Quando avistamos o porto, sinto um alívio pelo fim da viagem, mas ao mesmo tempo, algo nesta terra de sol escaldante e brisa gélida me faz repensar se devo descer ou não. César, que mal contém sua empolgação, relata seu desejo em ir até a praia e poder brincar.
Pajens são novos e úteis, esquecem sua infância por moedas e uma vida melhor. Não posso salvar todos, mas César me cativou no primeiro dia que o vi no castelo. Ele é esperto e inteligente e, como sempre trato todos com respeito e amizade, independentemente da posição, nos tornamos fiéis escudeiros um do outro.
- Quem virá nos buscar, lady? - pergunta pela milésima vez e sorri.
- Acredito que ninguém, mas nada que um pajem experiente não consiga uma boa carruagem por algumas moedas e água fresca para nos refrescar.
Ele sorri e desaparece entre as pessoas.
- Por que cuida tanto dele? - indaga Giulia.
- Porque nós da nobreza temos que ter palavra e eu prezo lealdade e amizade. Ele é um bom menino e logo será da família.
Alguns minutos depois, ele volta com dois copos de água fresca.
- Água para duas miladies!
Fazemos uma pequena reverência e matamos nossa sede.
- Agora entendi, Isa!
Sorrimos.
Logo ele pede permissão para brincar antes de atracarmos e falo:
- Vá se divertir!
Enquanto ele corre, colocamos os copos na mesinha e nos sentamos no convés.
- Nunca me contou sobre a sua família direito.
- Não há muito a contar, embora ame meus pais, eles sempre passam a mão na cabeça do meu irmão, já quanto a mim, são rígidos ao extremo, mas tirando isso, temos um belo parreiral e uma casa afastada da cidade que é belíssima... Na nossa propriedade, a parte que mais amo é a cachoeira, a levarei lá amanhã - diz e sorri.
- Sempre quis ser dama de companhia?
Ela nega com a cabeça.
- Sempre amei música, mas meus pais prezam um bom casamento e papai tenta há anos pôr juízo na cabeça do meu irmão que ama farra, mulheres e jogos.
Reviro os olhos com a última parte.
- Não gosta de jogos?
- Na Corte, somos influenciadas a aprender a jogar cartas pela sobrevivência, mas no mundo real as cartas destroem famílias.
Um apito estridente do navio nos avisa que atracaremos em breve.
- Vamos, Isa, buscar nossas malas de mão antes que aqui fique impossível de transitar.
Voltamos à cabine e aguardamos César retornar.