Capítulo 5 UM PORTAL NO LAGO – CAPÍTULO V

A cerimônia ocorrera como o esperado, minha mãe discursou sobre como era bom estarmos juntos e unidos e que éramos gratos a deusa por nos proporcionar um lugar tão bom para que pudéssemos montar nosso acampamento e por ai vai. Toda vez que nós nos mudávamos havia uma cerimônia na nossa primeira noite no tal lugar novo, nessa cerimônia, minha mãe realizava um feitiço de proteção que abrigava todo o povoado, por isso era tão importante sabermos sobre os negócios dos Farkas no nosso território, para que então pudéssemos proteger o povo.

Após a cerimônia nós fomos para a tenda do trono, minha mãe estava inquieta, mesmo que meu pai e meu irmão não tivessem percebido, eu sabia que ela não tinha parado de pensar no que eu tinha falado e uma sensação me dizia que ela já sabia o que eu tinha pra falar. - Os Farkas na aldeia e o desaparecimento da magia estão ligados não é? – Meus pais enrugaram a testa, mas não falaram nada então eu continuei. - As pessoas que perderam a magia não aconteceu apenas no nosso acampamento e sim em todos os clãs não foi? – Seth já tinha tirado o paletó e enrolado as mangas até o braço, parecia tenso, mas não falou nada, ele não estava aqui. - Não podemos concluir nada ainda Evolet. - Minha mãe deu um sorriso ameno. - Tenho um plano melhor. - Eu disse me sentando na cadeira em frente a minha mãe. - Pretendo ir ao acampamento da Alemanha aonde houveram os primeiros relatos de alguns bruxos que perderam a magia. - O olhar da minha mãe grudou no meu e por um momento eu quis repensar minha decisão, mas me mantive em silêncio. Digamos que vossa majestade tinha um olhar amedrontador, sua íris azul ficava quase preta quando ela não estava feliz, o que obviamente era o caso. - Fora de cogitação. - Ela respondeu ainda com os olhos pregados nos meus. - Eu não sei o que vocês tem tanto medo na Alemanha. - Seth soltou e meus pais travaram o maxilar, meu irmão tinha tocado na ferida. - São dois dias e vocês sabem fazer o salto sem a gente, fizeram inúmeras vezes. - Seus olhos estavam inflamados. - A Alemanha é território neutro Seth, vocês dois sabem bem disso, não é terra de ninguém, se algum outro clã descobre que vocês estão lá... - Meu pai tentou fazer isso soar como verdade, mas no fundo todos sabíamos que não era só isso. As nossas lei não funciona lá, simples assim, agora o porque... Já é uma outra história, e essa ninguém parece disposto a contar. - É lá não é? – Eu falei quase rindo, minha mãe negava com a cabeça. - Alissarys, a terra que as borboletas falaram, fica na Alemanha, é por isso que nenhum clã pode controlar o lugar, porque é nossa terra natal, terra de todo mundo. - As borboletas falam o que Evolet? – Minha mãe me perguntou intrigada, a raiva tinha dissipado, toda vez que eu mencionava o dom que ninguém entendia eles retrocediam no que quer que fosse. - Preciso ir até a Alemanha mãe... Eu... eu preciso. Não consigo dormir há dias, pessoas aparecem nos meus sonhos pedindo ajuda, não sei aonde estão, mas precisamos ir lá. - Meus pais se encararam por um momento, eles estavam numa conversa silenciosa, as vezes eu pensava que eles tinham a mesma comunicação mental que Seth e eu, porém eram só os muitos anos de casamento. - Seth. - Meu pai chamou ele e meu irmão marchou para o seu lado. - Vamos entrar em contato com o acampamento da Alemanha e ver se conseguimos nos encontrar com eles em alguns dias, vamos ter que falar para o povo o que está acontecendo, todos os homens que estiverem fora peça para retornaram, vamos precisar falar sobre algumas proteções extras. - Meu irmão sorriu vitorioso, mas eu ainda estava incomodada o suficiente para conseguir comemorar. - Evolet, está na hora de você conhecer um lugar. - A voz da minha mãe soou calma e cortante. "Jogou sujo, mas jogou bem." - As palavras silenciosas de Seth soaram na minha mente. "Conte-me tudo." - Respondi a ele. "Sempre." - Essa única palavra me dava mais segurança do que qualquer outra promessa. Essa era a nossa palavra, um lembrete. - Evolet... - Minha mãe começou. - Mãe... - Respondi e ela balançou a cabeça impedindo que eu prosseguisse, pra ser sincera eu nem ia falar nada. - Vem, vamos dar uma volta. - Ela me estendeu a mão, e meu estomago embrulhou, eu fazia uma leva ideia do que iríamos fazer. O mundo foi saindo de foco, minha pele começou a formigar, a sensação era de que estávamos subindo e subindo e que tudo passava pela gente em grande velocidade. Aos poucos o ambiente fora se distorcendo e voltando ao foco, mas não nos encontrávamos mais em nossa tenda. Tínhamos saltado. - Detesto isso. - Revirei os olhos. Saltos sempre me deixavam enjoada. Eu precisava descobrir uma forma de locomoção diferente, urgentemente - Onde estamos? - Perguntei percorrendo toda a nova paisagem com os olhos. À minha frente se encontrava um imenso lago, ao fundo dele havia um arco de pedra que cortava o lago de uma ponta a outra, ele parecia formar uma entrada, como se tivessem sido posto lá por alguém, justamente com o intuito de ser uma porta. - Estamos na Alemanha querida, mais precisamente na divisa com a Áustria. - Encarei minha mãe levemente confusa, mas muito curiosa. Seu tom era calmo e gentil, nem parecia à mulher que ia me fuzilar a minutos atrás. - Aqui é o nosso berço Evolet, se concentre e sentirá a magia fluir pulsante em suas veias. - Realmente minha pele formigava, eu sentia algo correr pelas minhas veias e se alojar nos meus ossos, era forte e me fez sentir mais viva, alguma coisa despertara em mim. - Porque viemos aqui mãe? - Minha mãe apontou para um cais abandonado e fomos caminhando a beira do lago em sua direção. - Muito tempo antes de existirem os clãs, os inferis e os enevoados viviam lado a lado. - Minha mãe e eu caminhávamos a beira do lago, a cada passo para perto do cais minha pele formigava mais forte, eu podia jurar que o cais estava mudando de forma. - Inferis era o termo que usávamos para distinguir qualquer ser mágico dos não-mágicos. Antes que pergunte. - Ela me deu um sorrisinho assim que eu abri a boca e então continuou. - Nós não tínhamos a rivalidade que existe hoje e nem escondíamos quem éramos, até ajudávamos os enevoados nos trabalhos. - Minha mãe ficou quieta por um momento, contemplando o horizonte. Minha cabeça formulava várias perguntas, mas a história ainda não havia terminado. - Com o passar do tempo alguns inferis começaram a querer subjugar os enevoados, eles se achavam melhores e queriam forçar a humanidade a servi-los... Bom não acabou bem para a gente como você deve imaginar. Os enevoados sabem como escravizar povos melhor do que ninguém e fizeram conosco, e fazem até hoje. Organizavam caçadas para nos aniquilar, fomos queimados e assassinados com armas que nem podemos imaginar. Foi uma época negra para todo o nosso povo, independente da raça, sem poder ser quem éramos de verdade. Escondendo-nos em buracos e negando nossa verdadeira forma, nos encolhendo. - Eu ouvia cada palavra em mais absoluto silêncio, havia certa dor no discurso da minha mãe, como se ela tivesse presenciado isso ao vivo. - Sabe o que acontece quando bruxos renegam o seu poder Evolet? - Neguei com a cabeça incapaz de dizer alguma palavra. - Secamos e morremos, não dá para pessoas como nós simplesmente ignorar o que somos. - Assenti pensando nas pessoas em outros acampamentos onde haviam tido relatos do sumiço da magia e pensando em mim e no Seth, que tivemos que abandonar nossa verdadeira natureza... Ou quase abandonar. - Bom, os Dinguir vendo que sua obra mais perfeita estava prestes a ser massacrada se apiedaram e então criaram um refúgio, um lugar aonde todos poderiam viver em paz e livres para ser quem queriam ser, sem rótulos ou leis que proibissem isso. - De repente imagens brotaram em minha mente, cachoeiras, castelos, bosques, cidades brilhantes... - Essa terra encantada respondia pelo nome de... – Ela continuou, mas eu a cortei antes que pudesse terminar. - Alissarys... - Completei antes da minha mãe, ela me encarou um pouco surpresa, mas assentiu balançando a cabeça. Encontrávamo-nos bem a frente do cais abandonado, mas ele estava completamente diferente. Havia uma ponte de madeira enorme que ligava a beirada do lago até uma construção de pedra, parecida com uma torre, haviam barcos gigantescos ancorados de ambos os lados da ponte, tochas acessas faziam a iluminação do local. - Incrível... - Sussurrei maravilhada, a névoa havia se dissipado e agora podíamos ver através do véu. - Era aqui que embarcávamos para ir para casa, não é fácil encontrar esse lago, cercado por montanhas impossíveis de serem escaladas, além da espessa barreira de magia que confunde os enevoados. - Minha mãe explicou enquanto caminhávamos entre os barcos. Olhei ao redor enxergando a névoa que nos escondia, era engraçado, eu conseguia saber onde ela estava em cada ponto, como se estivéssemos ligadas. - Bem no meio daquele arco é a entrada. - O arco agora parecia brilhar, reluzindo no meio do lago. - Era lindo Evolet, sempre cheio de gente, os clãs unidos... - Minha mãe tinha uma expressão de tristeza no rosto. - Mamãe o que aconteceu? Porque essa briga entre clãs? Porque esconder tanta coisa? Sei que podemos resolver isso. - Minha mãe virou-se para mim com um sorriso agradecido no rosto. - Sei que você pode resolver minha filha, mas há algumas coisas que eu ainda não posso te contar, mas sei que o passo de voltarmos para nossa terra natal vai mudar as coisas novamente. - Minha mãe respondeu, mas acho que falava mais para si mesma do que para mim. - E isso me preocupa, porque eu prometi há muito tempo que pouparia você e seu irmão desse assunto. - Que assunto? - Ela novamente ficou muda encarando o arco de pedra. Precisamos voltar. - Ela segurou minha mão e saltamos novamente. - Detesto fazer isso. - Resmunguei ao voltarmos para a tenda. "Precisamos conversar" - Seth resmungou pelo laço. "Pode apostar que sim. Sabe me dizer o que é um Dinguir?" - Respondi. "Se tivesse me perguntado há meia hora eu diria não, mas acabei de descobrir" - Seth respondera. "Te encontro na praia" - Evolet... - Minha mãe virou para mim. - Você é a futura rainha, saiba quais informações você deve compartilhar. - Esperava que ela não estivesse falando de Seth, afinal ele tinha acesso a qualquer coisa na minha cabeça, coisa de gêmeo. "Aonde você está?" - Seth deu uma pequena puxada no laço. Assim que deixei a tenda da minha mãe às perguntas começaram a surgir, me deixando um pouco desnorteada. Muita coisa para digerir, mas o que realmente me incomodava era a quantidade de palavras não ditas, respostas inacabadas. Meu sangue pulsava e eu me sentia muito forte, eu sabia que se quisesse podia saltar com esse acampamento inteiro para qualquer parte do mundo e ainda sim não estaria cansada. Era a magia antiga me dando um gás. "Preciso de ar." Respondi pelo laço. "Vou pra Arena Seth." "Está tudo bem?" As pessoas me cumprimentavam, às vezes com reverência, às vezes com sorrisos bondosos, algumas me ofereciam seus produtos, ou me convidavam para tomar um chá em suas tendas. O calor, as cores, o cheiro do campo estava tudo me enjoando o estomago, fazendo com que meus ouvidos zunissem. Passei por um grupo voltando da cidade que me olhou assustado, uma senhora fez menção de vir ao meu encontro, mas mudou de ideia e entrou em sua tenda fechando a porta, provavelmente eu não aparentava uma boa recepção hoje. "Ela não parece bem." - Ouvi alguém dizer, olhei para o senhor ao meu lado, mas sua boca nem mexia. "A princesa das borboletas..." - Outra voz falou. Inúmeras vozes foram invadindo a minha cabeça. Eu conseguia ouvir cada voz daquele acampamento, ou melhor, cada pensamento. Eu estava descontrolada com certeza, há muito tempo eu aprendi a controlar os meus dons, eu só lia o que eu queria ler, mas agora os pensamentos de todo o acampamento gritavam na minha cabeça. - Saiam. - Resmunguei assim que atravessei as portas da arena. Alguns guardas me olharam surpresos, mas não fizeram perguntas, alguns reclamaram internamente, mas não tinham coragem o suficiente para me desafiar. Minha cabeça girava e por mais que eu tapasse os ouvidos as vozes ainda eram ouvidas. A arena nada mais era do que uma tenda gigantesca e mágica, assim como todas as outras. Por fora ela tinha o tamanho de um circo, mas por dentro tinha o tamanho de um estádio. Era aonde os guardas treinavam e onde Seth e eu descarregávamos o excesso de energia que tínhamos. Imagens... Era isso que surgia em meus pensamentos agora, rios, castelos, vilas, cidades brilhantes, um portal de granito azul... Uma cachoeira. Pessoas gritando. Fogo. Uma voz cortante e então tudo se repetia novamente. - Sai! - Eu me ouvia a dizer para ninguém em especial, não enxergava um palmo na minha frente, mas sabia exatamente onde estavam os alvos, podia senti-los. O calor que irradiava da minha pele concentrou-se em minhas mãos e assim saiu o primeiro disparo. Nenhum feitiço em especial, apenas a mais pura energia. De novo. De novo e de novo. Repetidas vezes, mas o zumbido só aumentava. As descargas deveriam ir me deixando mais fraca, mas apenas estavam me deixando ainda mais ligada. Uma vez Seth e eu não fomos "descarregar", lembro como se fosse ontem... O acampamento pegando fogo, queimamos tudo, isso porque discordaram da gente, nem lembro no que, mas sei que foi algo bobo e sem importância, depois disso, nunca mais ficamos sem descarregar pelo menos uma vez na semana, sabe aquela história de bruxos que reprimem o próprio poder? É exatamente o que Seth e eu temos que fazer, estou cansada disso. - Pela mãe! Me deixe em paz. - Eu nem sabia para quem estava falando aquilo, mas eu me sentia como um vulcão prestes a explodir. Isso porque eu havia sentido apenas um pouco de magia antiga, se fosse para Alissarys poderia destruir o planeta. "Respire." - Uma voz falou na minha cabeça, ela era aveludada e masculina, me deixava calma. "Não lute contra isso Evolet, não pense demais, deixe as memórias fluírem, aceite as boas, mas saiba usar as ruins a seu favor. Concentre-se nos detalhes." – A voz continuou, na minha cabeça a imagem de um homem de chapéu se formou, mas logo sumiu. Fiz o que o tal homem falou. Ouvi o som da cachoeira, senti o cheiro das flores, tentei entender o contexto da guerra... - Evolet você está... - O que quer que Seth fosse me dizer quando entrou na arena morreu antes mesmo de sair. - Puta merda. - Encarei meu irmão apenas para ver o horror estampado em seu rosto. Seth dera dois passos para trás em choque. - De onde elas vieram? - Ele soltou. Aos poucos a visão foi clareando, só então percebi que o zunido que estava me enlouquecendo era de asas, a arena estava coberta por borboletas, do chão ao teto, os alvos agora estilhaçados estavam cobertos por elas também. - Seth... - Sussurrei sem saber ao certo o que dizer, não sabia o que elas queriam dessa vez. Nunca haviam feito mal a ele, mas mesmo assim meu irmão as odiava não me dizia o motivo, não sei nem se ele sabia, mas elas o deixavam apavorado. "Ela viu" "Ela disse o nome" "Alissarys" "Fale novamente majestade" "Vá para casa" "Ela falou com a morte" Elas falavam todas ao mesmo tempo, inúmeras frases e cantavam sobre Alissarys, que agora eu sabia que realmente existia. Uma borboleta vermelha voou por cima da cabeça de Seth, fazendo meu irmão encolher um pouco. "Dê a mão para ele, minha senhora." - Ela falou ainda sobrevoando a cabeça dele. - Por quê? - Perguntei. "Está na hora dos filhos do pesadelo se lembrarem." - Caminhei até Seth, como um robô controlado por outra pessoa. Meu irmão me olhava confuso. - Só me de suas mãos. - Falei esticando as minhas para ele. - Por quê? - Dei um meio sorriso, uma piada interna que só eu entendia. - Eu não sei, mas já vamos descobrir. - Seth cobrira minhas mãos com as suas, mas a relutância estava estampada em seus olhos.

            
            

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