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Saem ficou agitado após saber que Verônica viria e eu também. Não conhecia a ex-namorada dele, e se ela fosse barraqueira? E se pensasse coisas erradas a meu respeito? No geral eu não tinha culpa de nada. Somente cumpria ordens, na real eu era uma pau mandada, joguemos às cartas na mesa. Apesar de ter meus motivos para isso, morava sozinha em um bairro relativamente caro, para facilitar meu acesso ao escritório. Porque eu não daria conta de atender aos pedidos fora da normalidade da Angélica se morasse muito longe.
Eu nem tinha carta de motorista e gastaria horrores para me locomover confortavelmente. Vocês já pegaram metrô e trem no horário de pico em São Paulo? Era um Deus nos acuda e não se sabia o horário de chegada em lugar nenhum. Uma hora? Um dia? Caminhar no trilho do trem para chegar em casa? Tudo era possível. Eu receberia um salário bem menor em qualquer outra empresa. Entretanto, às vezes pensava se valia a pena me submeter a esse tipo de tratamento só por um salário maior no fim do mês.
E minha saúde mental, ficava onde? A questão é que eu temia começar de novo, procurar emprego, fazer entrevistas. A insegurança de tudo isso me apavorava.
- Não precisa ficar nervosa. - Saem comentou, ao me ver balançar as pernas freneticamente. - Verônica é uma garota legal, o único problema é que é influenciável às vezes. E minha mãe, você conhece, é a maior influenciadora que já existiu nesse planeta. - Seu olhar estava fixo em mim, o que me causava uma sensação de calor.
- É - concordei sem pensar. - Não, quer dizer, sua mãe é ótima. Ela só tem personalidade forte. - tentei corrigir, porque, apesar de tudo, ele era filho da mulher que pagava minhas contas.
- Relaxa, não precisa fingir comigo. Acho que já falei isso - respondeu, enchendo mais nossos copos de suco. Assim eu precisaria ir ao banheiro, tipo, muito rápido. Contudo, estava calor demais lá fora e o suco bem geladinho. Também era bom ter algo nas mãos para me distrair. - Eu amo minha mãe, ela que me colocou no mundo e me criou. Não significa que não conheça as qualidades e os defeitos dela.
Eu ouvia em silêncio, tinha algo de fascinante no jeito dele falar. Era tão articulado e ao mesmo tempo livre de palavras rebuscadas. Dava para perceber que Saem era inteligente, porém, ele não jogava sua superioridade na minha cara.
Saem era montado na grana, eu sabia. Os avós dele, se não me falhava a memória, eram praticamente donos da metade da Coreia do Sul. Exagerei um pouco, mas não tanto.
- Talvez seja melhor eu ir embora, já é tarde e tenho um longo caminho a percorrer até em casa.
Eu morava perto do trabalho, por questões que já informei e aquele bairro ficava do outro lado da cidade. Até Angélica tinha um apartamento menor próximo ao escritório, a casa era mais para quando Saem estava. O que não acontecia há uns quatro anos, pelo que soube.
- Não vou deixá-la ir embora de táxi - informou sério. - Fica mais um pouco, por favor. Pelo menos até eu me resolver com a Verônica, é errado, eu sei. Mas não estou preparado para vê-la tão rápido, tenho quase certeza que minha mãe enfiou alguma coisa na cabeça dela. - Ele apertou os olhos, aparentemente desaprovando o próprio comportamento. - Desculpe, não posso te envolver, é assunto meu e preciso resolver sozinho. Se quiser ir, tudo bem, mas se ficar, eu posso te levar de carro.
Ponderei por uns dois segundos antes de aceitar, porque minha curiosidade falava mais alto. Eu queria conhecer a garota que o fez se apaixonar em algum momento. E se eu fosse embora agora, talvez nunca mais tivesse a mesma oportunidade. Além disso, Saem me levaria de carro. Era uma coisa boa, certo?
- Tudo bem, acho que posso esperar mais um pouco. - Ele sorriu bem grandão.
Um sorriso que mostrava todos os dentes.
- Ótimo, então vou fazer alguma coisa para você comer enquanto ela não chega. - levantou num átimo, apoiando-se nas pernas por alguns instantes. - Me ajuda? - Saem estendeu a mão direita em minha direção e eu quase morri.
Ele não podia fazer essas coisas.
Eu estava carente e tinha uma queda por garotos bonitos com pinta de ator de dorama.
Para me surpreender ainda mais, Saem apertou minha mão na sua. Eu precisei me lembrar que ele nasceu na Coreia, mas cresceu no Brasil e também tentei não focar nos estereótipos de garotos sul-coreanos que eu via em novelas coreanas. Para todos os efeitos, ele cresceu na cultura brasileira. Com tudo isso em mente, em questão de segundos, permiti que Saem envolvesse meus dedos. Sua mão estava quente e a minha quase pegou fogo com o contato.
Por que ele segurou minha mão? Qual o sentido disso? Saem estava flertando comigo ou eu estava sendo iludida ao cogitar essa possibilidade?
- O que você gosta de comer? - perguntou, como se o fato de estarmos de mãos dadas não fosse nada. - Já aviso que sou ótimo cozinheiro, sei fazer quase tudo. Tanto comida brasileira, quanto coreana. Na real, essa é minha paixão, mas minha mãe não leva a sério e me critica por gostar tanto de cozinhar. - Ele suspirou. - Nossa, de novo eu despejando meus assuntos em cima de você.
- Pode me contar o que sentir vontade - avisei, com meu coração leve e alvoroçado ao mesmo tempo.
Fazia tempos que eu não sentia o toque de um garoto.
- Agora que você disse isso, vou começar a falar mais sobre mim mesmo sem querer - brincou sorrindo, retribui o sorriso enquanto seguimos até a cozinha chiquérrima da casa.
- Está liberado - afirmei, esperando que não estivesse fazendo aquela cara de boboca que sempre fazia quando estava perto de garotos bonitos.
Saem soltou minha mão para pegar um avental azul bebê em uma das gavetas, amarrou na cintura, me olhando como se esperasse aprovação. Achei graça e levantei o polegar, depois pensei ser muito simples. Decidindo por um ok, juntando o indicador ao polegar. Ele riu, uma risada rica e gostosa que foi direitinho para o meu coração.
Ah, meu pai. Esse garoto tinha que parar de sorrir e soprar o cabelo, assim eu corria sério risco de me apaixonar. Ele era fofo em todos os sentidos, ficava difícil raciocinar com meus dois neurônios entrando em curto.
- Vai querer experimentar comida coreana, feita por um coreano que morou quase a vida toda no Brasil? - Ergueu uma sobrancelha.
- Quero sim! - confirmei rapidamente.
Já experimentei comida coreana, mas foi pedindo no Ifood.
Achei bem mais atrativo feito pessoalmente por um coreano. Ele foi até o armário, que não precisava nem dizer, era maravilhoso. Acredito que foi planejado, porque pegava toda a cozinha perfeitamente. De lá retirou algumas panelas que eu nem sonhava em ter em casa e mais um monte de ingredientes, que eu não fazia ideia de como usar.
Sentei na bancada, observando como Saem trabalhava. Demonstrando estar feliz ali, como se estivesse em seu próprio mundo. Seus cabelos se esparramam na testa e ele continuava soprando para cima como se fosse uma mania enraizada. Coloquei a mão no bolso da calça, sentindo uma presilha que eu geralmente prendia alguns fios rebeldes dos meus próprios cabelos. Porque cachos, sabem como é, são imprevisíveis. Com coragem e determinação em cada célula minha, a peguei e fui em direção ao Saem. Ele me olhou confuso, me obrigando a mostrar a presilha como uma oferta de paz.
Saem sorriu, fazendo que sim com a cabeça, então eu toquei sua testa, levantando seus cabelos teimosos. Ajeitei tudo em meus dedos, ficando na ponta dos pés para isso. Antes de prendê-los com a presilha que era rosa fluorescente, ele não pareceu ligar para esse detalhe. Só depois notei que Saem tinha abaixado consideravelmente para que eu conseguisse mexer em seus cabelos.
Tá, ele era bem alto mesmo.
Quando terminei, admirei meu trabalho e me afastei. Porque fiquei perto demais e meus dedos coçaram para continuar tocando seu rosto.
- Como fiquei? - Quis saber, fazendo uma pose adorável com as duas mãos abaixo do queixo.
A típica cena de dorama.
- Ficou fofo - assumi e senti minhas bochechas ficarem quentes.
A sorte era que não dava para perceber muito pelo tom pardo da minha pele.
- Se eu fiquei fofo então vou deixar. - E tornou a mexer nos ingredientes.
- Ótimo, porque essa presilha é muito importante pra mim. - Cruzei os braços e fiz um bico, fingindo chateação.
- Vou guardar com carinho - respondeu entrando na brincadeira.
- Ei, você não vai me devolver? - fingi indignação.
- Não, vou considerar um presente - argumentou taxativo. - Sabe, eu queria ficar sozinho em casa. Mas está sendo bem melhor com você aqui. - Ele piscou.
- Aí - Coloquei a mão no peito.
- O que foi? - Saem me olhou apreensivo, parecendo preocupado.
- Você não deve fazer essas coisas, não mesmo - argumentei, balançando a cabeça em negação.
- O que, por exemplo?
- Piscar e soprar os cabelos e sorrir todo fofo - escapou, ele soltou uma gargalhada. - Eu tenho queda por garotos fofos, sabe, com pinta de ator de dorama. E você parece muito um. - Mordi o lábio, pensando no porquê fui falar tudo aquilo.
Saem daria risada da minha cara, ou me expulsaria dali aos chutes por causa da minha ousadia. Pelo amor de Deus!
- Se eu te disser que fiz um teste para atuar em um drama há um ano e passei você vai dar muita risada? - contou, fiz que não.
- Por que não aceitou?
- Não sou ator, só fui de zoeira - explicou, acrescentando em seguida: - Eles pagavam um valor para quem fosse para a segunda fase e eu queria saber como era ganhar meu próprio dinheiro. Sabe como é, sem que fosse enviado pela minha mãe ou meus avós.
- Ah - fiquei em silêncio, sem saber o que dizer. - E passou, mas não quis?
- Não, eu disse que voltaria em breve para o Brasil. Era um papel bem pequeno, quase uma figuração. - ele foi até o fogão e ligou uma das bocas. - Assim acabou minha carreira como ator de novelas coreanas. - dramatizou, eu ri.
- E o que você pretende fazer agora que está de volta? - perguntei, receando ter ido longe demais. Saem pensou um pouco e logo começou a responder:
- Eu queria mesmo cursar gastronomia, mas minha mãe quer que eu a auxilie na empresa - suspirou. - Ela tem planos para eu lidar com os acionistas, por isso fui para a Coreia aperfeiçoar o idioma. Enfim, minha vida é uma chatice. Você não estaria interessada.
- Estou sim - revidei rápido. - Quero saber mais sobre você.
Ele estreitou os olhos e me encarou por longos segundos.
- Chega de falar de mim, me conta sobre você - pediu, apontando uma colher de pau na minha direção.
Foi minha vez de suspirar.
- Meu pai me abandonou quando minha mãe morreu, eu era uma criança ainda. Minha família por parte de pai também não quis saber de mim, então fiquei com minha avó materna durante toda a infância, ela faleceu há um ano. Tinha acabado de concluir o tecnólogo em secretariado e a vaga no escritório oferecia um salário ótimo. Mesmo eu sendo recém formada. - Baixei os olhos, começando a fazer círculos na bancada de mármore. - Fiz a entrevista para a vaga de assistente e passei. No início foi bom trabalhar o tempo todo, eu queria esquecer meus assuntos pessoais. Portanto, estar sempre com a cabeça ocupada ajudava, mas agora constantemente me sinto sobrecarregada - confessei e ergui o olhar lamentando ter falado tanto.
Não entendia o porquê de ter contado a ele todas essas coisas que eu não falava para ninguém. Afinal, acabei de conhecê-lo, e se Saem comentasse com a mãe? Não, ele não faria isso. Também me contou coisas pessoais.
- Sinto muito - foi o que ouvi - Desculpe ter te forçado a me contar algo tão seu e sinto muito pelo seus pais. - nossos olhares se encontraram e imediatamente me senti mais leve por ter falado.
Eu era bem reservada e não tinha muitos amigos, na verdade nenhum. Com a rotina louca do escritório, não me sobrava tempo para socializar. Ou seja, eu raramente desabafava com alguém, assim como fiz hoje. Foi como tirar um peso dos meus ombros, um peso que eu nem sabia que carregava.
- Está tudo bem - garanti, forçando um sorriso.
Percebendo naquele instante que foi o sorriso mais falso da minha existência e que meus olhos estavam molhados. Tentei segurar, juro que tentei, não pretendia chorar na frente do Saem. De um garoto que acabei de conhecer, mas sabe como são as emoções... elas simplesmente existem e dão as caras nos momentos menos oportunos. E então eu estava chorando.
- Ei. - Ele lavou as mãos rapidamente, enxugou no avental e veio até mim.
- Não, está tudo bem - tornei a garantir. - Ai meu Deus, eu não queria chorar na sua frente. Me desculpe. Virei o rosto, evitando seu olhar, mas foi em vão. De repente eu estava com o rosto enterrado no peito do Saem, naquele momento ele cheirava a temperos e canela. O importante é que quando envolveu meus ombros, foi o estopim. Meu choro vinha compulsivo, não só por tudo o que aconteceu. Por eu ter sido abandonada na infância pelo meu próprio pai, somente por ele não conseguir lidar com a perda da minha mãe. Mas também pela minha vó que me deixou sozinha no mundo, pelo trabalho que me consumia por inteiro sem que eu pudesse reclamar.
- Desculpe. - funguei, tentando conter o choro.
- Não precisa se desculpar - respondeu, acariciando meus braços. - Está tudo bem, Ananda. Chorar alivia, pode chorar. - Sua voz soou calma e afável. - A partir de hoje vou te ajudar com a minha mãe, não a deixarei mais te tratar desse jeito. Durante essa semana vou tentar conseguir que você não precise pensar em nada que envolva relatórios ou coisas do escritório, tá bom? - Ele me afastou o suficiente para olhar nos meus olhos, erguendo meu queixo com a ponta do indicador.
Fiz que sim e abri um sorriso.
- Por que está me ajudando? Mal nos conhecemos - refleti, mesmo sem querer.
- Preciso de um motivo contundente para ajudar uma garota, que claramente precisa de ajuda? - revidou, franzindo a testa. - Minha mãe falava muito de você, na maioria das vezes te dando alguma ordem enquanto conversava comigo ao telefone. Eu não achava legal a forma como ela te tratava e quando te vi pessoalmente, entendi que podia fazer alguma coisa, porque ninguém deve viver em prol do trabalho. Minha mãe vive, é verdade. Eu já desisti de tentar mudar isso, mas o restante de nós não deve seguir o mesmo rumo. - Parecia uma explicação plausível, mas não deixou de me surpreender.
- Você é um garoto legal - comentei, me sentindo mais estável.
- Obrigado, agora que está melhor, vou terminar ou não comeremos nada hoje. - Ele deu um toquinho no meu queixo e voltou aos afazeres.
Infelizmente a campainha tocou.
É, a ex-namorada estava na área, o que eu deveria esperar desse encontro?