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Só deu tempo de me ajeitar na mesa, para Saem entrar pela porta como um foguete. Veio até mim com uma expressão de cansaço nos traços bonitos de seu rosto. Fingi trabalhar para não dar pinta de que espiei toda a conversa, mas meu nervosismo latente denunciava algo. Por sorte Saem estava agitado e não percebeu.
- Oi, Ananda - me cumprimentou com calma, parecia não querer demonstrar suas emoções.
- Bom dia - respondi. - O que faz aqui? - me fiz de sonsa.
- Vim te buscar, que tal. - ele piscou e... aí, doeu meu coração.
- Como assim? - fiquei desnorteada de verdade. - Você tem uma semana de férias comigo, já falei. - Saem tentou pegar minha mão, porém eu me embananei e derrubei os relatórios.
- Não posso, preciso terminar isso - neguei, pegando os relatórios e organizando na ordem para não embaralhar.
Ele bufou, em seguida se recompôs.
- Eu te ajudo então. - puxou uma cadeira, sentando ao meu lado. - O que preciso fazer?
- Você está falando sério? - franzi o cenho, sem compreender o porquê de tudo aquilo.
- Estou. - sorriu, fechando os olhos.
Acabei rindo sem querer também, era meio automático.
De todo modo, com ajuda, terminei bem antes do planejado. Ainda assim temia ser despedida, no entanto, Angélica ligou no meu ramal para confirmar que eu estava liberada por uma semana. Não contestei, vai que ela mudasse de ideia? Peguei minha bolsa e sai de fininho, mesmo sem entender nada. Saem estava sendo tão legal comigo, por quê? Não que eu fosse reclamar, óbvio. Contudo, era no mínimo peculiar ter um garoto que não me conhecia, estendendo a mão.
Ninguém me ajudava, em hipótese alguma, nunca. Aprendi a ser independente depois que minha vó faleceu, era o que me restava.
Enfim, dessa vez fui no banco do carona e fiquei em silêncio olhando pela janela, até ele pedir para ligar o rádio.
- Tem um pendrive com as minhas músicas favoritas ali - apontou para o painel, abri e fucei. Não achei nada, a não ser uns trecos e uma fotografia do Saem rasgada ao meio. Ela parecia familiar, as cores, o formato do rasgo... Tinha algo estranho ali.
- O que é isso? - indaguei, em seguida abri minha bolsa, peguei a carteira e procurei até achar uma foto parecida.
- É uma fotografia minha de quando era criança, não sei onde foi parar a outra parte - respondeu, ignorando minha pergunta boba. - Eu procurei muito essa foto, que bom que não perdi.
- Olha - mostrei a fotografia que eu sempre carregava na carteira.
Eram iguais, como se uma completasse a outra. Ele olhou de lado com cuidado, observando a foto rasgada por alguns segundos.
- Caramba! - exclamou surpreso.
Saem ficou tão curioso, que parou o carro no meio-fio para analisar.
- Sou eu quando tinha uns três anos, não sei porque sempre guardei essa foto rasgada comigo - contei, juntando as duas partes. - É uma fotografia só.
- Deixa eu ver. - Saem pegou as duas partes e também juntou. - Se essa é você e esse sou eu, significa que já nos conhecemos. Ou que nossos pais se conheciam, que loucura! - constatou, olhando atento para a foto em suas mãos. - Minha mãe nem sabe que eu tenho essa fotografia, uma vez ela quis esconder e eu peguei. Eu gostava dela, mesmo sendo rasgada. Então a gente se conhece desde criança? Ou eu não entendi a ligação? - perguntou desconfiado.
- É o que parece - respondi meio aérea.
Aquela descoberta não fazia o mínimo sentido.
- Preciso investigar. - Ele devolveu as fotografias, tornando a dirigir.
Ficou tudo muito silencioso, ainda mais, enquanto seguíamos para a casa dele. Eu conhecia Saem desde pequena? Não que fizesse diferença, se não lembrava de nada por ser muito criança. Nem colocamos música para tocar, porque ambos estavam curiosos e confusos. Saem balançava vez ou outra a cabeça como se refletisse sobre algo, até chegarmos e iniciarmos uma pesquisa de campo.
- Sei que minha mãe guarda fotos nessa caixa, eu nunca mexi porque ela não gosta - explicou, pegando o objeto de madeira muito bem decorado. - Se tiver mais alguma foto de nós dois juntos, certeza que está aqui.
Nunca entrei no quarto da Angélica, jamais sonhei em sequer pisar meus pés. Tinha até medo de quebrar alguma coisa e acabar demitida ou na cadeia.
- Deve ser uma coincidência, como a gente se conheceria? - perguntei retoricamente.
- É o que vamos descobrir. - Ele piscou.
Já pedi que não fizesse isso, que droga!
Saem começou a fuçar nas fotografias, espalhando-as no tapete felpudo e rosa do quarto. Em alguns minutos procurando, não achamos nada que comprovasse nossa teoria. Contudo, eu estava me divertindo horrores vendo tantas fotografias dele ainda criança.
Já tinha esquecido do nosso propósito ali, quando me deparei com outra foto nossa juntos. Nessa fotografia Saem passava os bracinhos em torno de mim e sorria tanto, que nem dava para ver seus olhos. Eu também sorria e meu cabelo cacheado parecia uma jubinha de leão. Meu coração acelerou consideravelmente, não mostrei a foto de imediato. Só fiquei admirando em silêncio, tentando me lembrar daquele momento. Infelizmente, éramos pequenos demais para isso.
- O que você achou? - Ele olhou para minhas mãos, ofereci a fotografia.
Saem a pegou, analisando com calma. Seus olhos se estreitaram ainda mais, enquanto um sorriso que parecia de satisfação estampou seu rosto.
- Eu sabia. - Ele me olhou, balançando a foto.
- Sabia do que? - devolvi, tentando ignorar a forma como Saem me encarava. Como se tivesse achado a resposta de um enigma muito complicado. - Que a vontade de cuidar de você não veio de agora - revelou, tornando a olhar para a foto. - Aqui está a prova, a gente se conhece desde que nos entendemos por gente. Só não lembramos porque provavelmente em algum momento nos afastamos. Não dá para segurar memórias de quando se tinha três ou quatro anos, dá? - Saem fez uma careta, como se avaliasse a possibilidade.
Eu queria que meu coração parasse de bater tão rápido, assim ele me comprometia.
- Acho que não - assumi. - Será que sua mãe sabe de mim? Quer dizer, ela me contratou, eu contei do meu pai e da minha mãe.
- Eu aprendi desde cedo que minha mãe nunca dá ponto sem nó - respondeu, ficando mais sério e concentrado. - Preciso falar com ela para entender melhor, mas duvido que ela vá me contar alguma coisa. Ou seja, teremos que descobrir sozinhos.
- Enquanto isso eu fico com essa foto. - peguei da mão dele, mas Saem a reivindicou em um piscar de olhos. - Sem chances, olha que fofinha você era. - Em um pulo ele estava de pé. - Olha esses cabelos... ainda não vi seu cabelo solto, não depois de adulta ou que eu me lembre. Solta pra mim. - pediu, fazendo carinha de cachorro caído da mudança.
- Nem pensar! - exclamei alto. - Cabelo cacheado não se solta assim, preciso de todo um preparo. Fitagem, creme, finalização - enumerei nos dedos.
Ele riu.
- Então a foto fica comigo, as duas aliás. - Saem se referia a minha parte rasgada, que colamos juntos logo quando chegamos aqui.
Um pouco antes de subirmos para procurar por mais provas.
- Não, me devolve - ordenei, indo até ele.
- Vem pegar - desafiou, botando a foto lá em cima.
Ele só precisou levantar o braço, que ódio.
Por que tão alto?
- Assim é trapaça, olha o seu tamanho para o meu - resmunguei indignada.
- Não seja pessimista, Ananda - me incentivou. - Vem pegar. - O tom imperativo em sua voz me deu coisas na barriga.
- Eu podia estar de salto - choraminguei, cruzando os braços.
- Dá para notar que esse tipo de sapato machuca os pés - retrucou, olhando-me de lado. - Além do mais, eu gosto do seu tamanho, é bem... - ele hesitou, limpando a garganta - promissor - concluiu.
Meu estômago revirou.
- Você está muito engraçadinho. Só porque me conheceu quando eu era uma girina, não te dá nenhum direito. - Fingi estar brava.
Era muito bom falar com ele assim, descontraída. Parecia realmente que já nos conhecíamos, o que era estranho. Porque eu não tinha nenhuma lembrança dele antes.
- Girina? - riu alto. - Estou esperando. - corri até ele, tentando pegar a foto.
Saem ergueu o braço no último segundo e eu me choquei contra seu peito.
- Você é um poste! - exclamei, quase escalando em seus braços para pegar a foto.
- Você consegue fazer melhor que isso, Ananda - desafiou, mas sua voz soou tão rouca próximo ao meu ouvido que perdi totalmente o senso de direção.
Ele abaixou a cabeça o suficiente para olhar bem dentro dos meus olhos, pensei que fosse desmaiar.
Afastei-me com dificuldade, porque eu precisava respirar.
- Não deveria ficar tão perto de uma garota, sua ex pode ficar enciumada - ironizei para observar sua expressão.
- Eu não te contei, mas conversamos e resolvemos tudo - revelou, apoiando o peso do corpo mais de lado.
Tudo nele era gracioso, desde a forma como se portava às expressões suaves do rosto. De todo modo, fingi não saber de nada sobre a tal conversa, para todos os efeitos eu era inocente.
- Não é da minha conta. - dei de ombros, o que estava rolando ali?
Ele parecia flertar comigo.
Meu Deus, será que Saem sentiu-se atraído por mim? Eu ia morrer.
- Se eu quiser que seja, será - afirmou sério. - Eu surtei à toa, a Verônica é incrível, ela não iria me pressionar a nada. Sempre fomos amigos, eu fui arrogante em pensar que ela ainda gostava de mim romanticamente - argumentou seguro de si.
- Às vezes ela tem medo de que você a afaste - revidei, sem nem saber porquê.
- Nossa história acabou faz tempo, mesmo que minha mãe não entenda isso - contrapôs enfático. - Agora somos apenas amigos e acho que sempre seremos. Porque, ao contrário de você, não nos afastamos com o tempo. Só enquanto eu fiquei na Coreia.
- Vocês são muito próximos - observei, sentindo uma pontada no peito.
Para de ser louca Ananda, não tem porque sentir ciúmes da Verônica com o Saem. Você acabou de conhecê-lo, de novo. Mas acabou!
- Não precisa ficar com ciúmes - provocou sorrindo. - Ela gostou de você, disse que quer te conhecer melhor e me desejou sorte.
- O que? - revidei com as bochechas queimando. - Você está muito convencido se acha que vou ficar caidinha só porque você fica aí... - me calei, mortificada.
- Por que eu fico aqui? - incentivou, soprando o cabelo.
- Para - ordenei.
- O que? - ele sorriu.
- Para de ser fofo, caramba! - Saem gargalhou.
- Você que é fofa - respondeu, me deixando zonza. - Acho melhor a gente deixar as fotografias e o flerte para mais tarde, preciso cozinhar para você. - Ele pegou minha mão, arrastando-me de volta para a cozinha.
Meu coração batia tão forte no peito, por um instante pensei que Saem poderia ouvi-lo.
Eu precisava entender essa estranha conexão que tivemos quando éramos crianças. Mas, por hora, apenas aproveitaria os sete dias como se fossem o meu maior presente.
Porque, bom, algo em meu interior gritava sem parar que seria.