Capítulo 2 A Desolação de David

- Quanto tempo mais você acha que a Mãe vai deixar ele sem mesada? - Johann perguntou a Otto, enquanto recolhia do chão a lã que havia sido tosquiada das ovelhas. - Ele não tem recebido um tostão sequer, o que significa que ele tem trabalhado tanto de graça. Eu acho que todos nós deveríamos dividir nossas mesadas com ele. - Ele colocou a lã recolhida em um dos caixotes de madeira que estavam lá para esse propósito.

- Eu bem que queria, mas você sabe que se fizermos isso e formos pegos, vamos arrumar um problemão e acabar perdendo as nossas mesadas, também - Otto respondeu, em voz baixa e olhando em volta, para se assegurar de que seu pai não os ouviria.

- Então o que a gente faz? A gente não pode simplesmente ignorar o que tá acontecendo. Tudo o que ele faz é trabalhar e estudar pra caramba. Pra mim, ele é quase como um escravo.

- Você ouviu o Pai, não ouviu? Ele vai falar com a Mãe. Ele provavelmente vai resolver tudo, o quanto antes. Então, você deveria parar de se preocupar tanto. E deveria parar de falar, também; senão, ele vai saber que eu tô aqui te ajudando, em vez de ordenhar as vacas.

- Ah, é! Desculpa! E talvez você esteja certo. - Johann olhou por cima da cerca de madera e viu David se aproximando do pequeno pasto no qual eles estavam. - Ah, olha! Ele voltou. É melhor você ir, agora. A gente vai ir lá te ajudar, assim que a gente terminar aqui. Obrigado por me ajudar!

- Não, tá tudo bem. Não se preocupa. Eu me viro bem, sozinho. Só me traz algo pra comer e beber, se der, pode ser?

- Você não tem bastante leite, lá?

Otto deu um tapa leve na nuca de Johann.

- Você não vai querer saber onde mais eu tenho bastante leite, vai, espertão? - Ele replicou e logo depois saiu, silenciosamente.

Johann pareceu não ter ouvido a resposta de seu irmão mais velho. Ele estava focado demais no semblante aborrecido de David, enquanto o mesmo descia de sua bicicleta vermelha. Ele também notou que David estava carregando livros nas costas, amarrados em seu cinto de tecido preto.

- E aí?! - David cumprimentou seu irmão mais novo, olhando toda a lã que ainda estava pelo chão. - Você começou sem mim, hein? Você sabe que o Pai não gosta disso, porque você pode cortar as ovelhas. Por que você não me esperou? Eu não acho que demorei tanto assim pra voltar.

- O que é que há? Você tá com cara de quem tá sofrendo ou algo assim. E esses livros? - Johann questionou, ignorando completamente tudo o que David havia dito.

- Ah... Foi a srta. Fletcher quem me deu. Eles são novos - David disse, tentando soar animado a respeito, mas errando totalmente o alvo. Ele entregou o cinto com os livros a Johann. - Quer ver? - Depois que Johann segurou o cinto, David se virou para o lado e seu semblante caiu.

- Então, é por isso que você parece tão arrasado? E por que ela compraria livros novos pra você? Não é como se você fosse ter tempo pra ler, mesmo.

David ficou em silêncio. Ele sentiu seu nariz começar a escorrer, e seus olhos castanho-claros ficaram marejados, então ele virou as costas para Johann e limpou tudo na manga comprida de sua camisa de flanela xadrez azul.

- Dave? - Johann insistiu.

- Bem, eu acho que vou ter bastante tempo pra ler esses livros, agora.

- Como assim? O Pai vai te dar menos trabalho na fazenda, já que você não tá recebendo mesada?

David se deixou cair sentado na grama, de costas para Johann. As lágrimas incontrolavelmente inundaram seus olhos e rolaram por suas faces. Ele conteve os soluços, mas Johann pôde perceber que ele estava chorando, pela maneira como suas costas se mexiam. Então, ele se aproximou de David e se ajoelhou diante dele.

- David, o que foi? O que aconteceu? Por que você tá chorando? Eu nunca tinha te visto chorar! - Johann perguntou veementemente, sinceramente preocupado com seu irmão, seus olhos também já se enchendo de lágrimas.

- Não se preocupa, eu vou ficar legal. Só me dê uns minutos, e eu já vou lá te ajudar a recolher a lã e tosquiar as ovelhas que faltam.

Johann atirou seus braços em torno de David, o apertou forte e chorou junto com ele, mentalmente desejando poder fazer com que, fosse lá o que estivesse perturbando tanto o seu irmão, fosse embora e nunca mais voltasse. David o abraçou de volta, se sentindo grato pelo amor incondicional de Johann. Eles permaneceram assim por uns dois minutos.

Enquanto isso, Ettel deu uma olhada rápida no seu relógio de pulso Schaffhausen 853, e pensou que já era hora de David ter voltado da casa de sua professora. Então, ele se dirigiu ao pasto no qual ele havia deixado Johann e as ovelhas.

- Vocês já terminaram? Pelo que eu tô vendo agora, eu acho que não. O que vocês estão fazendo? Por que não estão fazendo o trabalho de vocês? Toda essa lã não vai se recolher e se levar sozinha para os caixotes onde ela deveria estar! - Ettel bradou, assim que avistou toda a lã espalhada, e os meninos aparentemente já dando um tempo.

Os berros inesperados de Ettel sobressaltaram os garotos, fazendo-os se afastarem. Os dois rapidamente se levantaram e limparam seus rostos o melhor que puderam.

- Desculpa, Pai! Eu só tava contando ao Johann que eu tô muito feliz com os livros novinhos que a srta. Fletcher me deu. Mas a gente vai voltar ao trabalho agorinha mesmo. Né, Ioiô? - David mentiu e cutucou Johann nas costelas, pra que ele confirmasse. Nesse momento, Johann teve certeza que algo estava errado.

- Na verdade... - Johann começou, mas foi interrompido por David.

- Vamos logo - David murmurou, entredentes, segurando atrás do pescoço de Johann e levando-o junto.

Ettel pôs a mão contra o peito de David, fazendo-o parar, quando os garotos estavam prestes a passar pelo seu lado esquerdo. Ambos os meninos olharam para a mão de Ettel sobre o peito de David, se entreolharam pelos cantos dos olhos, então hesitantemente viraram suas cabeças e levantaram os olhos para olharem para seu pai.

- Johann, vá ajudar o Otto com a ordenha. Eu vou ficar aqui e cuidar disto com David, - Ettel disse, em tom apático.

- Pai, por favor não faz nada com ele! A gente não tava brincando nem nada, eu juro! - Johann implorou.

- Eu não ia fazer. Agora, faça o que eu disse. Você pode continuar aprendendo a tosquiar ovelhas outra hora. Vá! - Ettel respondeu, abaixando sua mão do peito de David, e depois deu três passos largos à frente e pôs as mãos nos quadris.

Os olhos de David seguiram Johann até que este estivesse longe demais para ouví-los falando. Então, David finalmente se voltou para seu pai, que ainda estava virado para o outro lado oposto.

- Pai? Ele já foi. Você pode brigar comigo, agora. Eu não vou contar pra ele nem pra ninguém, eu prometo.

Ettel primeiro virou a cabeça para o lado, na direção de David, ao ouví-lo falar com ele, depois lentamente tirou seu chapéu e colocou debaixo de seu braço esquerdo. Ele deslizou a mão direita para dentro de seu bolso traseiro da calça, pegou um maço de cigarros, abriu a tampa, puxou um cigarro e o colocou entre os lábios. Depois, enfiou o maço de volta no mesmo bolso, bateu nos outros bolsos, procurando pelo isqueiro, como se ele tivesse todo o tempo do mundo, o encontrou no bolso esquerdo da camisa, o puxou para fora, acendeu o cigarro e pôs o isqueiro de volta no bolso. Então, ele segurou o cigarro entre o polegar e o indicador, deu uma longa tragada e depois lentamente soltou a fumaça.

David simplesmente ficou ali parado, pacientemente esperando e observando os movimentos vagarosos de seu pai que pareciam levar uma eternidade.

- Então... - Ettel começou, depois deu mais uma tragada no cigarro e soltou a fumaça, sem se virar para David, - agora que ele já foi, você vai me contar qual é o problema. Certo? - ele disse, calmamente.

- Eu não sei do que você tá falando, Pai. Como eu disse, eu trouxe livros novos, e a gente se distraiu um pouco, falando deles, foi is- - Ettel impediu David de terminar o que dizia, atirando o cigarro na grama, pisando nele e depois caminhando com passos fortes na direção de David.

- É melhor você parar com essa palhaçada agora mesmo, David! A não ser, é claro, que você goste de me fazer perder tempo. - Ele parou bem na frente de seu filho, encarando-o, apenas uns vinte centímetros de distância entre eles. - Você gosta de fazer seu pai perder tempo, David Mikkel? - Ele olhou dentro dos olhos de David, com chamas em seus olhos estreitados.

David sentiu como se a voz grave de seu pai estivesse estrondando dentro de seus ossos.

- D-De jeito nenhum, senhor! É-É só que... que... - David gaguejou, como fazia toda vez que ficava nervoso, empolgado, chateado, enraivecido, etc.

- Não tem por que se apoquentar. Simplesmente desembuche, filho. Vá direto ao ponto - Ettel disse, devagar, enfatizando cada sílaba tônica.

- Sim, senhor - David disse, depois respirou fundo.

- Tá tudo bem, filho. Relaxe. Eu só quero saber o que tá incomodando a sua alma. Sim, eu notei. Eu não sou cego, nem sou burro. E eu sei que não se trata da questão da mesada, porque você já não recebe há mais de dois meses, mas você tem estado bem em relação a isso. Então, o que tá havendo?

- Tá bom... Eu vou te contar tudo. Como você sabe, eu fui até a casa da srta. Fletcher, pra entregar meu trabalho atrasado.

- Sim. E?

- Bem... Eu bati na porta da frente da casa dela...

            
            

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