Capítulo 10 De alta

(?)

Levei alta assim que permaneci as vinte e quatro horas necessárias de observação clínica. Gavin tomou meu lugar de oratória, então todas as perguntas sobre mim eram dirigidas diretamente a ele. Eles me aplicaram uma injeção, que explicaram ser uma dose de reforço de ferro, já que eu estava anêmica. Também deram instruções específicas sobre os suplementos que eu deveria tomar uma vez por dia por pelo menos uma semana. Trouxeram papéis com resultados dos meus exames e continuaram a falar avidamente sobre a minha saúde física. Mas ninguém ousou tocar perto do assunto saúde mental, pelo menos não perto de mim.

O doutor Solloman entrou logo em seguida, cumprimentando Gavin com afeto e solidariedade. Então ele veio diretamente até mim e, baixinho, começou a falar comigo sobre o excelente serviço psicológico que o hospital tinha. Disse que estaria ali, esperando por mim quando eu estivesse pronta, e que fariam o necessário para o meu bem estar. Não respondi, apenas fiquei balançando as pernas num gesto repetitivo. Ele pareceu não se importar com a minha aparentemente indiferença. Acenou positivamente para mim e para Gavin e se retirou. Os enfermeiros o acompanharam.

Gavin veio até mim com um sorriso triste. Eu olhei pra ele.

- Está pronta pra ir?

Toquei na minha blusa folgada de hospital e ele declarou ter comprado algumas roupas para mim. Pisquei, surpresa, pois eu nem mesmo havia notado a sua ausência. Talvez ele tenha pedido para que alguém entregasse as compras.

Ele foi em direção a uma sacola de papel pardo grande que eu ainda não havia reparado e tirou de lá uma calça jeans e camiseta preta de gola V. Também havia um par de chinelos pretos pequenos o suficiente para que eu soubesse que meus pés 36 seriam devidamente acomodados.

Antes que eu pudesse evitar, meu corpo me traiu. Esbocei um início de sorriso, apenas uma leve erguida dos lábios, que rapidamente se esvaneceu. Ele reparou, claro, e sorriu com todos os dentes de volta.

- Que bom que gostou.

A exemplo da última vez, eu fui até o banheiro com o americano com ótimo gosto para roupas femininas ao encalço. Ele permaneceu de costas, bloqueando a visão da porta, enquanto eu me trocava. Percebi que ele também havia discretamente colocado uma calcinha junto a calça. Era de algodão, bege e tinha um tamanho confortável. Havia também um sutiã combinando. Tentei sentir a vergonha que provavelmente deveria ter feito minhas bochechas esquentarem, mas não consegui. Apenas senti uma estranha gratidão.

Vestida devidamente, olhei para ele e pigarreei para que soubesse que estava pronta. Ele se virou e pareceu satisfeito com o que via. Então me entregou os chinelos, que calcei devagar. Era estranho estar usando peças de roupa limpas e novas, assim como minha pele cheirar a sabonete. Era quase como estar não totalmente morta.

Saímos do quarto. Ele não me tocava, mas estava perto o suficiente para que pudesse me amparar caso algo acontecesse. Passamos na farmácia anexada do enorme espaço imaculado e cheiro de cloro, e eu esperei pacientemente que ele pegasse os remédios necessários. Remédios que eu poderia tomar mais tarde... Em enorme quantidade e acabar com tudo aquilo de uma vez só.

- Vou levá-la de volta para o meu apartamento - ele falou assim que a farmacêutica saiu de seu campo de visão para pegar os medicamentos.

Continuei olhando para o nada, as mãos agora no bolso da calça. Ele prosseguiu:

- Deixei tudo lá para que fique confortável. Comprarei mais roupas pra você, e também vou tomar conta da comida. Você não precisa fazer nada, apenas se alimentar, tomar banho e tomar os remédios. Também não precisa ir embora. Fique o tempo que quiser.

Ele só poderia estar brincando. Ele estava dizendo que eu poderia usufruir dos bens dele por tempo indeterminado? E por quê? Será que realmente achava que tinha me livrado de uma vez da morte?

Como se tivesse lido meus pensamentos, ele suspirou e continuou, suavemente. Adoro o leve sotaque que acompanhava suas palavras.

- Sei que deve estar assustada e confusa. Afinal nós não nos conhecemos. Mas sei que você precisa de ajuda, e eu quero ajudá-la. Não quero vê-la ferida ou... Que precise enxergar o fim de tudo como única solução.

Comecei a tremer e engoli em seco. Ele veio para mais perto, as duas mãos levantadas novamente. Era como se fosse seu novo hábito e método para me acalmar assim que via os sinais inconfundíveis vindo do meu corpo.

- Fique calma. Não se preocupe com nada. Você é minha responsabilidade agora, deixe que eu tome as decisões por você. Está segura.

As palavras dele eram idênticas as de Donovan. E por mais que fosse absurda a ideia de que eu estivesse segura, ali naquele momento eu deixei que elas soassem como verdade. Fiz contato visual direto. Seus olhos brilhavam. Segundos se passaram, mas pareceram minutos.

Ele permaneceu me encarando. Era fácil se perder na intensidade e nas palavras não ditas, mas eu permaneci firme, apenas passando a mensagem que, por ora, eu acataria seu pedido. Ou seria comunicado? Ele era um rico e influente empresário e agora estava tomando conta das coisas.

Não. Eu não era apenas um contratempo de negócios. Nem para ele e nem para Donovan.

O que eu era, então?

A pergunta ficou no ar. Nosso contato foi cortado com a volta da farmacêutica com os vidrinhos de remédio e diversas cartelas de comprimido.

. . . . . . . . . . . . .

(Donovan)

No horário de almoço, permaneci trancado no escritório devorando um franguinho com farofa, meu prato brasileiro favorito de todos os tempos. Eu esperava pacientemente pela mensagem de Gavin com as atualizações da menina.

A manhã correu bem, sem maiores incidentes, e até que não houvera problema nenhum para resolver. Sendo completamente sincero, só fiquei revisando a receita dos últimos três dias, enviando alguns e-mails de praxe e me perguntando se seria muito antiético sair antes do horário previsto.

Eu queria tê-la visitado, mas o trabalho não permitiria. E eu sabia que com Gavin lá, minha supervisão era desnecessária. Mas eu não queria atuar como segurança da garota, e sim como... Amigo? Apoiador? Empresário americano muito interessado em sua melhora?

Gavin havia passado a maior parte do tempo com ela, e eu me sentia culpado por deixá-lo sozinho naquela situação. Mas também queria que a moça soubesse que eu estava fazendo de tudo para permanecer mais perto, isso sem sufocá-la ou assustá-la. Queria que ela confiasse em nós dois, e que soubesse que ambos estávamos empenhados.

Ela precisaria de todo o apoio e carinho do mundo para se reerguer. Não havia dúvidas disso.

Não conseguia tirar a imagem da cabeça: sua fisionomia cansada e corpo frágil fazendo o melhor sinal de agradecimento que poderia.

Enquanto matutava sobre isso, no entanto, comecei a pensar em outra possibilidade. Essa era mais dolorosa que esperançosa, na verdade.

E se ela estivesse se desculpando, e não agradecendo?

E se ela estivesse se sentindo culpada e tentando dizer que nossos esforços, apesar de dignos, seriam em vão e que ela sentia muito por isso?

Bom, se fosse o caso, não importava. Porque eu jamais vejo um desafio a minha frente e me intimido com ele. Eu não desistiria de vê-la feliz, mesmo que ela por si só não acreditasse na própria melhora. Eu estava aqui, de pé, e não faria vista grossa a alguém que estava no mesmo inferno que eu havia saído.

Assim que meu expediente se encerrasse, iria passar no apartamento de Gavin e conversar com ela. Com eles.

Olhei para o relógio digital da barra de tarefas e suspirei, resignado. Ainda faltava pouco.

            
            

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