Capítulo 8 Anônima

(GAVIN)

A menina precisa ficar em observação durante vinte e quatro horas, o que significa que só poderá sair amanhã. Eu me chateio com isso, mas só de saber que ela está sendo bem cuidada e vigiada, eu suporto o sentimento.

Ela não disse nada para nós, mas fazia contato visual intenso. Eu queria tanto que ela dissesse qualquer coisa, pelo menos quantos anos tinha. Parecia ser bem jovem, mas será que era menor de idade? Os responsáveis dela deveriam estar por aí, procurando-a. Ou talvez ela nem tivesse responsáveis, ou pessoas que se importassem com seu sumiço. Era difícil dizer.

Donovan era o retrato da preocupação. Meu amigo sempre teve um tom de voz ligeiramente imponente, o que fazia sua oratória ser melhor que a minha na maioria das vezes. Mas agora ele falava baixo e hesitando, escolhendo bem as palavras que direcionava a ela, sem dúvida com medo de falar algo errado e terminar de quebrá-la.

Apesar de durão e assertivo, Donovan tinha um coração de ferro, e era uma pessoa honesta e leal. Não chorava tanto quanto eu (até porque o papel de amigo chorão sempre coube a mim), mas era tão sensível quanto.

Eu e ele conversamos mais com a menina. Falamos sobre nossa empresa, as casas que tínhamos (além do apartamento em Ipanema, eu possuía mais três imóveis), um pouco sobre a história que estávamos fazendo no país. Enfim, quisemos que ela soubesse mais um pouco dos homens que estavam dispostos a fazê-la ficar viva.

Uma enfermeira entrou junto com outros dois. Eles traziam um carrinho com equipamentos sobressalentes de reanimação cardiorrespiratória. Vi também alguns medicamentos e seringas.

- Com licença, boa tarde. Estamos aqui para dar a segunda dose de medicamentos da paciente - ela apontou para a garota, que por sua vez, parecia inerte e vazia novamente.

Apontei discretamente para os equipamentos de ressurreição e ela disse baixinho:

- Apenas para precaução.

Entendi. Achei estranho, afinal, se ela não corria risco de vida e estava sendo vigiada constantemente, não havia necessidade de tanta preocupação. Mas eles eram os médicos, e não eu. Pus as mãos nos bolsos enquanto dava passagem para os enfermeiros. Donovan fez o mesmo, olhando de forma enigmática para mim. Dei de ombros.

Enquanto a enfermeira introduzia no cateter os remédios prescritos, eu matutava sobre quais seriam os próximos passos a tomar. Doutor Solloman disse que os cuidados e atenção deveriam ser redobrados a partir desse ponto, que seu senso de preservação havia simplesmente rompido e agora ela poderia se matar a qualquer dia da hora ou da noite. Enquanto estivesse naquele estado, era vital que meu estado de alerta permanecesse. Não apenas isso, mas deveria tornar o apartamento convidativo e seguro; não dar chance para o azar novamente, como deixá-la sozinha num banheiro fechado e com uma banheira cheia.

... Eu jamais me perdoaria por aquilo. Mas não era o momento de remoer minha culpa. O foco era a garota.

- Sei que deve estar muito cansada, querida - a enfermeira disse diretamente para a menina. - Mas nós precisamos de algumas informações sobre você.

- Ela não fala - interrompeu Donovan.

- Não precisa dizer com palavras - explicou. Um dos enfermeiros trazia um formulário nas mãos. Algumas coisas já estavam preenchidas, como o endereço (o meu), o gênero, a altura e a tipagem sanguínea. Enquanto estava sendo medicada, espetaram seu dedo para análise e detecção de doenças. Ela estava limpa, graças a Deus, e era AB+.

O médico pôs uma caneta ao alcance da mão da menina, assim como a papelada. Ela não esboçou reação.

- Apenas sua idade, então, para sabermos como lidar com os procedimentos finais - a voz da enfermeira não era exatamente empática, assim como sua expressão. Comecei a tomar antipatia, mas não fiz nem falei nada.

Pensei que a moça realmente não faria nada, mas vi com dor no coração sua mão trêmula indo em direção a caneta.

Silêncio sepulcral. Ela foi diretamente ao espaço sublinhado de "idade:" e escreveu dois números. Então soltou a caneta, amuada, e voltou a olhar para o nada.

A enfermeira não disse nada, apenas pegou o documento e se retirou junto com os outros. Fui atrás dela.

Quando já estávamos do lado de fora, a chamei:

- Espere! - Fiz o possível para não falar muito alto, afinal estávamos em um hospital.

Ela parou e se virou para mim.

- Algum problema, senhor?

- Eu... - hesito. - Posso ver?

Aponto com a cabeça para os papéis. Os outros dois enfermeiros tomam seu caminho, desinteressados. Ela parece indiferente e me entrega o formulário.

Procuro avidamente pela informação derradeira no mar de palavras. Então acho o que estava procurando.

Numa caligrafia irregular mas perfeitamente legível, lá estão os números 2 e 1.

Ela tem vinte e um anos.

Fico tão chocado que quase deixo as folhas caírem. Agradeço silenciosamente para a mulher, que pega os papéis de volta e torna a ir para onde quer que fosse o lugar.

Permaneço parado, perdido em pensamentos.

Ela parecia ser mais nova, muito mais nova. Imaginava que tivesse uns dezessete, na maior hipótese. Estava tão magra e abatida. Além disso era baixa e o rosto não passava a sobriedade de um adulto, e sim um desespero silencioso e terrivelmente evidente.

Mesmo não tendo a idade que imaginava, ela ainda assim era espetacularmente nova. E já havia desistido de viver, estava determinada a acabar com tudo.

Levemente aliviado por ela ser maior de idade, mas ainda muito aflito sobre como proceder com o seu atual estado mental, voltei para o quarto de internação.

. . . . . . . . . . . . . .

(DONOVAN)

Assim que Gavin saiu atrás da enfermeira, muito provavelmente para poder saber a idade dela, a menina se mexeu e encolheu um pouco o corpo.

- Está com frio? - pergunto.

Ela apenas me olha e se encolhe mais um pouco. Está cada vez mais difícil manter a postura firme e segura, principalmente depois de ouvir as palavras de Solloman. Uma mudez que não fora causada por distúrbios físicos ou acidentes, mas por traumas; choques que tiraram sua voz literalmente. Calmamente pego um dos cobertores brancos dispostos em um dos sacos plásticos da maca e a cubro.

Noto que quando a ponta dos meus dedos toca seu ombro, ela o retesa e fecha os olhos. Eu me distancio e ela os abre novamente, olhando para o vazio.

Resistência ao toque. Eu a encaro um pouco assustado com a conclusão temporária que me vêm a cabeça.

A menina me olha mais uma vez, dessa vez com os olhos cheios d'água. Ela faz um sinal bem sutil com a cabeça, quase como se estivesse pedindo desculpas.

- O quê?... - murmuro em voz alta. Então falo mais claramente para que ela me entenda: - Você não precisa pedir desculpas por nada. Está tudo bem. Estou aqui.

Vejo seus punhos segurando com força os lençóis e me impeço de me aproximar mais e tomar suas mãos nas minhas. Quero confortá-la, tirar sua dor, mas tudo o que posso fazer é dar o meu apoio com olhares e palavras. Nada de abraços ou toques reconfortantes, que provocariam a reação oposta.

- Vamos cuidar de você. Não está devendo nada a nós... Estamos fazendo isso de coração. Nós nos preocupamos com você. - Dou um passo a frente e completo, determinado: - Estamos comprometidos em ajudar você do jeito que pudermos, não vamos permitir que o que te feriu volte pra você.

Como se eu houvesse dito as palavras mágicas, acontece algo impressionante.

A menina se levanta lentamente, ficando sentada, olhando para mim fixamente.

Eu permaneço tão mudo quanto ela, me perguntando o que ela fará em seguida, refletindo sobre cada palavra dita e se alguma delas poderia ter desencadeando algo negativo em sua mente.

Mas ela coloca a mão acima do peito, bem onde o coração está, e abaixa a cabeça sutilmente.

Está agradecendo.

Não consigo me conter. As lágrimas jorram livres pela minha face.

Ela se deita devagar novamente, pisca os olhos de forma cada vez mais lenta e começa a cair no sono; muito provavelmente devido aos analgésicos que devem ter sido aplicados em seu soro. Eu me aproximo de seu corpo frágil, ainda sem me preocupar em secar o rosto.

Ouço o clique da porta, mas não me movo. Continuo olhando para o rosto moreno e abatido da moça que queria ver viva, saudável e bem. Então os passos de Gavin se tornam mais altos até ele estar bem ao meu lado.

- Ela tem vinte e um anos - diz ele, baixinho para não acordá-la.

Viro-me para ele rapidamente, incrédulo. Ele se surpreende com o que vê e põe a mão em um dos meus ombros.

- Ai, meu Deus. Você quer uma água ou um café? Quer se sentar um pouco?

- Está tudo bem, Gavin.

- Você tá chorando.

- Estou. Eu... - gaguejo. Toda a eloquência que dizem que tenho simplesmente sumiu. Quero dizer a ele exatamente o porquê da minha reação, mas não consigo sequer organizar meus pensamentos.

- Vamos. Ela vai dormir por mais um tempo e deveríamos comer algo. Eu, pelo menos, estou sentindo fome.

- Você vai voltar para o apartamento? - pergunto, já secando as lágrimas. Nós saímos do quarto e vamos direto ao corredor, em direção a saída.

- Vou, mas apenas para tomar um lanche rápido e voltar pra cá. Não quero deixar ela sozinha no hospital, cercado de estranhos.

- Nós também somos estranhos pra ela.

- Menos estranhos que eles - ele se justifica. Está profundamente infeliz e afetado.

- Gavin. - Nós paramos. - Você não é o culpado pelo o que aconteceu com ela. Ela faria isso de uma forma ou de outra, esperaria alguma oportunidade.

- Eu... Eu sabia, mas... Deveria ter sido mais esperto... Eu quis deixá-la sozinha para tomar banho; admito que a princípio não percebi o perigo em que eu a deixei...

- Ela está bem, agora. Está sendo cuidada e é vigiada. Só precisamos fazer alguns ajustes nas nossas vidas para que esse tipo de coisa não ocorra mais. Vamos evitar ao máximo.

- Tenho que limpar completamente o meu apartamentos de ameaças como essas.

- E eu, o meu. Sabe, imagino que alguma hora ela vai precisar ficar sob minha tutela; então acho melhor deixar tudo pronto. Estamos juntos nessa, Gavin.

- Obrigado, Donovan... - Ele suspira angustiado. - Eu quero que ela permaneça viva. Quero saber tudo sobre ela...

- Eu também quero ela viva. Feliz e realizada, quero vê-la sorrindo... - dou um pequeno sorriso ao vislumbrar a ideia. - Tudo o que precisamos é de tempo, paciência e organização. Tenho certeza de que vamos conseguir.

- Espero que ela confie em nós...

- Eu acho... Que na verdade, ela já confia.

Gavin faz uma expressão interrogativa. Explico calmamente, tentando não me emocionar com o ocorrido há pouco.

- Ela me agradeceu. Colocou a mão sob o peito e balançou a cabeça.

Ele me olha, maravilhado e espantado. Então percebo que está se segurando para não chorar também.

- Então... Então ela realmente nos entende e entende o que está acontecendo ao redor. Mas está letárgica demais na própria dor pra poder interagir. Eu... Fico muito feliz que ela tenha feito isso, esse contato direto com você.

- Ela não havia feito algo semelhante com você?

- Nós nos encaramos em silêncio. Sempre falo com ela, apenas para que ela possa ouvir e saber o que estou fazendo e porquê. Mas ela quase não olha para mim, está distante. Mas às vezes ela me encara diretamente nos olhos. Quase como se dissesse que está focada em reconhecer quem eu sou... E... O que estou fazendo por ela...

Ele olha para mim.

- O que nós estamos fazendo por ela.

- Queria saber o nome dela... - lamento em voz alta.

Suspiramos juntos.

- Também queria saber o nome dela.

E assim, nos abraçamos em despedida, trocamos palavras de apoio e esperança e partimos. Entro no Audi e dirijo até o meu apartamento.

Ao chegar, desabo no sofá e encaro o teto. Nunca fui de acreditar muito em deuses ou santos, mas de repente me pego rezando para todos eles, implorando para que tenham misericórdia de uma garota destruída e que a ajudem a se reerguer.

E sei que dinheiro nenhum na minha carteira, ou no banco ou no mundo inteiro poderiam suborná-los. Tudo o que eu posso fazer é oferecer a súplica sincera e dolorida do meu coração.

            
            

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