/0/5878/coverbig.jpg?v=905d89e008c7787425710d670ad0dbcf)
(?)
O moço chamado Gavin saiu, deixando-me sozinha no banheiro. Era absurdamente limpo e imaculado. Um homem como aquele provavelmente não fazia tarefas domésticas, mas não tinha visto nenhum empregado, ainda. Talvez ele tenha os dispensado por ter me abrigado. Sim... Ele deveria ter nojo de mim, do meu cabelo, das minhas roupas.
Devagar, comecei a me despir. Estava usando aquelas roupas há uma semana, mês, década; era difícil dizer. Em momento algum senti o impulso de trocá-las ou mesmo me limpar. Afinal, era indigna de coisas como aquelas. Me sentia tão imunda por fora quanto por dentro.
Joguei as roupas no cesto, como ele me pediu. Não consegui olhar para baixo, para o que havia restado do meu corpo. Eu tinha muita vergonha do que haviam feito com ele, mas eu também o maltratei severamente. Uma carcaça vazia: essa era eu. Alguém que já tivera vontade de viver, mas agora mal podia esperar pelo abraço da morte.
A interferência de Gavin e Donovan foi um choque. Eu estava determinada a morrer, e mesmo assim eles me trouxeram pra cá. Queriam cuidar de mim - até onde eu sabia. Porque dois ricaços estrangeiros se importariam com uma coisa tão insignificante como eu?
Eles eram muito diferentes fisicamente. Donovan era um pouco mais alto, com a compleição mais robusta, pele negra e olhos negros como ônix. Gavin não era exatamente forte, mas também não era magro demais. Tinha a pele levemente bronzeada, provavelmente por ter passado tempo demais no sol das praias brasileiras, o cabelo louro-mel e olhos claros como safiras.
Amigos americanos que vieram para cá prosperar e esfregar na cara de todos que eram muito felizes, ricos e jamais passariam por qualquer tipo de problema que não pudessem comprar a solução.
Entrei na banheira.
A água estava quente e turvou a imagem da extensão destruída do meu tronco, braços e pernas. No móvel ao lado, assim como prometido, estavam os componentes de limpeza. Estendi a mão para o sabonete líquido cor de hortelã, mas não o peguei. Abaixei a mão.
Não fazia sentido.
Tomar banho? Cheirar bem? Porque me dar o trabalho? Isso alterava algo na minha vida? Isso mudava o curso de alguma coisa?
Não era tão tola. Sabia que uma vez que a Morte te escolhe, por mais que fuja, você não escapa. E eu tinha um alvo gigante pintado em vermelho nas minhas costas. Não havia escapatória.
Olhei mais uma vez para a água.
Todos os sons do mundo sumiram instantaneamente.
O líquido não estava transparente, mais meio amarronzado. Da sujeira que se prendera a minha pele nos últimos dias, sim, mas também de sangue seco.
Ergui as mãos novamente e reparei nas unhas. Estavam lascadas, irregulares e com indícios marrons em suas pontas.
Um impulso forte começou a surgir na minha mente. Meu coração batia cada vez mais rápido, e logo era o único barulho que eu conseguia escutar. Os dedos se flexionaram, como se fossem agarrar alguém.
O problema era que a presa... Era eu.
Problema? Isso não era um problema.
Eu era um problema.
Eu não deveria existir. Deveria estar morta. Meu corpo deveria estar boiando no mar, provavelmente sendo encontrado por um banhista sem noção que não ligava para as péssimas condições de higiene do local.
Aquilo tinha que ter um fim. Eu me recusava a permanecer viva.
Me recusava.
Me recusava.
Eu.
Me.
Recusava.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
(GAVIN)
Eu nem tinha como expressar a dor, compaixão e necessidade de proteção que havia se apossado de mim.
Desde que eu a peguei no colo no momento que poderia ser seu último, estava agindo da forma mais protetiva que podia. Mesmo com medo e angustiado, sabia que deveria priorizar sua segurança e estabilidade mental.
Eu iria falar com o doutor Solloman naquela tarde, também. Ele era o melhor terapeuta que já havia visto, e ajudou Donovan de uma forma que fez a total diferença. Tinha certeza de que ele também poderia ajudar a menina, mesmo que agora ela estivesse tão em choque que nem conseguia falar. O próprio Donovan concordaria com isso, também, que ela necessitava de atenção médica.
Pessoas mentalmente quebradas costumam descontar no próprio corpo depois de um tempo. Alguns comem sem parar, outros comem de menos; outros ficam à beira da exaustão de propósito, bebem muito, fumam exageradamente. Existem várias maneiras de demonstrar colapso, algumas mais sutis que outras. Mas automutilação era a pior, ao meu ver. Era a maneira mais direta, crua e cruel de se punir, deixando cicatrizes horríveis no processo.
Os braços dela eram finos, mas dava pra ver que a maior parte do antebraço até o pulso estava repleto de linhas horizontais. Não apenas cicatrizes, mas faixas avermelhadas bem recentes. Era um hábito antigo, ao que parecia, e mesmo assim não foi o suficiente. Retalhar o próprio braço a aliviou durante um tempo, mas até isso não foi efetivo.
... Ela escolhera a morte.
Aliás, "escolher" é uma palavra inadequada e sem sentido, já que ninguém morre por opção; muitos entregam os pontos porque não vêem saída, e o desespero faz com que atitudes assim sejam tomadas. Qual seria o nível de desespero dela? Será que eu poderia ajudá-la? Será que havia mesmo um modo de fazê-la viver?
Eu a queria viva. De verdade.
Coloquei as fatias de pão na torradeira e pus as xícaras na mesa. Fazia um tempo que não recebia alguém, e todo esse preparo doméstico me pegou de surpresa. Bom saber que eu ainda era um bom anfitrião.
Assim que peguei a garrafa térmica e comecei a servir o café, tive um sobressalto terrível.
Eu não deveria tê-la deixada sozinha.
Era simples: deixei uma garota que quase se suicidara na noite anterior num ambiente fechado, longe de qualquer supervisão, com uma maneira relativamente fácil de acabar o que havia começado bem ali na sua frente. Um convite cruel e explícito, um que eu não havia previsto. O desespero que subiu na minha garganta parecia me sufocar.
Senti as mãos suando frio ao largar tudo e ir correndo para o banheiro. Não me incomodei em bater na porta, apenas a escancarei de uma vez.
Horror. Horror infernal.
Não.
Não.
Não!!!
A água da banheira estava suja, não apenas de terra e afins, mas com traços óbvios de sangue.
E dentro dela, a imagem turva porém inconfundível de um corpo afogado. Algumas bolhas estouravam na superfície.
O mundo simplesmente parou de girar.