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Eu escutava burburinhos lá fora. A maior parte dos ruídos entravam nos meus ouvidos e saíam rapidamente, principalmente porque eu não conseguia focar em nada. Meus pensamentos estavam silenciosos agora. E foi na ausência de sons que eu ouvi três vozes distintas.
E o que me chamou a atenção foi o fato de que elas não falavam em português. Eu conseguia ouvir murmúrios, apenas, mas sei que a conversa deveria girar em torno de mim.
Eram Gavin, Donovan e um dos médicos, o tal de Solloman. Eu me lembrava vagamente dele se apresentando assim que puseram os medicamentos na minha veia. Eu não respondi, e ele tomou meu silêncio como cansaço, ou assim eu pensava. Era muito fácil sentir a dor no tom de voz deles. Conversavam em inglês, provavelmente porque dado o nome do médico, ele também era americano e era mais confortável conversar na própria língua.
Gavin havia me salvado. De novo.
Eu não estava com raiva dele. Na verdade, se fosse cem por cento sincera, eu diria que estava grata. Mesmo assim, era um grão ínfimo e insignificante perto da frustração de ter falhado mais uma vez. Como ele sabia que eu iria me afogar? Fiz questão de ser silenciosa. Nem mesmo me debati enquanto engolia litros de água. Ou será que, enquanto minha vida se esvaía, algum som engasgado vindo da minha garganta me denunciou?
Ele estava muito nervoso. Enquanto me segurava no colo, dizia as coisas que estava fazendo. Tentava a todo custo me acalmar, mas era ele que irradiava tensão. Seus olhos e rosto estavam inchados de choro. Quando abriu a porta do carro, me colocou no banco dianteiro, ajeitou o cinto e me olhou de uma forma tão intensa que não pude desviar. Acho que essa era a forma dele de tentar me passar segurança.
Mas nas raras vezes em que ele me tocou, tive vontade de gritar. E gritar e gritar mais ainda.
Eu sei que estava fraca e não me aguentaria em pé por mim mesma, mas contato físico era algo extremamente... repulsivo. Não queria sentir nenhum toque, por menor que fosse. As sensações desesperadoras pareciam se intensificar quando aquilo acontecia.
De lá pra cá eu havia ficado no colo de Gavin e Donovan. Até recebi um sutil carinho no cabelo, embora não me lembrasse de quem. Se tivesse como, me desvencilharia rapidamente.
Se eles repararam no meu evidente desconforto, não falaram sobre. No entanto, estava disposta a apostar que Gavin tinha pelo menos uma suspeita.
Para onde eu iria quando saísse daquele hospital? Parecia ser muito chique e especializado. Com certeza não era da rede pública, visto que meu... anfitrião era cheio da grana. Com o canto dos olhos, vi uma manchinha preta num dos cantos da parede. Virei a cabeça para ver melhor e constatei que era uma câmera.
Bom, nada tão surpreendente na verdade.
Eu tentei me afogar, me jogar ao mar e já tinham certeza que eu fazia coisas ruins comigo mesma. Provavelmente me internariam por tempo indeterminado em algum sanatório. Será que era isso que os três estavam conversando agora?
No começo de tudo, quando o inferno se abateu na minha vida e eu ainda tinha a noção de que alguma ajuda seria extremamente bem-vinda, cogitei me internar em alguma clínica psiquiátrica. No alto do meu otimismo inocente, jurava que apresentaria melhoras. Não poderia ser tão difícil, afinal de contas, muitas pessoas com dificuldades mentais e sociais costumavam apresentar melhoras após uma internação voluntária.
Nem mesmo cheguei perto de uma clínica. Minha coragem, medo de morrer e instinto de preservação simplesmente desapareceram.
Prestei mais atenção na conversa. Doutor Solloman disse que precisava de dados meus ou coisa assim.
Tinha isso também. Além de ser a garota suicida e aparentemente maluca, eu era uma garota sem nome e sem idade, também.
Falar o meu nome e idade representavam algo: que eu existia. E isso parecia terrivelmente irônico. Eu poderia ser capaz de rir, se não doesse tanto. Durante todo esse tempo, ninguém se importou. Agora estava apenas exprimindo a parte anônima que sempre pareceu me pertencer. Eu não era nada nem ninguém, dessa vez oficialmente.
Segundos de silêncio do lado de fora da porta. Suspiro. Sei o que vai acontecer.
A maçaneta gira. Dois homens altos e terrivelmente preocupados entram no quarto. Donovan foi quem abriu a porta, e seus olhos estão brilhando de uma forma que não sei interpretar.
Eles vêem até mim lentamente, quase sem fazer barulho ao dar os passos. Quase como se eu fosse um animal acuado que pudesse sair correndo a qualquer instante. Pensando bem, eles não estão muito longe da realidade.
Donovan parece que vai pegar a minha mão, mas recua no último segundo e a estende a centímetros dos meus dedos.
- Olá. - Diz simplesmente. Vejo que ele engole em seco.
Gavin para ao lado dele. Suas duas mãos estão nos bolsos das calças e ele parece não saber o que dizer.
Olho para os dois. Não sei o que dizer, mesmo que fosse capaz. Donovan volta a falar:
- Você está salva. Estamos aqui. Está tudo bem.
Sua voz é murmurante e tranquilizadora. Percebo que ele está usando um terno e gravata. Será que saiu imediatamente do trabalho para vir me ver?
Ele... Realmente se importava tanto assim comigo?
As dúvidas na minha mente e o sentimento de alívio e surpresa se chocam na minha mente, numa árdua batalha. Não sei no que acreditar e no que sentir. Minha expressão permanece neutra, mas meus olhos se enchem d'água.
Ambos notam ao mesmo tempo. Gavin põe as duas mãos perto das minhas pernas, retesadas, como se fizesse força para não me abraçar.
- V-você está viva - ele gagueja. Seus olhos piscam para afastar as lágrimas. - Está viva, está viva, está viva - repete com ênfase no último "viva". Parece falar isso tanto pra mim quanto pra ele.
É verdade. Eu estou viva. Mas não por muito tempo.
Quero pedir desculpas a eles. Deve estar sendo difícil lidar com essa situação. Mas está cada vez mais difícil me importar.
Então eu não digo nada. Eu apenas os observo, impotente, da confortável e imaculada maca de hospital.