/0/5878/coverbig.jpg?v=905d89e008c7787425710d670ad0dbcf)
(GAVIN)
Assim que Donovan foi embora, me peguei parado no pórtico olhando para o nada. Eu estava fazendo de tudo pra não chorar, e não choraria. Foi atitude minha tê-la levado para o meu apartamento, embora Donovan provavelmente quisesse levá-lo para o dele. Mas o meu ficava muito mais perto. Além disso, ele quase não teria tempo pra dar atenção a ela. Ultimamente ele andava trabalhando duro para investir ainda mais pesado na Urus, nossa empresa. E ter alguém que quase se matara sob seus cuidados era delicado demais.
Fechei a porta e continuei pensando. Claro que era delicado pra mim, mas eu ficava bem mais tempo em casa. Minha presença era requisitada apenas em alguns momentos, e tirando emergências que podiam surgir, eu poderia mesmo me dedicar àquilo, pelo menos temporariamente. Eu ia conseguir. Era mais do que simples dever, era puramente um instinto.
Fui diretamente até o quarto de hóspedes. Ajeitei as luzes para o mais baixo possível (talvez não fosse muito saudável que ela acordasse na total escuridão), afofei os outros travesseiros e separei mais duas cobertas. Precisaria dar um jeito naquelas roupas, mas por ora, não fazia mal sujar os lençóis.
Voltei para a sala. Com todo o cuidado que podia, coloquei-a em meus braços. Era tão leve e delicada, parecia uma boneca. Uma boneca que havia se quebrado de maneiras tão incríveis que escolhera dar um fim em si mesma. Não pude evitar deixar que uma lágrima caísse no rostinho dela. Eu a sequei, e sujeira se espalhou pelo meu dedo junto com a água. Amanhã mesmo eu pediria que ela tomasse um banho.
Enquanto eu a deitava, percebi outros detalhes: os braços estavam cheio de linhas retas de cicatrizes, mas também cortes menores e mais recentes. Todos perfeitamente simétricos, o que descartava a possibilidade de acidente. Antes de dar um fim a si mesma, ela optou por descarregar a dor emocional com automutilação.
O que aconteceu com ela?
Coloquei as cobertas por cima de seu corpo e permaneci ali. Eu sabia que deveria deitar e dormir também, mas algo me dizia para ficar ali. Que ela precisaria de mim muito em breve.
Decidi que não iria para o andar de cima, onde ficava o meu quarto; mas também não dormiria ao seu lado - minha presença tão próxima era inadequada e poderia assustá-la ainda mais.
Preferi não fechar a porta ao sair. Achei uma boa ideia tirar a chave da fechadura e guardá-la no bolso da calça, também. Afinal, ela poderia acabar acordando, se trancar e... Era horrível só de imaginar.
Subi para pegar meu travesseiro e cobertas, arrumei tudo no sofá e então fui ao banheiro tomar uma rápida chuveirada.
Eu queria tanto que ela ficasse bem.
Queria saber tudo: seu nome, porque decidiu se matar, de onde viera, para onde iria quando estivesse melhor. Pessoas não resolvem que querem morrer de um dia para o outro. Leva tempo e é preciso toda uma sucessão de desgraças e desastres para que ela sequer cogite essa opção seriamente.
Enquanto a água quente caía pelo meu corpo, pensava em como Donovan estava seriamente abalado. Será que isso o engatilhou? Será que estava doendo mais nele do que em mim? Apesar de ter passado por coisas ruins, nunca cheguei perto de sequer tentar o suicídio. Ele, sim. E voltar de uma tentativa, nas palavras dele, era como nascer de novo.
Será que ela se sentiria assim ao acordar? Será que eu poderia ver de perto como é a volta do vale dos mortos, como são os primeiros instantes ao perceber que se ainda está vivo?
Deveria ser paciente.
Ao sair do chuveiro, pensei em outra coisa. Ela provavelmente acordaria com fome, e eu quase não tinha nada em casa. A maior parte das coisas que comia vinham de serviços de fast food, e eu não iria empurrar porcarias para alguém tão fragilizado. Devidamente vestido com uma bermuda e camisa velha (eu geralmente dormia nu ou de cueca, mas óbvio que não faria isso agora), fui até a cozinha ver o que poderia fazer e deixar no ponto para o dia seguinte.
Achei pão para torradas, leite, café e algumas frutas. Também havia barra de cereais e, sorte das sortes, cereal em caixa. Eu iria para o mercado assim que desse. Provavelmente quando Donovan chegasse da reunião e pudesse ficar de olho nela.
Zonzo de sono, consegui fazer o café e deixar já pronto na garrafa térmica. O resto eu poderia fazer ao acordar. Andei até o sofá, mas parei no meio do caminho e resolvi vê-la mais uma vez, só pra garantir.
Estava na mesma posição que eu a deixei. Repentinamente nervoso, resolvi checar sua respiração. Estava normal, então relaxei um pouco. Fiz um curto cafuné no seu cabelo e senti a aspereza. Tadinha. Deveria estar há muito tempo sem desembaraçá-lo.
Abri a gaveta do quarto de hóspedes e achei um predendor de plástico. Com o máximo de cuidado que pude reunir, prendi seu cabelo num coque nem apertado nem frouxo. Apenas para que ela ficasse um pouco mais confortável.
Fui direto para o sofá. E por mais tenso e preocupado que eu estivesse, consegui dormir.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(GAVIN)
Acordei às oito e meia da manhã em ponto. A primeira coisa que fiz foi ir ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Era uma manhã fria de sexta e, dado o silêncio da casa, a menina não havia acordado ainda. Me dirigi ao quarto de hóspedes para conferir.
Ela estava acordada.
Estava sentada com as costas na cabeceira da cama, o cobertor até o pescoço. Seus olhos não estavam repletos de terror como na noite anterior, mas totalmente fora de foco, como se não estivesse enxergando. Ela não se mexeu quando eu apareci, provavelmente nem reparou que eu estava na porta. Então bati duas vezes na madeira para chamar sua atenção. Funcionou. Agora ela olhava para mim, mas com a mesma expressão.
- Bom dia - disse a ela em inglês. Então me corrigi automaticamente e voltei ao português. - Quero dizer, bom dia. Desculpe, eu cometi um lapso feio agora. Embora eu ache que você tenha entendido, porque muita gente do seu país sabe falar pelo menos um pouco da minha língua.
Meu Deus, eu estava mesmo fazendo aquilo? Qual era o meu problema? A garota continuou estática, sem se mover nem um centímetro.
- Desculpe, desculpe. Vamos começar de novo. Eu sou o Gavin. E você é...?
Nada.
- Você está segura aqui - disse, baixinho. - Estamos no meu apartamento, são oito e pouca da manhã. Vou preparar algo pra gente comer. E você pode... Conversar comigo. Eu tô aqui pra te ajudar.
Senti uma leve mudança na sua fisionomia, como se estivesse prendendo o choro. Fui até ela devagar, falando com calma para não afastá-la ou assustá-la.
- Não se sinta pressionada. Se não quiser falar nada agora, não fale. Mas eu preciso que você faça umas coisinhas. Você precisa tomar um banho e depois vamos comer. Meu amigo Donovan, aquele cara que estava comigo ontem à noite, vai estar aqui em breve. E nós... - senti um nó na garganta. - Vamos cuidar de você.
Cuidar dela. Sim, era o que estávamos dispostos a fazer. Era o mínimo.
- Se precisar de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, é só falar comigo ou com ele. Você não está sozinha.
Assim como antes, sua expressão se intensificou. Os olhos transbordaram com lágrimas que não caíram.
- Sssssh - fiz, enquanto me ajoelhava ao seu lado na cama. - Está tudo bem. Venha aqui comigo. Eu vou preparar seu banho.
Fui pegar sua mão, mas ela a encolheu como se tivesse levado um choque. Sua respiração acelerou audivelmente.
- Calma, calma - eu pedi. - Não vou te machucar.
Ela começou a murmurar enquanto seus lábios tremelicavam terrivelmente. Como se estivesse fazendo muita força pra não sair correndo, chorar, ou talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Fiz um gesto apaziguador para ela, o mesmo da noite anterior quando tentei demovê-la da ideia de suicídio.
- Eu não vou tocar em você sem sua permissão. Só acho que você esteja meio fraca e precise de ajuda para ir até ao banheiro. Não se preocupe. Está tudo bem.
Ela olhou para mim com a testa franzida, para a porta do quarto, para mim novamente e pareceu pensar. Então fez que sim com a cabeça.
- Vamos lá - levantei-me e estendi as mãos para ajudá-la.
Ela realmente teve dificuldades para se levantar, mas quase não se apoiava em mim. Na verdade, era mais como se o meu mero toque fosse extremamente doloroso para ela. Comecei a ficar com vontade de chorar de novo. Pensei nos cortes que vi em seu braço. Será que eles estavam espalhados pelo resto do corpo também?
Devagar, fomos até o banheiro. Era grande, assim como todos os cômodos da minha casa, mas ela não pareceu se impressionar com isso. Na verdade, seus olhos voltaram a ficar oblíquos, enevoados. Ajudei-a se sentar no vaso sanitário.
- Aqui tem um roupão que você pode vestir assim que terminar o seu banho. Eu vou deixar algumas roupas separadas pra você. São minhas, mas tenho certeza que uma bermuda e uma camisa vão servir. Deixe suas roupas sujas no cesto. Não tenho roupas íntimas femininas, então você vai ficar um tempinho sem usá-las, mas vamos resolver isso com calma, tá bem?
Sua expressão permaneceu a mesma, como se não tivesse me ouvido. Mas então ela piscou, decerto demonstrando que apesar de inerte, ainda estava acordada o suficiente para ter me escutado e entendido.
Liguei as duas torneiras da banheira. A água quente rapidamente começou a fumaçar enquanto enchia. Olhei para ela novamente. Estava bem suja. Aqueles cortes poderiam infeccionar se continuasse daquela forma. Eu, claro, não perguntei sobre eles. Já bastava todo o choque da noite passada.
- Eu sou da Califórnia - puxei conversa. Monólogo seria mais adequado, pois eu sabia que ela não diria nada tão cedo, mas queria que ela ouvisse a voz de outro ser humano; que isso a ajudasse a sair um pouco do inferno que deveria estar sua mente. - Vim para o Brasil por turismo, mas acabei me apaixonando pelo o que vi. O seu país tem seus problemas, claro, assim como o meu. Mas é lindo o que vi por aqui. Sua cultura, suas pessoas... É tudo absurdamente esplêndido. Então voltei para os Estados Unidos para falar com os meus pais sobre me mudar definitivamente pra cá. Eles não gostaram muito da ideia, mas meu amigo Donovan, sim. Ele foi na minha frente, na verdade, e eu fui logo em seguida.
A banheira continuava enchendo e eu continuava a falar:
- Meus pais eram os primeiros proprietários da Urus, mas passaram a empresa para o meu nome depois de se aposentarem. E sou oficialmente o dono, mas esse não é meu maior negócio. Prefiro deixar essas coisas com o Donovan. Eu me dedico mais ao curso que faço aqui, de ensinar brasileiros a aprender inglês. Eu tenho muitos alunos, de todos oss estados, e todos os meus cursos são online. Me sinto verdadeiramente realizado. O Brasil me abraçou de uma forma que jamais achei que faria. E eu o abracei de volta. Talvez não tanto quando o Donovan, ele ama isso daqui, tanto que perdeu quase todo o sotaque e fala português até quando está com outros americanos.
A menina continuava olhando para a parede, mas ficava brincando com os dedos enquanto me ouvia. Chequei a água mais uma vez e comecei a separar xampu, condicionador e sabonete.
- Donovan e eu nos conhecemos na faculdade. Ele é o homem mais incrível que eu já conheci. Existem poucos que fariam por outros o que ele fez por mim, e por isso que quando alcancei o sucesso, deixei que ele ficasse com o cargo de segundo CEO. A única pessoa que está acima do cargo dele na empresa sou eu, e mesmo assim é mera burocracia. Se pudesse mesmo, abdicava completamente da liderança, mas mesmo vivendo há quilômetros de distância, meu pai viria aqui e comeria o meu fígado.
A banheira já estava cheia o suficiente. Desliguei as duas torneiras.
Olhei para ela.
A garota olhava para a banheira como quem olha o cano de uma arma apontada diretamente pra própria cabeça.
- Está tudo bem. Você consegue... Tomar banho sozinha?
Ela fez que sim com a cabeça, mas não olhou pra mim. Pus as mãos no bolso, apreensivo, mas não disse nada além de:
- Eu separei coisas pra você se limpar. Assim que acabar, vá até o quarto se vestir. Eu vou estar na cozinha preparando o nosso café.
Mais um aceno de cabeça. Permaneci encarando-a, um peso crescente no coração. Uma sensação ruim.
Saí do banheiro e fechei a porta.