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Naquela hora, toda a culpa do mundo recaiu sobre os meus ombros, e o choro que eu havia contido veio à tona. O mais rápido que minhas pernas trêmulas permitiram, eu a tirei da banheira.
Ela não estava respirando.
Notei que seu peito, pescoço e braços estavam mais machucados que antes. Havia gotas de sangue em alguns deles. Ela se machucara durante o banho em algum momento.
Comecei a reanimá-la do jeito que fui instruído no meu curso de enfermagem, que havia feito por tédio num passado relativamente distante, mas que agora se mostrava a coisa mais útil que eu já havia aprendido. Seu rosto lívido não apresentava nenhuma reação. Comecei a chorar mais alto.
Então um som de engasgo saiu de sua garganta. Seguindo a risca os ensinamentos, coloquei-a de lado. Ela engasgou mais ainda e começou a cuspir água, muita água. Vê-la se debatendo e urrando em busca de oxigênio foi uma das coisas mais horríveis que presenciei em toda a minha vida. Eu segurei sua cabeça, para que ela não batesse no chão, e agradecia silenciosamente a todas as forças sobrenaturais e poderosas que tomavam conta do mundo por terem me permitido salva-la pela segunda vez.
Respeitosamente, sem sair do lugar, estiquei o braço para o roupão e coloquei em cima dela para cobrir sua nudez e livrá-la do frio.
As palavras que eu havia dito para Donovan rodeavam minha mente. Ela havia mesmo tentado continuar em frente com o suicídio.
Enquanto a menina estremecia, já conseguindo respirar, tomei uma decisão. O café da manhã teria que esperar. Ela precisava de um hospital.
Silenciosamente peguei-a no colo e olhei para ela. Meus olhos ardiam muito por causa das lágrimas, e eu não tentei escondê-las.
Ela não me olhou de volta. Acho que nem enxergar direito estava conseguindo.
Levei-a para o quarto e fiz o melhor que pude para vesti-la sem assustá-la. Prendi seu cabelo molhado num coque e a calcei com um par dos meus chinelos. Ficaram um pouco grandes demais, mas eu compraria outros. Gastaria o dinheiro que fosse necessário para que ela nunca mais, nunca mais tentasse aquilo de novo.
Deitei-a. Ainda não fazia contato visual comigo, mas permanecia com aquela expressão vazia.
- Eu... - comecei, pigarreando logo em seguida. Minha voz estava terrivelmente falha. - Vou levar você ao médico agora. Podemos comer no hospital.
O que se diz para alguém que acabou de se afogar numa banheira? O que se diz quando se é a pessoa que a evitou de conseguir o que queria? Será que ela me odiava por eu tê-la salvo? Meus dedos ainda tremiam muito. Eu jamais esqueceria daquilo, nem em um milhão de anos.
- Vou trocar de roupa bem rapidinho, eu prometo. Está tudo bem. Já volto.
Deixei a porta bem aberta dessa vez. Subi correndo as escadas até meu quarto para pegar uma muda de roupas, me vesti mais rapidamente ainda e voltei. Como eu pensei, ela permanecia deitada. Não havia se movido um único centímetro.
O som da torradeira fez "plim". Corri até a cozinha para pegar as torradas, espalhando as fatias em um prato aleatório em cima da mesa. Retornei para o quarto de hóspedes. Meus tremores haviam diminuído, mas dentro da minha mente, se eu piscasse errado, ela poderia colapsar novamente e se matar diante dos meus olhos. Me aproximei devagar de sua forma inerte.
- Eu vou levá-la agora. Vou precisar te colocar no meu colo.
Seus olhos se arregalaram. Eu continuei:
- Você acabou de... De se afogar e está muito fraca - as palavras saíam com dificuldade. - Não sei quanta água você engoliu. Os médicos podem fazer um exame mais detalhado. Vou te levar para o mesmo hospital que frequento há seis anos. Eles vão cuidar de você.
Vi seus dedos agarrando os panos da cama. Segundos de tensão.
Cheguei um pouco mais perto. Falei o mais calmamente que pude:
- Vou estar com você o tempo todo. Não vai estar sozinha.
Como se eu houvesse dito as palavras mágicas, ela me olhou diretamente. Arquejei ao enxergar cada detalhe do seu rosto, o quão em pânico estava. Queria muito abraçá-la, mas não podia. Então só a olhei de volta.
Estendi os braços para pegá-la, esperando por resistência. Ela retesou o corpo, mas não fez menção de se afastar. Nem sequer deveria ter forças para tentar.
Uma vez no meu colo, a menina soltou um murmúrio de dor. Senti novas lágrimas despontando ao dizer a ela:
- Vai passar. Vai passar.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(DONOVAN)
A reunião daquela manhã havia sido uma das coisas mais chatas, tediosas e desnecessárias que eu havia testemunhado em toda a minha vida.
Longe de mim dizer que ser o vice-presidente da Urus era um cargo ruim, na verdade era incrível ter um amigo que confiasse em mim a esse ponto. O problema é que todo o falatório, planejamento (inútil, já que havíamos discutido isso em reuniões anteriores e a conclusão era sempre a mesma) e planilhas não pareciam mais tão importantes quanto a vida da menina que agora estava na casa do Gavin.
Desde a hora em que acordei, não consegui parar de pensar nela. Será que já havia acordado? Tomara banho, comera alguma coisa? Seu estado era deplorável, e eu queria do fundo do coração ajudá-la. Mal podia esperar para que o relógio resolvesse ter pena de mim e anunciasse o fim daquele martírio.
Findada a reunião, despedi-me educadamente dos homens e mulheres na sala e comecei a juntar a papelada na maleta. Enquanto todos saíam conversando entre si, aproveitei para ligar o aparelho celular, que permanecera desligado até então para que a reunião não fosse interrompida.
- Café, senhor Jones? - uma voz feminina soou atrás de mim. Era Rebeca, secretária de Gavin, mas que trabalhava para mim em tempo quase integral.
- Não, obrigada, Rebeca - recusei educadamente enquanto terminava de guardar os documentos. - Estou com um pouco de pressa hoje.
- A reunião foi proveitosa?
- É... Vamos dizer que não recuamos nenhum passo.
Ela riu.
- Entendi. Se mudar de ideia, é só me chamar.
Agradeci com a cabeça e o sorriso dela aumentou ainda mais. Era uma moça bonita, de atributos fartos contidos em roupas sociais, cabelos negros presos em coque e pele clara.
A hora do almoço costumava ser um tanto quanto desorganizada. Alguns funcionários batiam ponto e saíam para comer algo, outros traziam sua própria comida de casa e se juntavam no refeitório. Como a maioria deles trabalhava quase na mesma carga horária, era normal que os corredores se tornassem cheios demais. Por isso eu ficava ilhado na minha sala durante todo esse período, geralmente tomando café e matutando sobre as próximas ações da Urus. Ou ouvindo e cantando Chico Buarque.
Já devidamente pronto, tomei um gole da minha garrafa d'água quase vazia, descartei-a no lixo e abri as portas de vidro duplas da sala de reuniões da cobertura. Enquanto me preparava para ir ao elevador, olhei para a tela do telefone. Haviam três chamadas perdidas, todas do Gavin.
Isso não era nada bom.
Apertei o botão para esperar o elevador e chequei minhas mensagens. Havia um áudio do whatsapp de dez segundos. Apertei o play.
- Donovan, assim que você ouvir isso, vá para o Copa d'Or. Eu tive que levá-la pra lá, é uma emergência. Te explico assim que você estiver aqui.
A mensagem era curta, mas o impacto que senti foi a de um soco no estômago. Mandei outro áudio pra ele.
- Estou saindo daqui agora. Vou te falar quando estiver perto.
A sede brasileira da Urus ficava em Ipanema, bem perto de Copa. Para chegar ao hospital eu levaria menos de quinze minutos, dependendo do trânsito. No entanto, quinze minutos agora pareciam uma eternidade. Quem me dera eu tivesse o poder de me teletransportar a qualquer hora.
Dentro do elevador, senti que minhas mãos suavam. Na noite anterior, Gavin parecia preocupado com a possibilidade da menina tentar se matar de novo. Eu não disse a ele que ela não iria fazê-lo justamente porque eu sabia que, uma vez que você esteja em choque o suficiente para tentar, as chances de isso acontecer uma segunda ou terceira vez são maiores. Estatíticamente falando, as pessoas que cometem suicídio não conseguem alcançar seu objetivo de primeira.
Pobre Gavin. Ele deveria estar apavorado, se sentindo responsável pelo o que aconteceu.
Eu me lembro como ele havia reagido à minha tentativa. Dentro do quarto de hospital, devidamente internado, eu o via fazendo força para não explodir e gritar de frustração. Ele só sabia perguntar uma coisa: "Por quê?"
E a resposta a isso era muito complexa e longa para ser debatida naquele momento. A conversa veio seis meses depois, regada a conhaque e desabafos mútuos na sacada da minha casa.
Quando tentei me matar, tinha 26 anos. Eu tinha uma família que se importava comigo, amigos, dinheiro, independência de modo geral. Essas coisas me impediram de tentar fazer aquilo novamente, além da terapia, óbvio.
Se essa moça havia tentado mais uma vez, e em um espaço tão curto de tempo, havia fortes suspeitas de que ela, talvez... Não tivesse essas coisas.
As portas se abriram. Suado e tenso, fui a passos largos para o estacionamento. Os faróis do meu Audi preto piscaram duas vezes junto a um sinal sonoro quando desliguei o alarme.