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(?)
Não estou na praia de Botafogo. A brisa do mar foi silenciada, a maresia simplesmente desapareceu. Estou nos braços de alguém, e algo felpudo e quentinho me protege do frio. O ruído surdo de algo (o motor de um carro, talvez?) é o único som que consigo ouvir.
Eu o tinha encarado, o grande e acolhedor abismo da morte. Era azul, profundo e continha a promessa: acabarei com todas as suas dores. Eu senti as pedras geladas nas solas dos meus pés, e cada passo era carregado; como se meu corpo soubesse o que estava prestes a fazer e tentasse me dissuadir da ideia.
Ao encarar a morte com meus próprios olhos, confesso que vacilei. Sentei-me e me questionei se era aquilo mesmo que eu deveria fazer. A resposta foi óbvia, curta e grossa: sim.
Então me pus de pé. Nos redutos da minha consciência, um fio de instinto de sobrevivência sofria, ainda tentando em vão me convencer a não me jogar. Olhando para as ondas quebrando lá embaixo, quase fui capaz de ouvir os gritos de "pule" a cada espirro de água.
Foi quando os rapazes me chamaram.
Eles me falaram coisas como "vai ficar tudo bem" e que me ajudariam. O pouco de bondade que ainda existe nos homens deve ter soado o alarme neles, que se prontificaram a me impedir. E meu coração doeu de verdade ao reparar naquilo, que dois estranhos viram uma também estranha prestes a dar cabo de tudo, mas se importavam.
E eu queria dizer isso a eles, que eu sentia gratidão. Mas um grama desse sentimento altruísta não era nada comparado ao peso esmagador e opressivo do vazio que me consumia há anos. Então não havia absolutamente nada que eles ou qualquer outra pessoa pudesse fazer. Era o fim.
Claro que não disse nada. Eu não conseguia falar há algum tempo, também. Mas e daí? Eu iria morrer e não teria que lidar com o remorso de não ter lhes explicado.
Bom, mas eu não estava morta. Meu corpo, pelo menos, ainda estava inteiro. Oxigênio entrava nos meus pulmões, e a dor nos meus cortes recentes era bem real. Murmurei algo sem sentido enquanto era levada pelas sensações, e o homem que me carregava olhou para mim, aflito. Uma de suas mãos foi até o meu cabelo e me acariciou gentilmente.
Acabei adormecendo.
. . . . . . . . . . . . . . .
(DONOVAN)
Eu estava aflito, nervoso e até mesmo desesperado. Essa garota que está agora em meus braços quase se matara. E Gavin e eu éramos os responsáveis por isso, por ela estar aqui, sã e salva.
Ela deveria estar com frio ou dor, talvez os dois, pois soltou um murmúrio incompreensível. Eu a acarinhei para que pudesse relaxar e deu certo. Momentos depois, a moça dormia. Um sono pesado, como se nunca tivesse descansado de verdade em momento algum da vida.
O olhar de desespero que ela possuía lembrava muito a mim mesmo nos meus tempos mais sombrios. E para ela ter chegado àquele ponto, deveria ser praticamente irreversível. Que coisas horríveis aconteceram a alguém para que desistisse tão jovem de tudo que a vida tinha a oferecer?
Não tinha a mínima ideia. Mas queria ajudá-la. E sei que ela precisava muito de ajuda.
Trinta minutos depois, chegamos ao confortável apartamento de Gavin. Ele deu boa noite ao porteiro, como de costume, e deixou o carro no estacionamento. Sua expressão era de um homem que possuía uma bomba prestes a explodir nas mãos, e que não sabia pra onde correr ou o que fazer. Ambos estávamos estarrecidos e terrivelmente preocupados.
Pegamos o elevador. A menina ainda parecia profundamente adormecida. Seus cabelos eram negros e cacheados, estavam soltos e chegavam a altura dos ombros. Dava para ver os nós e muitos fios eriçados, como se ela não houvesse se penteado. Recriminei meu pensamento no mesmo instante. Se ela estava prestes a se matar, cabelo era a menor de suas preocupações.
As portas se abriram. Ainda em total silêncio, passamos pelo corredor igualmente silencioso e Gavin pegou o molho de chaves. Ao entrar no apartamento, acendeu a luz e me deu espaço para que entrasse. Fui direto à sala de estar, mais especificamente para o grande sofá vermelho estofado, que eu sinceramente amava.
Gavin trancou a porta do apê e veio até mim. Olhamos para a menina, que agora estava deitada sobre o móvel. Então olhamos um para o outro.
- Meu Deus - foram as primeiras palavras dele. Estava falando em inglês.
- Eu sei - respondi em inglês, também. - Se a gente não houvesse parado...
- Ela estaria morta - completou. - Morta. - Repetiu, atordoado, a voz bem mais baixa e até falha.
- Mas não está. Está... Severamente abatida, mas está conosco. Está segura no seu apartamento.
Gavin saiu para buscar uma bebida. Voltou com água e três taças: duas para nós e uma para ela, que precisaria se hidratar se acordasse.
Enquanto bebia a água, olhei mais uma vez para a forma inerte no sofá. Apesar de ser morena, era óbvio que estava pálida. Será que ainda estava com frio? Lendo meus pensamentos, mais uma vez Gavin se levantou, dessa vez para pegar uma coberta no quarto de hóspedes, juntamente a um travesseiro. Ele a cobriu, apoiou sua cabeça e lhe fez um carinho. Ela nem mesmo se mexeu.
- O que faremos? - perguntei enquanto sorvia a água.
- Vamos esperar que acorde. E... Vamos falar com ela. Saber o que aconteceu.
- Ela não parece que vai acordar tão cedo.
- Eu sei. - Ele coçou a cabeça e se sentou no braço do sofá, onde os fios anelados da menina cobriam um pouco de sua perna. - Vou colocá-la no quarto de hóspedes. Mas queria muito que ela acordasse agora. Que tomasse um banho, comesse algo... Ela... Parece que não faz isso há dias...
- Ela está mesmo deplorável. Mas é evidente que está muito cansada. É melhor deixar que durma um pouco... E então faremos de tudo para ajudá-la.
- Você vai passar a noite aqui?
- Eu tenho uma reunião amanhã às onze. Vai ficar puxado se eu dormir aqui. Mas depois da reunião eu venho rapidamente pra cá, eu prometo. Você vai ficar bem?
Gavin demora um pouco pra responder. Encara novamente a menina.
- Se eu vou ficar bem? Essa não é a maior preocupação aqui.
- Quero dizer se você vai conseguir tomar conta dela sozinho.
Ele me olha com uma expressão de irritação quase engraçada. Faço uma expressão de desculpas; ele aceita. Tomo mais um pouco de água e pego o celular para chamar um Uber.
- Se precisar de qualquer coisa, me liga, tudo bem? - levanto-me e lhe dou um abraço rápido. Dou mais uma olhada na garota e vou em direção a porta. Gavin me acompanha.
- Nós fizemos o que era certo - diz ele ao virar a chave no trinco. Acho que esse é o modo dele de parecer tranquilo, mas eu o conheço tão bem que é impossível não reparar no quão está com medo.
- Sim. - Faço uma pausa. - Fizemos.
Saio no corredor. Inspiro fundo e me preparo para dizer até logo, mas ele dispara:
- Não tem nenhuma chance de ela acordar e tentar se matar novamente...? Ou tem?
Eu o encaro profundamente. Meu silêncio já responde por si só. Eu percebo seus olhos azuis se apagarem e olharem para baixo. Está prestes a chorar.
- Vou ajudar. Assim que eu sair da reunião vou direto pra cá. Vai se sair bem. Boa sorte.
Eu vou em direção ao elevador, sem esperar que ele se despeça. Se eu continuasse parado ali, ele pediria que eu ficasse. E eu realmente não podia.
Além da reunião, eu sabia que se permanecesse por muito tempo, acabaria desabando na frente dele. E eu o poupava desse tipo de coisa há muito tempo.
Assim que saí do prédio elegante em Ipanema, o Uber já me esperava do lado de fora com o pisca alerta ligado. Eu dei boa noite para o motorista, dei o endereço do meu prédio no Leblon e segui a viagem toda em silêncio.
Permiti que algumas lágrimas se derramassem pela pobre garota, mas sabia que ela estava em boas mãos, agora. Tudo que eu podia esperar era que ela sobrevivesse. E que achasse força o suficiente para enfrentar qualquer que fosse o pesadelo que a levou àquilo.