Capítulo 9 O banho

(GAVIN)

As última horas foram tensas e estressantes, como as que antecedem uma reunião de emergência. Eu sempre detestei as convenções em que minha presença era obrigatória. Durante cinco horas ininterruptas (que mais pareciam cinco anos na minha mente), eu precisava me tornar o CEO magnata, brilhante e glamouroso que todos queriam ver. Sorria para as câmeras e para os outros empresários, tomava bebidas importadas e beliscava alguma iguaria. Então conversava avidamente sobre os negócios e fazia de tudo para não parecer mortalmente entediado.

Não sou um hipócrita. Jamais direi que ter muito dinheiro não era um conforto absurdo e que ser herdeiro era uma sorte, não um sucesso. Eu poderia ter nascido, por exemplo, como alguém pobre e sem acesso a educação. Então olharia para esses bilionários e cuspiria neles, principalmente se pudesse vê-los nessas reuniões cujo maior entretenimento era tirar vantagem do lucro mínimo que obtinha por ano em seus ramos, quaisquer que fossem.

Mansões suntuosas com empregados e camareira nunca foram minha praia. A casa dos meus pais era assim, com funcionários mudos e bem vestidos que falavam baixinho com os patrões e os serviam ágil e delicadamente, quase nunca olhando para a frente ou para a cima, mas para baixo. Choffeur, babá, cozinheiro chef, jardineiro; tudo isso eu abominava. Eu acreditava de verdade que um homem ou mulher adultos devem ser responsáveis pela limpeza e manutenção de seu lar. E ficava difícil limpar um lugar de quinze cômodos sozinho. Então optei por comprar duas casas, uma na cidade e outra no interior do RJ; ambas limpas e arrumadas uma vez por semana por empregados, das quais só me hospedava em casos específicos. No entanto, optando por mais simplicidade, aluguei um apartamento. Donovan resolveu seguir a ideia.

Assim que terminei de comer, comecei a organizar melhor o apartamento. Chaves e cadeados que podiam prendê-la em algum cômodo foram devidamente descartadas. Me livrei de possíveis objetos pontiagudos e afiados, como as facas de cozinha, que agora ficavam em uma gaveta específica com uma pequena tranca (essa era a única que permaneceria). Assim que dei uma geral no quarto de hóspedes, sala, área e cozinha, fui ao banheiro.

Na pressa para sair, havia esquecido de esvaziar a banheira. Ver toda aquela água suja de sangue me causou um mau estar terrível, mas respirei fundo e comecei o trabalho de deixar tudo limpo.

Fiquei imaginando se ela já havia acordado, se tinha comido algo. E como faríamos na hora de dar banho nela.

Pensei em seu corpo pequeno e magro, repleto de manchas e cortes. Ela estivera muito perto da desistência total, e aparentemente ainda estava. Mas Donovan dissera que ela o agradeceu. Pelo quê, exatamente, não havia explicado. Mas só de saber que ela estava sã o suficiente para compreender o que se passava, já era um incentivo a mais para lutar por ela.

Eu não me importava se tivesse que falar com ela detalhadamente, me aproximando com cautela e fazendo o máximo para não tocá-la. Só queria que ela ficasse bem. E isso a longo prazo era uma probabilidade real. Donovan estava aí para provar que, embora terrível e arrasadora, a depressão tinha um tratamento. E eficaz.

Então era isso. Por tempo indeterminado, ela estava sob nossa tutela. E faríamos de tudo para que se recuperasse daquele pesadelo sombrio que a arrastara para uma praia numa noite fria e atipicamente deserta do Rio.

Arrumação da casa terminada, desci e fui em direção ao estacionamento. Disse ao Donovan que iria permanecer com ela no hospital, e era isso o que eu faria.

Que Deus a ajudasse.

. . . . . . . . . . . .

(?)

As últimas horas foram enevoadas, assim como os últimos anos, mas por um motivo completamente diferente. Dessa vez eram os analgésicos que me apagavam, e eu passava a maior parte do tempo dormindo. Entre um cochilar e outro, percebi que havia uma outra cama quase do meu lado. Era uma espécie de poltrona reclinável muito confortável, devidamente afofada e limpa. E sob ela, encolhido e coberto por causa do ar condicionado, estava Gavin.

O amigo dele, Donovan, não voltou. Mas imaginei que estivesse ocupado com a empresa deles, já que de acordo com o próprio Gavin, era principalmente a ele que todos lá se reportavam. Mas meu coração ainda estava aquecido com as palavras dos dois. Será que o homem dos olhos escuros e expressão suave havia entendido o meu gesto de ontem?

Eu mesma havia sido pega de surpresa com minha atitude. Não conseguia me importar o suficiente com as emoções e entendimento de outras pessoas, então deixava que elas pensassem o que quisessem sobre minhas condições físicas e mentais. Seu julgamento era algo que havia passado o tempo todo, e já não fazia sentido tentar me justificar. Mas eu olhava para aqueles americanos endinheirados, sentindo raiva a princípio de suas vidas ganhas, mas enxergava empatia real em seus atos. E fazia muito tempo em que eu não via isso.

Gavin era abertamente chorão, e não tentava esconder. Ele prestava atenção em cada detalhe da minha expressão facial, gesto, tudo. E aqui estava ele, trocando o conforto de uma possível cama king size e travesseiros fofos da Suécia por uma poltrona de hospital.

Para me fazer companhia. Ele sabia que eu provavelmente piraria (mais do que eu já havia pirado) num lugar como este.

Cheguei a comer em algum momento do dia ou da noite, não sei dizer. Dei poucas colheradas no arroz com legumes, mas bebi bastante suco de mamão. Gavin o tempo todo me incentivava a comer, e me parabenizava silenciosamente quando conseguia mastigar e engolir. Ele não me tocou em nenhum momento, apenas se aproximava daquele jeito dele, às vezes com os dedos a centímetros dos meus. Mas ele já deveria ter mesmo entendido que não queria toque de qualquer pessoa no mundo. Aposto uma bala que, a essa altura, Donovan também.

A hora de tomar banho que foi um pouco mais complicada. Uma enfermeira que se apresentou como Beatriz disse que iria me ajudar. Ela apontou para uma porta que levaria ao banheiro. Disse também que Gavin poderia ir junto, já que era o meu tutor. Achei a palavra engraçada em algum lugar do subconsciente, mas não o suficiente para esboçar riso. Então olhei para ela e para a porta, suspirando de resignação.

Eu não iria me afogar novamente. Por razões terrivelmente óbvias, acho que nunca mais poderia chegar perto de uma banheira.

Saí da maca. Estava vestindo aquelas roupas de hospital horríveis, e lembrei que as havia vestido em algum momento entre os meus apagões. As lembranças estavam todas confusas. A enfermeira se aproximou para me ajudar, mas antes que eu precisasse fazer qualquer coisa, Gavin interveio:

- Espere.

Beatriz olhou para ele, esperando, e o louro veio até mim suavemente como sempre.

- Você consegue andar sozinha até lá?

Eu conseguia. Já tinha firmeza o suficiente nos pés. Acenei bem sutilmente.

- Tudo bem. Não vamos tocar em você, apenas te vigiar. E prometo que te darei a privacidade necessária. Consegue tomar banho sozinha?

Tremores ligeiros se apoderaram das minhas mãos, mas acenei novamente.

Para provar a ele, comecei a andar devagar porém sem oscilar até a porta imaculada. Virei a maçaneta e achei um box simples com chuveiro e portas de vidro fosco temperado, ou o que parecia ser. Olhei para cima. A temperatura do chuveiro estava em "inverno". Um banho quente na frente de uma estranha e Gavin. Não que Gavin não fosse um estranho...

- Posso ajudar a despi-la? - perguntou Beatriz.

Totalmente sem forças para fazer algo, eu simplesmente esperei até que ela viesse. Seus dedos às vezes encostavam na minha pele e eu ouvia as vozes e sentia as coisas. Mas não deixei transparecer. Gavin estava à porta, de costas, respeitando o meu corpo como disse que faria. E sei que ele só sairia de lá caso algo muito ruim acontecesse.

Ele realmente se preocupava comigo. Não sabia o que fazer com essa informação.

O desejo de morrer ainda permanecia, mas o estranho é que eu não queria fazer isso perto dele. Bom, nem dele nem de Donovan. E isso era mais esquisito do que qualquer outra coisa, já que como havia dito, eu não conseguia mais me importar com o peso do julgamento das pessoas. Mas eu sentia que os dois homens não me julgavam, mas se colocaram no meu lugar. Tinham recursos o suficiente para me internar em algum hospício, mas preferiram interceder pessoalmente. Suas palavras doces não pareciam ensaiadas ou mecânicas. Vinham do coração.

Já despida, a enfermeira ligou o chuveiro enquanto eu entrava no box. A água começou a cair nas minhas costas e eu sentia as gotas lambendo a minha pele. Uma breve neblina se fez devido a temperatura.

Então Beatriz apontou para os produtos de limpeza. Olhei pra ela. Obviamente ela já deveria saber sobre o meu estado, já que não parecia horrorizada com os cortes e cicatrizes que tomavam conta de toda a minha extensão, tampouco a magreza. Ela só me observava com educação e assertividade, como se quisesse me passar segurança e até um pouco de autoridade.

Comecei a me limpar. O cheiro de lavanda de sabonete adentrou em minhas narinas e deixei um suspiro sair sem querer. Gavin olhou para o lado, deixando seu perfil bem a vista. Então deu um pequeno sorriso de incentivo, ainda sem olhar para trás, e voltou a encarar o quarto vazio.

Comecei a ensaboar o pescoço, pernas, braços e o que consegui alcançar nas costas. Também fiz o melhor para limpar minhas partes íntimas. Me enxaguei rapidamente, e enquanto fazia isso, Beatriz estendeu a toalha branca e felpuda que estava pendurada na parede e a estendeu para mim.

Segurei a toalha com as duas mãos, encarando-a. E então comecei a me secar. Quando reparei que não haviam outras roupas para vestir, ouvi Gavin murmurando alguma coisa enquanto fechava a porta. Então ouvi outra voz, provavelmente a de algum outro enfermeiro. Segundos depois, ouço ele batendo na porta e dizendo para Beatriz que a nova muda chegou.

A enfermeira entreabre a porta, agradecendo, e vai estendendo peça por peça na minha direção a medida que me visto. Essas, pelo menos, são mais grossas e quentes do que as outras.

Banho acabado, finalmente saímos do banheiro. Beatriz olha para mim, ligeiramente satisfeita ou algo assim, e faz apenas uma pequena observação quanto ao meu cabelo, ainda embaraçado e preso num coque frouxo. Gavin intervém.

- Fui eu que prendi o cabelo dela. Acredito que possamos desembaraçar depois, quando ela estiver disposta.

Volto para a maca silenciosamente e me deito. Os dois ainda conversam, mas a letargia está voltando com força total e eu não quero ouvir suas palavras. Então minha mente se esvazia e eu simplesmente não estou mais lá.

Falta pouco para eu receber alta. Alguma hora não haverão paredes brancas, câmeras e pessoas vestidas de branco impedindo uma nova tentativa.

E isso não é um agouro ou maldição. É simplesmente um fato.

            
            

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