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RETORNO AO PARAÍSO
São Paulo, 21 de julho de 1.980. (19:00)
ERA UMA VEZ... CASA BRANCA
PARTE I
Seis horas da manhã. O domingo amanheceu lindo em Casa Branca, uma pequena cidade do nordeste do Estado de São Paulo, há alguns quilômetros de Campinas. O dia convidava para um bom passeio.
Cláudio e Tânia estão de pé desde as cinco da manhã e aprontam-se para sair. Vão passar o dia em Poços de Caldas, cidade bem próxima dali e um dos pontos turísticos mais bonitos do Estado de Minas Gerais.
Tudo estaria muito bem se não fosse a campainha que toca, perturbando a paz do casal.
- Ah, meu Deus! - exclama ela, aborrecida, penteando os cabelos diante do espelho grande pendurado na parede do corredor. – Será que nem se pode pensar em sair para um domingo sossegado, sem que alguém venha atrapalhar? Hoje é domingo, poxa!
- Eu vou atender, ele diz, enquanto coloca o blazer.
Vai até a porta e no mesmo instante em que a abre, cai em seus braços, como um fardo, Wagner, seu irmão mais novo, parecendo bêbado e rindo muito.
- Oi, maninho! Bom dia!
Cláudio tem alguma dificuldade em conseguir segurar o irmão e faz um grande esforço para levá-lo para dentro da casa, deitando-o no sofá. O rapaz não consegue ficar em pé, tão bêbado está.
- Que é que você está fazendo aqui a essa hora da manhã, Wagner? - Cláudio pergunta, extremamente aborrecido.
- Vim fazer uma visitinha. Não posso ver meu irmãozinho num domingo lindo como esse? - diz ele com voz não muito firme.
O rapaz aninha-se no sofá extremamente confortável e fecha os olhos. – Hum, que gostoso! - geme ele, agarrando-se a uma almofada.
Cláudio tem vontade de rir e de bater no rapaz ao mesmo tempo, mas também fica muito preocupado. Nunca tinha visto o irmão naquele estado, tão alcoolizado. Aquilo não era prenúncio de boa coisa.
Tânia vem até a sala e ao ver o cunhado jogado em seu sofá aponta para ele, estupefata, e pergunta:
- Que é que ele tem?
- Não dá pra perceber? Está bêbado... e pelo jeito ainda não foi pra casa hoje.
- Bêbado... - diz ela, com um sorriso irônico, balançando levemente a cabeça. – Mal saiu das fraldas...
Cláudio coloca as mãos na cabeça, tentando manter a calma e vai até o telefone.
- Pra quem você vai ligar? - ela pergunta.
- Pra fazenda, tentar falar com a Magda pelo menos.
- Fala logo com teu pai. Pede pra ele vir buscá-lo. Adoraria ver a cena...
Tânia coloca as mãos na cintura e anda em volta de Wagner. Ela não gosta muito do cunhado e esse sentimento é largamente correspondido por ele. Um faz tudo para ver o outro irritado.
Com o telefone ainda na mão, Cláudio desiste, temendo justamente ser atendido pelo pai que não receberia a notícia muito bem. Coloca o telefone no gancho e vai para perto do irmão.
- Desistiu? - ela pergunta.
- Eu mesmo vou levá-lo até a fazenda. Seo Leonardo não vai deixá-lo sair de casa por semanas, se souber que ele bebeu a ponto de ficar desse jeito, ele diz, batendo de leve no rosto do irmão. – Wagner!
- Como assim?! E o nosso passeio? - ela pergunta.
- A gente tem o domingo todo pra isso, Tânia. Eu vou dar um banho frio nele e lhe meter um café amargo garganta adentro e ele fica novo logo, ele diz, colocando o braço do irmão em volta dos ombros para poder levantá-lo.
- Mas isso não é problema seu, Cláudio! Pede pra alguém na fazenda vir buscá-lo.
- Como não é problema meu, Tânia? Ele é meu irmão e se veio até aqui é porque conta comigo.
- É um vagabundo! É isso que ele é!
Cláudio olha para ela querendo dizer mil coisas, mas sua educação e o respeito pela mulher não permitem.
- Ainda assim é meu irmão, diz em voz baixa, erguendo o fardo que mal consegue ajudá-lo a se levantar.
Wagner é carregado para o quarto do casal com bastante dificuldade e Cláudio o coloca debaixo de um chuveiro de roupa e tudo, onde ele resmunga e grita gemendo.
- Você está querendo me matar, caramba!?
- Num instante você vai estar ótimo, Cláudio diz, obrigando-o a colocar a cabeça debaixo do chuveiro frio.
Depois de enxuto e vestido com um roupão do irmão, deitado na cama do casal, Wagner é obrigado a tomar três xícaras de um café amargo e quase frio e, entre caretas, diz:
- Eu estava melhor como estava. Ai, minha cabeça! - ele geme.
Sentado diante dele, com o corpo apoiado nos braços sobre as pernas, Cláudio pergunta:
- Onde você passou a noite?
- Não te interessa... - ele diz, meio sem pensar, com a mão na cabeça já sabendo que vai receber o troco por dizer aquilo.
- Como não me interessa? Você bate uma hora dessas na minha porta, completamente bêbado, interrompe meu programa de domingo com a minha mulher e vem me dizer que não me interessa? Que não é da minha conta? Se você não me contar toda a história direitinho, eu vou lhe dar meia dúzia de palmadas que o papai nunca lhe deu, ou melhor, você já é bem grandinho pra levar meia dúzia de murros bem dados! Eu estou muito a fim de fazer isso...
Cláudio fecha a mão em punho. Wagner vê que o irmão fala sério e erguer as mãos.
- Calma! Eu digo... Só que... eu não me lembro muito bem... Ontem à noite fomos até o clube Orleans no centro da...
- Nós quem? - pergunta Cláudio, já querendo perder a paciência.
- Eu e a turma. O Beto, a Sandra, a Dina, o Guto...
- Sei... Que mais?
- Bom... primeiro foi só refrigerante, depois a gente lembrou que tinha saído pra comemorar meu aniversário e o da Mônica... Aliás, não vai me dar os parabéns, maninho? Eu estou fazendo aninhos hoje, lembra? – ele diz, sorrindo, mas Cláudio não acha graça.
- Que Mônica?
- Essa mesmo que você está pensando. A única que a gente conhece. Mônica Martinelli Telles. Filha do doutor Jairo Telles.
Cláudio gela ao ouvir aquilo. Saber que a filha única do médico mais respeitado da cidade de Casa Branca, dono do hospital em que ele trabalha, estava no meio da farra, o faz quase não querer saber do resto da história.
- Ela também estava no meio? Estava com vocês?
- Estava. Eu sempre quis que ela saísse com a gente. Ela fez dezessete anos, hoje também, caramba. Tem que se soltar um pouco...
- Que mais? - Cláudio interrompe, com um suspiro de impaciência.
- Então nós fomos comemorar na casa do Beto, que estava vazia. O pai e a mãe dele foram viajar e... bom... lá tinha alguma bebida alcoólica e... pra começar a ficar todo mundo meio doido não demorou...
Wagner começa a rir e coloca a mão na cabeça que dói, mas, ao ver a expressão de Cláudio que não acha a menor graça, o sorriso some de seu rosto.
- Por isso, eu vim pra cá. Eu sabia que meu médico favorito ia me colocar em forma e... me ajudaria a encontrar uma saída... e ajudou... até aqui...
Cláudio balança a cabeça e olha para o chão, sentindo uma grande vontade de sumir dali. Depois se levanta e vai até a janela. Tenta se acalmar, olhando através dela e diz:
- Você sabe que o papai vai matar você, se souber que você chegou aqui de porre, não sabe?
- Não... se você disser pra ele que eu dormi aqui... - o rapaz fala, jogando cada palavra bem devagar.
Cláudio fecha os olhos e se volta lentamente. Olha para a cara de pau do irmão.
- E o que te faz pensar que eu vou fazer isso?
- É minha única saída, ele diz em voz baixa. – Você não pode me deixar na mão, meu irmão. Presente de aniversário. Você nem meu deu os parabéns...
Cláudio o ignora e volta a se sentar diante dele, continuando:
- Você tem vinte anos, rapaz. Acabou de fazer. Idade suficiente pra assumir a responsabilidade pelos seus atos e eu não sou anjo da guarda de ninguém. Já foi o tempo que eu livrava você de levar bronca do papai.
- Mas...
Cláudio ergue o dedo e o impede de prosseguir.
- E o mais grave de tudo: você bebeu além da conta, passou a noite fora de casa e essa atitude meu pai nunca vai aceitar, como nunca aceitou de nenhum de nós. Isso não é discutível na nossa família. Se não pode hoje, não pode nunca! Dá pra se viver com essa imposição. Você sempre soube disso.
- Mas, Cláudio...
- Nem mas nem menos mas. Tudo bem, você quis ser o primeiro, ótimo. Vai ter que aguentar sozinho. Meus parabéns! Está satisfeito? Era isso que você queria?
- Foi minha primeira vez, cara! E foi por uma boa causa: meu aniversário e o aniversário da filha de um dos melhores amigos dele e seu. Eu te prometo que não faço mais.
- Mesmo assim. Se você fez alguma coisa errada e isso tiver consequência, como é que você vai ficar? Como eu vou ficar, encobrindo você?
- Mas eu não fiz nada errado!
- Tem certeza?
Wagner se cala. Deita na cama e encosta a cabeça numa almofada, respondendo.
- Não...
- Está vendo!? É melhor contar logo a verdade.
Wagner esconde o rosto na almofada e geme:
- Mas o velho vai me matar... Eu preciso de uma desculpa. Não posso contar isso pra ninguém lá em casa. Até já estou vendo a cara da mamãe...
- No sábado e no domingo você não tem pai nem mãe, não é?
- Me ajuda, Cláudio. Você também já teve vinte anos...
- Com vinte anos, eu já era casado, esqueceu?
- Por isso mesmo. Você só teve vontade, mas não teve chance de fazer isso. Eu ainda tenho. Me livra dessa, por favor!
- Só uma pergunta: a Mônica Telles também bebeu?
- Não sei... Eu não me lembro de nada depois que eu apaguei. Deve ter bebido. Estava todo mundo alegrinho demais. Ela é meio travadinha, certinha demais, mas... eu não lembro mesmo.
Cláudio se levanta, dá alguns passos pelo quarto com as mãos na cintura e diz:
- Está certo, mas você se esquece de um porém. Não sei se a Tânia vai concordar em mentir em sua defesa. Ela não se dá muito bem com você, lembra disso?
- Ela é de menos. Você ameaça dar uma surra nela e a fera fica mansinha, ele diz, sorrindo debochado.
- Você não faria isso por mim, Cláudio diz, também não conseguindo evitar o riso.
- Você não gosta dela mesmo... - Wagner fala, encolhendo os ombros com muita naturalidade.
Cláudio resolve mudar de assunto.
- Pega alguma coisa minha pra vestir aí no meu closet. Eu vou te levar pra casa.
Ele troca de roupa também, pois está todo molhado e sai do quarto.
Ao descer até a sala, procura por Tânia, mas não a encontra. Vê sobre a mesinha de centro, um bilhete da mulher que diz: "Não vou virar babá de marmanjo. Vou à casa de minha mãe. Se quiser me encontre lá. Beijo. Tânia.".
Wagner, já vestido com roupas do irmão, vem descendo as escadas.
- Não sei se vou devolver essa camisa sua não. É bacana pra caramba! Preciso visitar mais o seu guarda-roupas. Você quase não usa. Vive de jaleco branco...
Vê Cláudio com o bilhete nas mãos e pergunta:
- Que foi? Que é isso?
- A Tânia saiu sem mim, diz ele, estendendo-lhe o bilhete.
Wagner o pega, lê e ri alto.
- Babá de marmanjo... Continua geniosa a mocinha.
- Eu poderia estar na estrada pra Poços agora... mas quem está sendo babá de marmanjo sou eu... É o fim... - Cláudio diz, em voz baixa.
- Ter um fim de semana com essa chata? Eu hein! 'Tô fora.
- Pra você tudo é simples e descartável, não é? Quando você vai crescer, cara?
Wagner pula o encosto do sofá e se joga deitado nele, agarrando uma das almofadas.
- Eu não vou me conformar nunca de você ter se casado com essa mulher, Cláudio. Nossos santos não rezam o mesmo catecismo, não se cruzam, não adianta. Eu já tinha me separado dela no primeiro ano de casamento.
- A gente não se casa pensando em separar... Casamento não é brincadeira de criança.
- Viver infeliz com uma mulher que você não ama, é? Você não gosta dela, cara! Nunca gostou.
- Você sempre repete isso. O que te faz pensar que eu não gosto dela?
- Gosta? - Wagner o interrompe, se levantando. – Mais do que isso, você ama a Tânia? Me diz com todas as letras.
Cláudio demora a responder. A voz sai triste.
- Isso não é mais relevante agora.
- Não, claro que não, porque você não ama! Ninguém é capaz de amar uma víbora como ela a não ser que seja Jesus Cristo, e você é muito bom, meu irmão, mas não é Ele. Tem que ser muito burro, ou cego e surdo pra não perceber como ela é. E, graças a Deus, isso você também não é! Você não vai negar isso.
Disposto a não continuar com aquele assunto, Cláudio desconversa:
- É melhor a gente ir pra fazenda. Deve estar todo mundo bem preocupado com você lá.
Cláudio vai passar por ele, mas Wagner o segura pelo braço.
- Por que você sempre muda de assunto e desconversa quando eu falo disso?
- Porque eu estou casado há oito anos e não tenho motivo nenhum pra tentar sequer pensar em separação. Tem muita gente que sofreria um bocado, se isso acontecesse. Meus sogros, meu pai, o tio dela. Você não põe isso na balança? Pra você, a vida é uma boate barulhenta e iluminada, não é? Mas não é assim! Eu gosto demais de todos eles para evitar isso o mais que eu puder.
Wagner dá de ombros, balança a cabeça e vai para a porta. Cláudio pega as chaves do carro e o segue.
Em menos de quinze minutos, estão nas terras da Fazenda Quatro Estrelas. Uma fazenda de gado leiteiro de propriedade de Leonardo Valle, de cinquenta anos. Quando o carro atravessa os portões da fazenda, Lopes, o administrador da imensa propriedade que está a cavalo, se aproxima do Mercedes azul metálico e pergunta, sorrindo, ao ver Wagner sentado no banco do passageiro:
- Onde o senhor achou essa preciosidade, doutor? Estávamos procurando por esse boi fugido desde ontem à noite.
- Me dá alguma coisa por ele, Lopes? - Cláudio pergunta, saindo do carro e olhando também para irmão.
- Eu não, mas o patrão está querendo muito colocar as mãos e outras coisas nele, ele responde, apoiando-se no capô do carro, gozador.
- Vê se te mete com a tua vida, Lopes, Wagner diz em voz muito baixa, entre dentes. – Não enche. E boi fugido é a...
- Se continuar, eu te deixo aqui e vou embora! - Cláudio se adianta.
Wagner se cala, emburrado. Cláudio aperta a mão de Lopes, volta a entrar no carro e segue. Depois de alguns metros, atravessam uma alameda e entram num jardim ladeado por pés de azaléias, ipês e jabuticaba, árvore símbolo de Casa Branca, que Magda, a dona da casa, cultiva com muito amor e uma pitada de ciúmes que ela mesma faz questão de declarar. Ao chegar diante da sede, Cláudio desce novamente, mas Wagner não faz o mesmo, ficando indeciso e temeroso.
- Vossa Alteza não vem? - Cláudio pergunta, com um sorriso, sabendo do que se passa na cabeça dele.
Wagner não responde e nem sai do carro. Passa as duas mãos no rosto e encosta o braço na porta do carro, coçando a testa suada.
Cláudio abre a porta em que ele está apoiado, quase o fazendo cair e manda:
- Vem. Eu não tenho o dia todo.
Uma garota de treze anos sai pela porta da casa, vestida num macacão de jeans, com as pernas da calça dobradas até o joelho e os cabelos presos em marias-chiquinhas. Quando vê Cláudio, joga-se no pescoço dele por trás, tampando-lhe os olhos.
- Adivinha quem é?
Cláudio coloca as mãos sobre as dela e responde, com um sorriso:
- Não faço a mínima ideia. Deve ser... a Elis.
- Ela não é tão alta assim, bobo.
- Hum... acho que deve ser... a menina mais linda dessa fazenda e a filha mais velha do meu pai, ele diz virando-se.
- Acertou! - ela diz, abraçando-o e lhe beijando o rosto várias vezes.
- E o papai? - ele pergunta.
Diana Cristina Valle é a filha mais velha de Leonardo Valle com sua segunda esposa e irmã de Cláudio e Wagner. Ela olha para o irmão mais novo com ar de troça e fala:
- Deve estar afiando aquele facão enorme que ele tem lá no meio das ferramentas no armazém.
Os olhos de Wagner cintilam de modo significativo e ele sai do carro.
- Não inventa, pestinha!
Cláudio pega a mão da menina e os dois entram na casa com Wagner seguindo os irmãos a alguma distância. Magda, uma mulher de trinta e seis anos, muito bonita, madrasta dos dois e mãe de Diana e da menorzinha Elis, de quatro, vem descendo as escadas com ar preocupado, mas olha aliviada para Wagner. Fica frente a frente com o enteado que não consegue encarar seus olhos, e diz em severa, mas doce reprovação:
- Estávamos todos muito preocupados com você aqui em casa! Onde você estava, Wagner?
Ele não sabe o que dizer e baixa os olhos. Cláudio sorri por trás da madrasta e responde por ele:
- Ele estava em Casa Branca, na minha casa. Passou a noite lá. Não deu pra avisar. O telefone lá de casa está mudo desde ontem.
- Seu pai e eu ficamos muito preocupados. Eu nem sabia mais o que fazer para impedi-lo de ligar para a polícia. Devia ter arrumado um jeito de nos avisar. Nós levamos um grande susto!
- Eu não fiz nada de errado, caramba! Não sou mais criança... - Wagner diz não muito convicto.
- E nós sabíamos que estava tudo bem? Se você não é mais criança, agiu como uma, deixando todo mundo preocupado com você! Eu telefonei para a casa de todos os seus amigos que a gente conhece em Casa Branca... Nenhum deles foi encontrado em casa. Na casa do Lage, ninguém atendia. O que você queria que nós pensássemos? Você saiu daqui ontem com eles.
- É... eu... fiquei muito pouco com eles. Fui pra casa do Cláudio, às onze, ele diz sem conseguir olhar nos olhos dela.
- Mas você não foi comemorar seu aniversário com eles? Pelo menos foi isso que você disse ontem antes de sair...
- É, mas... eu desisti e... como todo mundo começou a beber muito e eu também bebi um pouquinho, não quis voltar pra casa tonto como estava e... achei melhor ir pra casa dele...
Cláudio balança a cabeça sutilmente, admirando-se da cena e fazendo um grande esforço para não rir da cara de pau do irmão e passa a mão pela boca tentando se controlar. Diana percebe e belisca seu braço. Ele sente a dor e contém-se para não gritar, batendo de leve em sua mão.
- Eu só espero que seu pai acredite nessa estória. Ele está muito zangado e com razão. Você não vai negar isso! Eu vou avisar que você já está em casa.
Magda sobe. Depois que percebe que ela não os ouve mais, Diana coloca as mãos na cintura e diz:
- Dois marmanjos deste tamanho pregando mentiras pra mamãe, hein?
Cláudio a pega pelos ombros e a leva para sentar num sofá distante da escada.
- Não é mentira, Didi...
- Não é mesmo, adianta-se Wagner. – E se você abrir essa boca de caçapa pra levantar alguma suspeita pra quem quer que seja, eu te arranco essas tranças e te deixo careca, entojinho! - ele diz, segurando uma das tranças dela.
Ela grita, mas Cláudio aparta os dois e afasta Wagner dela.
- Wagner, deixa ela em paz... A culpa do que está acontecendo é sua, não dela! Para, caramba! Deixa de ser mais criança que sua irmã!
- Eu sei que você não estava na casa do Cla! - ela diz, massageando a cabeça que dói. – Você passou a noite na rua, na farra...
Cláudio a segura pelos ombros e diz:
- Diana, você quer que o papai brigue com o Wagner?
Ela olha para o irmão, com o punho fechado e diz em voz baixa:
- Quero muito!
- Eu te arranco os cabelos, já falei, Wagner ameaça de novo.
- Eu tenho certeza de que você não quer isso, Cláudio diz, tentando colocar panos quentes. – Você deve estar com raiva dele agora pelo que ele fez, mas depois você vai pensar que isso não leva a nada. Ele não te leva no cinema em Casa Branca? Não leva você pra ver o relógio de flor em Poços? É ou não é?
A menina sabe que é verdade e se cala, ainda olhando feio para Wagner.
- Além de ter uma porção de coisas boas que ele faz pra você e ele é seu irmão, Didi... Por mim... me ajuda!
Diana volta a olhar para Cláudio e ajeita as tranças.
- Está certo... mas eu fiquei com muita raiva, porque o papai nem dormiu direito essa noite. Nem ele, nem a mamãe, nem eu, nem ninguém... Só a Elis dormiu, porque ela nem sabe o que acontece ainda, mas estava todo mundo se preocupando por causa dele aqui na fazenda.
- Eu sei! Porque todo mundo ama o Wagner, inclusive você, mas ele não fez nada errado. Foi só essa noite que ele bancou o bobão, mas não vai acontecer de novo. Ele me prometeu e eu também te garanto isso. Confia em mim?
A garota sorri e confirma balançando a cabeça. Cláudio lhe beija o rosto.
- Obrigado, anjo. Eu te amo demais.
Ela lança outro olhar para Wagner e sai da sala correndo. Wagner se joga no sofá aliviado, mas tem que se levantar rapidamente porque Leonardo Valle está descendo as escadas, lentamente, seguido por Magda e da filha menor, Elis, de quatro anos.
Leonardo se aproxima de Cláudio e o cumprimenta com um sorriso:
- Bom dia, filho!
Cláudio se aproxima dele e lhe dá um beijo no rosto.
- Bom dia, pai.
Cláudio pega Elis no colo lhe beijando o rosto. Leonardo se volta para Wagner.
- Eu acho que devo dizer bom dia e boa noite pra você. Não disse ontem, não foi? Ah... Feliz aniversário!
Wagner não consegue olhar nos olhos do pai e fica em silêncio. Leonardo chega bem perto dele e insiste:
- Pra quem só estava na casa do irmão, você me parece meio desconfiado.
- Ele estava, sim, pai, Cláudio se antecipa em seu lugar. – Ele está só envergonhado por não ter avisado. Eu também sinto muito, a gente...
- Quanto ele te paga para defendê-lo? - Leonardo o interrompe, sem tirar os olhos do filho caçula.
Ainda amedrontado, Wagner ergue os olhos e encara o pai.
- Eu sinto muito...
- Wagner, alguma vez eu encostei a mão em você ou ameacei fazer isso? - Leonardo pergunta.
- Não, senhor.
- Já te prendi em casa e te impedi de sair da fazenda por qualquer motivo?
- Não, pai...
- Então por que você morre de medo de mim?
Os olhos do pai não se desviam dos dele e isso o intimida justamente por ter alguma culpa na situação. Consegue responder, com o coração aos pulos:
- Eu... não tenho... medo de você, pai.
- Não tem? - Leonardo pergunta quase querendo rir.
- Não... senhor.
- Então pare de tremer como uma vara verde. Se você não fez nada errado, está com medo de quê? Ou fez?
- Não! - ele responde prontamente.
Leonardo balança a cabeça e vai para perto de sua poltrona favorita, sentando-se nela. Como Wagner não sai do lugar, ele manda:
- Vá tirar essa roupa do seu irmão. Antes de ir se hospedar na casa de alguém, você tem que avisar o anfitrião e levar roupas pra dormir e se trocar. Eu acho que eu devo ter incluído isso na educação que te dei.
- Sim, senhor.
Wagner se afasta dos dois e corre para escada, subindo de dois em dois degraus. Leonardo olha para a mulher e para Cláudio, que está com Elis no colo, e sorri.
- Quem vê acredita que eu sou um carrasco de três cabeças que chicoteia ele todos os dias.
- É só respeito, pai, diz Cláudio. – Tenho certeza de que ele nunca mais passa a noite fora de casa sem avisar vocês.
- Isso é bom. Pelo menos ficou mais assustado que a gente. Pra alguma coisa, eu sirvo. Está tudo bem com ele mesmo? Se você disser, eu acredito.
- Está... Está sim, diz Cláudio, segurando a mãozinha da irmã que brinca com a gola de sua camisa. – Não avisamos porque... o telefone lá de casa está mudo desde ontem... mas está tudo bem.
- Então está bem. Agora vá lá em cima ajudá-lo. Eu acho que ele deve estar tendo dificuldade de tirar a roupa, tremendo como estava...
Cláudio coloca Elis nos braços de Magda e sobe também. Ao entrar no quarto do irmão, o vê sentado na cama imóvel, olhando para a janela em sua frente. Cláudio para na porta e pergunta:
- Precisando de ajuda, moleque?
Wagner olha para ele:
- Valeu, cara. Te devo... nem sei mais quantas. Não sei como te pagar.
- Eu sei, diz ele, entrando e fechando a porta atrás de si.
- Como? Não tenho um tostão aqui comigo...
Cláudio sorri e senta-se a seu lado.
- Não repetindo a dose. Por mais que seus... amiguinhos insistam, não passe mais uma noite fora de casa sem avisar seu pai e sua mãe. Peço muito?
- Não foi culpa deles, Cláudio. Eu nunca faço nada que eu não queira, ele diz com certa tristeza na voz. - A culpa é sempre minha mesmo. Eu só quis comemorar meu aniversário com meus amigos, mas eu vou tentar.
- Não vou dizer nada que você já não tenha ouvido. Não é por nada nem por ninguém que eu peço. É por você mesmo. Vê só: eu nunca te vi bêbado, de pileque... Você não está acostumado com isso. Um copo ou dois, numa ocasião especial, aqui em casa, tudo bem. Não tem problema. Você está em casa, vai pro seu quarto, dorme e pronto. Sua família está com você, se acontecer alguma coisa, mas, na rua, lá fora... você quer mostrar pros amigos que é independente e que não tem pai nem mãe no seu pé. Quer mostrar que é livre... e você é! Mas quando entra bebida alcoólica no meio... quando você vê... acabou o auto-domínio e sem ele... você não é nada, mano.
Wagner olha para o irmão por um momento e diz:
- Era isso que eu queria ouvir do meu pai, lá embaixo.
- Ele nem sabe do que aconteceu... graças a Deus! E tudo que eu sei, aprendi com ele.
- Mas ele não saberia me dizer, se soubesse. Quando você fala... dói menos.
- Eu não sou seu pai, Wagner, e o que não dói... a gente acaba esquecendo. Não faça isso.
Wagner o abraça forte.
- Nunca! Já disse que vou tentar. Obrigado.
- Se você disser que eu sou como um pai pra você... eu vou lhe dar umas palmadas. Você está merecendo, hoje.
Os dois riem ainda abraçados.
- Ah, parabéns! E vê se faz vinte anos mesmo, não doze.
Wagner ri.
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Cláudio toma café com os pais, passa algum tempo com eles na fazenda e volta a Casa Branca. Vai buscar Tânia na casa dos sogros que moram duas casas acima da dele na mesma Rua Luís Gama.
Bárbara Telles, mãe de Tânia, é dona do único orfanato da cidade que fica no bairro do Desterro, na periferia da cidade. Este orfanato cuida de duzentas e cinquenta crianças com idade variável de zero a doze anos e se mantém com a boa vontade de empresários e cidadãos influentes da cidade e da região, e da própria família Telles.
Bárbara é casada há vinte e oito anos com Jorge Antônio Telles, dono do Jornal de Casa Branca. Jorge é irmão de Jairo Antônio Telles, médico cardiologista e pai de Mônica, a moça que foi também comemorar seu aniversário com Wagner, o que o fez dormir fora de casa pela primeira vez e que causou toda a reviravolta em sua vida.
Ao chegar à casa dos sogros, Cláudio encontra a sogra com uma enorme dor de cabeça, mas isso não a impede de recebê-lo com um sorriso. Ela lhe beija o rosto.
- Meu querido, você precisa aconselhar seu irmão. Ele vai acabar colocando sua família numa situação muito difícil.
Cláudio olha para Tânia, sentada no sofá, diante da televisão ligada, depois, voltando-se para Bárbara, pergunta como não sabendo o que aconteceu:
- Por quê? O que ele fez?
- Ora, Tânia falou que ele passou a noite na rua, não foi?
Ele respira fundo e, pegando as mãos de Bárbara, a acompanha até uma poltrona.
- Não foi nada demais. Nada que um rapaz da idade dele não faça, hoje em dia, Bárbara. Ele foi só comemorar o aniversário com os amigos. Você não vai comentar nada disso com meu pai, não é?
- Mas, filho, ele já não sabe?
- Não... não tudo...
Tânia olha para ele com um sorrisinho e balança a cabeça.
- Alguma coisa tem que ser feita, Cláudio, continua Bárbara. – Sabe quem estava com ele e aquela turminha maluca dele?
- Não... Quem? - ele pergunta, lamentando, mas já sabendo a resposta.
- A minha prima Mônica! - Tânia responde antes dela, tendo prazer em dizer. – E se ele voltou bêbado de uma festinha de arromba com ela, adivinha o que deve ter acontecido...
Cláudio não consegue mais evitar e sente o sangue ferver nas veias. Só não fala o que está pensando por respeito à sogra. Bárbara continua, massageando as têmporas:
- Ela chegou hoje de manhã em casa em companhia de três rapazes num carro. Se não me engano, um deles era o filho do Lage, Beto. Wagner não estava com eles, mas a Mônica disse que ele estava na tal festinha o tempo todo. Disse que foram comemorar o aniversário dele e dela na casa do Lage. O Jairo está furioso com todos, mas principalmente com Wagner, por ser praticamente da família, e quer muito falar com seu pai.
- Eu não acredito que ele tenha feito nada de errado, Bárbara. O Wagner pode ser tudo, mas não é esse tipo de rapaz. Ele não faria nada que prejudicasse a Mônica. Eles se conhecem desde criança e...
- Bêbado, ele prejudicaria sim, interrompe Tânia. – Um homem embriagado não tem controle sobre nada e pode perfeitamente se exceder, ainda mais na idade dele.
- É isso, Cláudio. Numa situação assim tudo pode acontecer, não é?
- Principalmente com o pouco juízo que ele tem, Tânia insiste, sempre irônica.
Cláudio se senta ao lado de Bárbara e pede:
- Bárbara, tente persuadir o doutor Jairo a não falar com meu pai sobre isso. Eu não queria, mas já armei uma mentira enorme pro meu pai não se aborrecer com o Wagner, porque eu confio que não aconteceu nada de mais grave. Faz isso por mim, por favor. Seria um desgosto enorme pro meu pai, ainda mais se ele receber uma reclamação do amigo. Você sabe como ele gosta e respeita demais o doutor Jairo. O Wagner prometeu pra mim que não repete dose.
- E você tem certeza de que ele cumpre a palavra? Ele é tão imprevisível...
- Tenho, absoluta! Ele chegou muito assustado na fazenda, com medo que meu pai não acreditasse.
- Falta de vergonha... Tem medo, mas não tem vergonha, diz Tânia.
- Filha, pare de colocar mais lenha na fogueira, diz Bárbara. - A situação já está bem complicada e, de mais a mais, é a primeira vez que ele faz isso, não é, Cláudio?
- A Tânia tem um calo que dói sempre que o assunto é o meu irmão. Eu não aguento mais isso, ele diz, olhando para a mulher.
- Eu nunca gostei dele, desde antes de me casar com você. Você sabe disso. Nunca foi novidade.
- Imaginei que os dois cresceriam e isso acabasse.
- Ele nunca deixou de ser criança, uma criança bem inconveniente, diga-se de passagem.
Cláudio ia continuar, mas Bárbara coloca a mão em seu braço e o impede.
- Eu vou tentar falar com o Jairo. Jorge foi até a casa dele. Ele também ficou muito preocupado com a sobrinha. Desde ontem tentam saber o paradeiro dela. Graças a Deus e a Nossa Senhora das Dores, tudo está bem. Vou pagar a promessa que fiz a ela hoje na matriz. Agora está tudo bem.
- Eu te agradeço, Bárbara, diz ele, beijando as mãos dela.
Levanta-se e pede:
- Vamos indo, Tânia?
Ela se levanta, apanha a bolsa e aproxima-se da mãe.
- Tchau, mamãe. Vejo você amanhã.
- Tchau, meu bem. Procure ser um pouco mais complacente com seu cunhado, amor.
- Vou tentar, se ele um dia criar juízo também... - ela fala, olhando para o marido.
Ele pega sua mão e os dois saem.
No caminho de casa, Cláudio resolve soltar tudo que está preso em sua garganta desde aquela manhã.
- Por que você veio contar logo pra sua mãe sobre o meu irmão ter chegado em casa bêbado?
- E não é a verdade? Por que eu esconderia da minha mãe? Queria ter ido dizer pro meu pai e que ele publicasse no Jornal de Casa Branca.
- Você sabe que essa intriga sua com o Wagner me deixa muito mal, não sabe? Nunca achei certo que você fique falando mal dele pra sua família. Seu pai sempre foi amigo do meu e não dá pra entender essa atitude sua. Até parece que você é de outra família, Tânia. Não cabe mais esse tipo de coisa depois de oito anos de casamento. Eu trabalho no hospital do seu tio, caramba! Não dá pra dar uma folga?
- Você adora defendê-lo. Eu não. Ele merece uma lição.
- Será porque ele é meu irmão? Se você tivesse um, faria o mesmo. Ele nunca te fez nada.
- Não fez nada?! Ah, agora você não se lembra mais, não é, meu amor? Esqueceu que ele era um garoto importuno e mal educado que sempre se metia nos nossos encontros quando a gente namorava?
- Nós quase nem namoramos, Tânia. A gente era só colega de escola.
- Pouco antes do casamento, ele já não gostava de mim e fazia de tudo pra perturbar a gente. Ele conseguiu nos perturbar até na cerimônia na igreja. Lembra disso?
- Isso já passou. Ele cresceu e se você não fala com ele, ele nem lembra que você existe. Nem olha pra você. A gente mora aqui na cidade e ele na fazenda, há quilômetros daqui. É você que implica com ele.
- É claro. Você sempre fica do lado dele. Já me acostumei com isso. Eu nunca mereci consideração nenhuma sua nesse caso.
- Mereceria se tivesse razão. Os seus motivos são sempre muito infantis. Você também não tem consideração por mim.
Ela se cala e aperta o passo, indo na frente dele, nervosa. Para perto do carro e cruza os braços, ficando em silêncio.
Cláudio encosta-se no muro diante do sobrado, olhando para a rua. Tânia resolve reconsiderar, para não perder o final de semana e se aproxima dele, apoiando-se em seu peito. Pergunta já sem nenhum sarcasmo na voz:
- Não fica zangado comigo...
Ele olha para ela, meio surpreso, sentindo a diferença de comportamento e responde:
- Não... Estou só cansado de sempre discutir com você pelo mesmo motivo... Mas por que isso agora? Que diferença faz?
- Tenho sido uma chata ultimamente, não é? - ela pergunta, deslizando a mão em seu peito.
Cláudio consegue sorrir ao vê-la tão humilde e carinhosa.
- Um pouquinho. Às vezes, você parece mais criança que a Elis.
Tânia aproxima o rosto do dele e beija sua boca, apaixonada.
- Eu te amo... Acredita?
Cláudio retribui o beijo também e percebe que perder o domingo por um problema que está longe de ter solução naquele momento, não vale a pena.
- Você podia ser sempre assim, se fizesse um pouco de...
Ela o interrompe com outro beijo.
- Eu ainda vou te provar o que eu estou dizendo. Eu te amo e quero tentar unir a gente muito mais. Eu vou conseguir. Não vai demorar.
Ele a olha nos olhos.
- Vamos entrar ou ficar aqui na rua, namorando? Os vizinhos não vão gostar muito... - ele sussurra beijando-a de novo.
- E se a gente continuasse de onde parou hoje de manhã? Lá em Poços tem lugares muito gostosos...
Ele olha no relógio, afasta-se dela e vai para perto do carro. Entram no Mercedes e ele põe o carro em movimento, rumo à saída da cidade.
RETORNO AO PARAÍSO – ERA UMA VEZ... CASA BRANCA
PARTE 1