Capítulo 5 04. Resposta Sexto sentido

O celular descartável no bolso de Alice tocou desenfreadamente. Um toque alto, chato, típico daqueles modelos antigos com toques monofônicos. Caleb havia dado o aparelho à sobrinha depois do jantar, pouco antes de ela se despedir e voltar para casa.

'Vou te ligar apenas uma vez nesse aparelho, então certifique-se de estar com ele até quando for ao banheiro, porque eu não vou ligar de novo.' Caleb havia dito. 'Quando eu ligar, você vai ter o endereço do desgraçado. Quebre esse celular e jogue fora assim que eu desligar, entendido?' E Alice acenou em concordância.

E ali estava ela. Quatro dias depois de pedir o favor ao tio, e ele já havia conseguido resultados.

Felizmente, Joseph não havia tentado contactá-la durante aqueles quatro dias, nem uma vez que fosse. O que era um tanto estranho, mas ainda assim era algo bom.

Ela ouvira sobre o que significava chantagem de Caleb – ele lidava com basicamente qualquer coisa ilegal que alguém pudesse imaginar – e de acordo com ele, chantagistas geralmente se agarravam às suas vítimas, sempre tentando conseguir mais e mais do que almejavam delas. E ainda assim, não parecia ser o caso com o senhor "Se não se comportar, vou expor essas fotos para o mundo".

Mesmo que o toque do celular fosse bastante irritante, Alice não podia deixar de sentir uma certa paz enquanto ouvia o aparelho tocando. Talvez por aquilo significar que ela finalmente poderia ser capaz de encontrar seu perseguidor, em vez de o contrário, e lidar com ele de alguma forma.

Seu coração retumbou no peito ao pensar naquilo, porque o celular tocando também significava que ela não teria muito tempo para descobrir como lidar com Joseph.

Alice de repente lembrou de um dos sonhos estranhos que andava tendo, desde o incidente.

Não era como se ela tivesse sido capaz de lembrar seu nome verdadeiro, ou estar cem por cento certa de quem era ou o que tinha feito no passado. Mas pouco a pouco, pequenos flashes iam e vinham. Fazendo-a recordar de forma confusa, de coisas sem sentido sobre sua história.

Talvez sua memória não voltasse toda de uma vez, por alguma parte de sua mente estar tentando proteger a si mesma de um impacto muito intenso, ou qualquer coisa parecida.

O que importava, era que independente de qualquer coisa, pouco no caso de Alice, já significava muito mais do que nada.

E ela pensou nos sonhos que vinha tendo nas últimas noites, mais intensos e vívidos do que de costume, enquanto pegava o celular e atendia.

'Tio?'

***

Alice vivia em um vasto palácio com sua família, mas seus irmãos e irmãs estavam sempre espalhados em grupos, dificilmente tendo contato uns com os outros, de maneira regular.

***

A jovem lembrou de uma figura paterna, mas não sentia como se aquela figura fosse seu pai de verdade. Muito embora ele tivesse a autoridade de um pai.

***

Deverás ser boa, e não ferirás qualquer alma vivente...

***

'O nome dele é Joseph Willhelm, e ele mora na rua Três, número 805, centro da cidade.' Caleb disse, e desligou logo em seguida.

'Bem, se não qualquer coisa, o tio Caleb com certeza é um homem de palavra.' Alice disse, rindo para si mesma, enquanto guardava o endereço em sua memória.

***

Ela recordou ter visto dois de seus irmãos – ambos idênticos um ao outro. Cabelos louros, musculatura esguia, mas firme, pele branca e olhos vermelhos, quase chamejantes. Mas Alice ainda não conseguia se lembrar das roupas que eles usavam – lutando contra um grupo composto por suas irmãs.

Era estranho, já que elas sobrepujavam os gêmeos em número, mas segundo a lembrança de Alice, eles sempre pareciam vencer todas as disputas contra grupos maiores.

***

Alice estava prestes a fechar o flip do aparelho, quando lembrou da recomendação de Caleb, sobre quebra-lo e jogar fora, fazendo exatamente isso assim que encontrou uma lata de lixo.

***

Por algum motivo, não parecia errado que as irmãs de Alice lutassem contra seus irmãos, mas logo depois de ver uma de suas irmãs sendo derrubada, sentiu alguém tocar em seu ombro.

'Hora de voltar para seus aposentos, senhorita...'

***

E suas lembranças pararam, abruptamente, antes que conseguisse descobrir por qual nome seria chamada.

E muito embora ela entendesse que estava começando a recordar alguns fragmentos de seu passado, esses fragmentos ainda não pareciam fazer muito sentido.

Era mais como se ela estivesse presenciando a vida de alguém dentro de uma história de fantasia, não uma vida real, palpável. Não era nem de longe o suficiente para que Alice começasse a se sentir completa de fato.

No entanto, ao menos ela finalmente tinha o endereço daquele homem que ousara roubar a paz de Alice.

Era o suficiente para querer celebrar. Ir ao mercado e talvez comprar um pote de sorvete, ir para casa, e aproveitar os momentos de paz durante a manhã.

Antes de precisar de fato pensar sobre qual seria seu próximo passo.

~~~

'Deus do céu...' Sullivan ouviu um policial novato comentar, ao chegar na cena do crime. 'O rosto dela foi arrancado?'

Sully não sabia ao certo se o policial era um novato de fato, mas por seu comportamento, e dado que, logo após ver o estado da vítima, seu primeiro movimento foi correr até o fim do beco para vomitar – graças a Deus, longe o suficiente da cena do crime, para não contaminar o local -, não tinha como o rapaz, que parecia ter menos de trinta anos, e tinha a pele do rosto em um tom esverdeado que o fazia parecer um sapo doente, ser um veterano.

Porra... Sullivan pensou consigo mesmo.

E olha que o novato só tinha prestado atenção na parte "bonita" da cena.

As entranhas da vítima estavam por todos os lados, mas não era como se ela tivesse explodido nem nada do tipo. Seu torso estava todo aberto, e a única coisa que havia restado dentro dele, era o coração.

E o rosto da vítima parecia ter sido removido com uma precisão cirúrgica da cabeça dela.

Nem mesmo os lábios haviam sido deixados intocados.

'Parece que nosso cara roubou o rosto dela e levou para casa como lembrança.' A vice comandante Gonzales disse, aparecendo ao lado de Sullivan do nada. 'Mas... O que diabos você está fazendo aqui?'

O detetive estava prestes a perguntar por que ela imaginava que fosse um cara, e não uma mulher. Mas lembrou que da última vez que eles discutiram, o resultado não foi nada agradável.

Sullivan terminou com seu orgulho ferido, alguns argumentos quebrados, e uma marca de cinco dedos em sua bochecha.

Ainda assim, ele não conseguia entender o motivo de ela ficar tão furiosa com ele. Afinal de contas, ele não estava tentando livrar a barra dos bandidos. Muito pelo contrário, na verdade.

Era sempre ele o primeiro a se oferecer para ajudar a capturar criminosos, sendo graças à ele, mesmo que Sullivan não ficasse por aí se vangloriando com isso, que uma enorme quantidade de criminosos estava pagando por seus erros na prisão.

Tudo o que ele gostaria de saber, era o motivo pelo qual Gonzales sempre colocava todo e qualquer mal cometido nas costas dos homens, em vez de, como ele, pensar que poderia ser tanto um homem, quanto uma mulher.

Quer dizer, ele mesmo já havia visto mulheres cometerem atrocidades dignas de assassinos em série bastante famosos, antes mesmo de se mudar para aquela cidade.

No entanto, Sullivan decidiu apenas ficar quieto e analisar a cena um pouco mais.

Ele então alcançou suas costas com uma das mãos, coçando um ponto incômodo, que percebeu ser um caroço quase imperceptível, que não estava ali antes.

'Droga de insetos.' Sully disse, fazendo uma careta de dor. 'Meu trabalho, chefe, estou fazendo meu trabalho...' Finalizou, respondendo a vice comandante, sem abrir qualquer espaço para debate. 'Quem cometeu o crime não vive muito longe daqui, ou vem para o centro da cidade com bastante frequência.'

Era isso que Sully sentia no fundo de seus ossos.

Gonzales olhou para ele, incrédula.

'E como você tem tanta certeza disso? Sexto sentido?' A vice comandante perguntou com um tom que era uma mistura de desdém e reprimenda. 'Por acaso é mais uma daquelas merdas tipo "eu vejo gente morta" que você tenta jogar pra cima de nós?'

Sullivan já esperava que a vice comandante desse esse tipo de resposta.

Na verdade, ele sabia que ninguém naquele do distrito acreditava nele, e que a própria Gonzales não acreditava em uma palavra do que ele reportava ao capitão sobre os casos, muito embora o próprio capitão acreditasse, e isso fizesse com que ela fosse obrigada a manter a boca fechada.

Mas isso não mudava em nada o fato de que Sully tinha certeza absoluta de que Gonzales pensava que, no fim das contas, fosse Sullivan quem estivesse por trás de todos aqueles casos, afinal de contas, sentir a presença dos criminosos? Quem acreditaria em uma baboseira dessas?

Porém, Sully havia sido pego de guarda baixa naquele momento, sem saber como responder sua vice comandante.

Ele só conseguia se concentrar na sensação estranha que invadia seu peito ao observar aquela cena de crime.

Sullivan não sentia apenas a morte ali.

Ele conseguia sentir o mal propriamente dito. Uma ausência inexplicável de emoções humanas.

E ele entendia daquela maneira, porque era impossível que uma pessoa comum, até mesmo um psicopata, pudesse deixar uma cena de crime como aquela, sem qualquer rastro de nada além de maldade bruta, crua e simples.

Não era nem animalesco, bestial.

Era só...

Mal. Cruel.

Obscuro.

Mas ninguém além dele parecia ser capaz de sentir aquilo.

O estômago do investigador revirou à medida que ele sentia o peso de duas vidas em seus ombros. Seus dedos se retorceram de leve, lembrando de como sua mãe havia morrido naquela cama de hospital, e de como seu pai o havia basicamente espancado até a quase morte depois de ouvir da boca de seu próprio filho, que eles poderiam ter salvo a vida da mulher que o pai amava.

E ali estava outra mulher, que não poderia voltar para casa. Que não poderia voltar para sua família.

Havia uma chance minúscula, mas não inexistente, de que pudesse haver outro pequeno Sullivan por aí, carregando o peso da culpa dentro de si, sabendo que sua mãe fora assassinada, e tendo o mesmo destino que o detetive...

Trabalho acima de qualquer coisa! O detetive pensou para si mesmo, seguindo em direção ao fundo do beco, afim de conversar com o novato, que ainda parecia estar colocando para fora tudo o que havia comido durante o jantar, o almoço e o café da manhã do dia anterior.

'Você tá bem, cara?'

'Urgh.. Quem quer que... Tenha feito isso...' O novato grunhiu. Sua voz empapada de vômito. 'Só pode ser... Maligno...' E vomitou outro bocado.

Parecia que ele não seria capaz de manter uma conversa muito inteligível tão cedo.

Mas ainda assim, suas palavras atraíram a atenção de Sullivan, como a luz de uma lanterna atraindo mariposas.

Não... Não tem como haver outro como eu. Não tão perto, não é mesmo?

'Tá certo, gente.' Sullivan falou, alto o suficiente para que todos pudessem ouvi-lo. 'Se não se importarem, preciso que saiam da cena do crime, por gentileza. Tenho que tirar algumas fotos antes que a equipe de limpeza chegar e cagar com as evidências, já que o time da Forense já fez a parte deles.'

Gonzales lançou um olhar tão furioso na direção de Sullivan, que se ela lançasse raios laser pelos olhos, não teria sobrado nada do detetive além de cinzas.

A vice comandante não conseguia aceitar, mas ainda assim, mesmo que ele fosse só um consultor, ela era obrigada a obedecê-lo, já que o comandante não apenas confiava no detetive, mas levava sua palavra em consideração em qualquer caso que tivesse o dedo de Sullivan.

Então ela não podia fazer nada além de mandar seus homens voltarem às suas respectivas rondas. E não muito depois disso, Sullivan estava finalmente a sós com a cena do crime.

Nem mesmo o novato estava pelos arredores.

'Que esquisito, não vi ele indo embora...' Sully falou para si mesmo, olhando para o sangue nas paredes.

Até que, como que para desviar seus pensamentos de algo, uma marca em uma das paredes do beco chamou a atenção do detetive.

Ela se encontrava em um espaço anormalmente limpo da parede, ao redor do qual havia uma mancha absurdamente grande de sangue

Parecia em muito um pentagrama invertido, sem muitos detalhes, ao redor do qual havia um símbolo repetido cinco vezes.

'Tem cara de ser algum idioma antigo...' Sully disse para si mesmo, sentindo que já tinha visto aquilo em algum lugar. Talvez algum livro de história da época do fundamental ou algo parecido.

Já era de manhã quando Sullivan havia terminado de tirar as fotos e finalmente se preparava para ir embora.

Agora era só questão de ir para casa, fazer o tratamento devido das fotos, e rodá-las no programa de simulações que ele havia escrito para cruzar informações entre os casos.

Mas antes de conseguir se virar para sair do beco, tudo ao seu redor mudou, de repente.

Como se o tempo estivesse correndo mais depressa, e tudo ali estivesse decaindo, definhando e sendo corroído.

Literalmente...

            
            

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