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Alice caminhava pela manhã fria, a estranha névoa que pairava sobre as ruas da cidade, enregelando sua pele.
Cabelos curtos na altura do pescoço, ondulados e presos em um pequeno rabo de cavalo, pele branca e bochechas rosadas graças à brisa gélida que não deveria estar ali em setembro, em conjunto com a névoa, olhos amendoados e castanho-escuros, estatura mediana e compleição atlética de quem treina artes marciais desde pequena. Alice era bonita, e já tinha se acostumado com a quantia de olhares que recebia das pessoas todos os dias.
Mais ainda, graças aos seus jeans pretos justos, casaco longo e vermelho, que cobria uma camiseta branca, e pescoço coberto por um cachecol preto. Botas de salto alto de couro que faziam toc, toc, a cada passo que dava naquela rua quase vazia, onde apenas alguns poucos loucos o suficiente, corriam suas corridas matinais, fosse para o trabalho, ou para manter a saúde e a boa forma.
***
No alto de seus vinte e cinco anos, era forte e independente, vivendo sozinha em um apartamento confortável no centro da cidade, visitando sua mãe e tio adotivos algumas vezes por mês.
Ela trabalhava em uma revista de curiosidades durante a maior parte do dia, e com seu tempo livre, ajudava seu tio, Caleb, em suas pesquisas e projetos para abrir sua tão sonhada agência de investigação sobrenatural.
Não que Alice acreditasse nesse tipo de bobagens. Mas quanto mais ajudava Caleb, mais se deparava com situações que não conseguia explicar, e por mais que rechaçasse a ideia de Deus, Diabo, fantasmas, entre outras criaturas sobrenaturais, as pesquisas de campo que fazia com o tio ajudavam em muito a colocar uma pulga atrás de sua orelha.
***
Mas nem todo o treinamento que Alice teve com o tio, não havia sido o suficiente para salvá-la daquele homem.
Aquele homem de meia idade havia sido capaz – por sorte ou um azar do destino – de estar no lugar certo, quando Alice presenciara um assalto, e conseguira tirar fotos dela fazendo algo... Impossível.
Desde então, algumas semanas antes, a vida de Alice tem sido uma série de encontros desgraçados, nos quais ela entregava a ele fotos de si mesma, em troca do silêncio daquele homem sórdido.
Durante a caminhada, a jovem recordava o incidente, se martirizando por não ter conseguido se segurar. Por ter sido pega, e por não ser capaz de tomar uma atitude contra ele, por mais forte e habilidosa que seja.
Continuava pensando nisso até que chegou finalmente à cafeteria onde ele havia dito que estaria.
Era apenas uma questão de entregar aquele cartão de memória, e voltar para casa. Para sua paz, pelo menos por mais algum tempo, até ele voltar mais uma vez, pedindo por mais fotos.
'Olá, mocinha.' O homem de meia idade disse, acenando para Alice de uma mesa no fundo do lugar, enquanto acendia um cigarro.
O cheiro pungente atingiu as narinas da garota antes mesmo que a chama do isqueiro chegasse ao papel e tabaco do cigarro. Mas o cheiro não vinha do cigarro. Era estranho, mas ainda assim familiar, um cheiro acre, levemente adocicado, lembrando cerveja velha, tabaco queimado, e luxúria.
***
Alice não acreditava no sobrenatural, mas todas as pesquisas de campo que havia ajudado seu tio a fazer, fizeram com que ela aceitasse um pouco das coisas que não conseguia explicar.
E uma delas, era que havia coisas que eram invisíveis aos olhos das pessoas, mas que ainda assim, afetavam a vida de todos por quem passavam. Eram essas coisas que Caleb chamava de anjos, demônios, fantasmas, espíritos, entre outros nomes.
O problema era que essas coisas eram invisíveis apenas aos olhos das pessoas que, até onde Alice percebia, eram comuns. Pois ela, alguns anos antes, percebera que era capaz de enxergar algumas coisas. Não discernimento o suficiente para dizer formas e nomes, mas ainda assim tanto, que conseguia ver os vultos rodeando as pessoas nas ruas, nas igrejas, em casas.
Em todos os cantos por onde passava.
***
Alice entendeu imediatamente o que estava acontecendo ali, enquanto se encaminhava para a mesa onde o homem de meia idade, Joseph Jameson, esperava ansiosamente por ela, com um sorriso desesperado em seus lábios.
E o vulto rodeando o corpo do homem virou o que deveria ser seu rosto na direção dela, arreganhando os dentes em um sorriso assustadoramente largo.
Alice fechou a cara, e um passo de cada vez, se aproximou da mesa.
'Por que a carranca, mocinha?' Joseph perguntou.
Joseph era um homem no alto de seus quarenta e tantos anos, cabelo grisalho cortado militar, sua compleição física era magra, mas estranhamente forte para alguém daquela idade, e seus olhos eram acinzentados. Como uma tempestade se formando no horizonte.
'Cala a boca...' Alice respondeu, lembrando do incidente que a levara até aquele momento de sua vida, onde tudo desandara e dera irreversivelmente errado, e fechando mais ainda a cara para Joseph.
'Trouxe o que te pedi?' Joseph perguntou, o sorriso escancarado se fechando em uma linha fina, a expressão desesperada mudando para algo estranhamente inexpressivo.
E o vulto que o rodeava parecia se tornar fumaça, enquanto era absorvido por suas narinas e boca, à medida que dava longas tragadas no cigarro.
'Como se eu tivesse escolha...' Alice respondeu, jogando o cartão de memória sobre a mesa. 'Toma aqui...'
'Onde estão seus modos, mocinha?' Joseph perguntou. 'Claro que você tem escolha... Pode ser mais gentil, e me contar a verdade sobre o que você é. Me mostrar mais de si... E eu saio da sua vida, fácil assim...'
'Você é nojento!' Alice disse, se segurando para não bater na mesa.
Para não bater em Joseph.
'Ao menos meu lugar não é em um circo.' Joseph remendou, rindo alto. O que era estranho e assustador, pois sua expressão ainda carregava aquela neutralidade, e seus lábios ainda eram uma linha fina, aberta em um quadrado escancarado, mas ainda assim inexpressivo.
'Melhor se cuidar...' Alice disse, ameaçadora.
'Oh, não.' Joseph retorquiu. 'Quem me cuida é você. Ou já sabe o que pode acontecer... Mas, já que ainda opta por não ser gentil comigo, vou embora. Obrigado pelo presentinho.' E levantou, pegando o casaco do encosto da cadeira, e indo em direção à saída.
Alice ficou ali, sem saber o que fazer.
Queria ir atrás dele, cometer algum ato hediondo de violência, denunciá-lo, qualquer coisa. Desde que conseguisse fazer com que ele desaparecesse de sua vida, de uma vez por todas.
Mas qualquer solução parecia estar fora do alcance dela.
Violência era algo completamente oposto à sua natureza, denúncias apenas levariam seu segredo a ser exposto. Segui-lo só levaria a uma perigosa incógnita.
Alice estava de mãos atadas ali, e por isso, apenas esperou que Joseph fosse embora, para sentar em uma das mesas e pensar.
Porém, assim que ele foi embora e fechou a porta atrás de si, todo o lugar ao redor de Alice pareceu desmoronar de certa forma.
Decair, à medida em que as paredes iam envelhecendo em um ritmo vertiginoso. As cadeiras apodreciam, as pesas quebravam e os pedaços iam ao chão.
Até o balcão se degradou, explicando silenciosamente a Alice o cheiro que sentiu ao entrar ali.
A estrutura de madeira velha – aparentemente centenária – carregava marcas de bitucas de cigarro, manchas de bebida... O que explicava perfeitamente aquele cheiro.
Os sentidos de Alice se embaralharam enquanto o que parecia ser dava lugar ao que era de verdade, indescritivelmente embaralhado e revelando sua verdadeira forma depois de Joseph ir embora.
O que era aquele homem, para ser capaz de mexer com a mente dela de maneira tão literal?
O que era a coisa que se agarrava a ele como uma sanguessuga?
Não dava mais para ficar quieta sobre isso, Alice pensou consigo mesma enquanto saía do antigo bar, agora um decrépito prédio abandonado.
Aquele cara não era um homem comum, ou mesmo que fosse, o que acompanhava ele com certeza não era comum. Muito menos deste mundo.
E Alice conhecia uma pessoa que entendia de basicamente tudo que não era deste mundo.
Era hora de pedir ajuda ao tio.
Era tudo ou nada...