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Quando Alice chegou em casa, o cansaço era tanto que a jovem não conseguiu fazer muito mais, além de tirar as roupas e se jogar no sofá-cama.
Acordou no meio da tarde, arfando e suando frio.
Desde o incidente, Alice vinha sendo vítima de pesadelos assustadores, constantes e confusos.
Ela fugia de alguém e era atacada, sendo obrigada a fugir enquanto guardava algo. E ao fugir de onde estava, tudo simplesmente se tornava escuridão, e ela acordava encharcada de suor e ofegante.
'Urgh...' Alice grunhiu, levantando-se ainda exausta, e tirando a lingerie, que estava ensopada de suor gélido. 'Será que o tio Caleb já almoçou?' Perguntou a si mesma.
Decidiu tomar um banho, colocar uma roupa limpa, e ir cozinhar na casa de Caleb. Até porque, se ela não cozinhasse para ele vez ou outra, seu tio viveria muito bem de macarrão instantâneo, enlatados e cerveja.
Quando chegou à casa de Caleb, já era quase fim de tarde, e a ideia de fazer almoço já havia mudado para um jantar.
Caleb vivia um tanto longe do centro da cidade, e a casa dele era bastante modesta, mesmo que confortável – para os padrões de Caleb -. Uma construção térrea bem sólida com paredes de madeira, pintada de branco.
Uma sala de estar, cozinha, banheiro, quarto. Tudo assentado sem quaisquer suspeitas sobre um enorme porão, e para completar a beleza – que Caleb via ali -, um humilde e espaçoso quintal ao redor da casa, com várias árvores, um jardim – que Alice não fazia ideia de como Caleb, desleixado como só ele, conseguia manter -, e até mesmo um balanço em uma das árvores, mesmo que Caleb não tivesse filhos.
Ou melhor... Mesmo que Caleb não pudesse ter filhos.
Sem cerca, cão de guarda, nem nada que pudesse mostrar qualquer sinal de segurança ali.
Era assim que Caleb vivia, e mesmo assim, nenhuma viva alma sequer ousava entrar em sua propriedade. Com exceção de Alice, mas a garota tinha permissão especial para ir e vir a hora que quisesse.
E usando de tal permissão, ela adentrou o jardim. Sua pele sendo envolvida por aquela sensação calorosa, uma estática que fazia cócegas em sua pele à medida que atravessava a estranha membrana invisível que separava a propriedade de Caleb do mundo exterior.
A questão, não era que Caleb não tinha segurança nenhuma ao redor de sua casa. Mas sim que ele não precisava de métodos comuns de segurança, já que por mais que Alice não acreditasse nas mesmas coisas que ele, os encantamentos protetivos que Caleb utilizava ao redor de seu lar se mostravam mais do que efetivos até para uma cética como Alice.
'Tio Caleb?' Alice chamou, alto, se aproximando cuidadosamente da porta aberta.
A porta de Caleb estava sempre aberta, mas ir entrando, mesmo quando era Alice, nunca era algo inteligente de se fazer, já que Caleb sempre parecia estar trabalhando com algo perigoso. Como se nunca se importasse com que tipo de explosão fosse levar sua casa pelos ares.
'Oh, entre, chuchu. Eu estava para começar a fazer o jantar.' A voz de Caleb ecoou da cozinha. 'Posso cozinhar para você, também.'
Seu tom era tão despreocupado e sorridente, enquanto Alice entrava devagar, que ela sempre se perguntava se ele tinha realmente algum amor à vida, pois carregava aquele mesmo tom de voz, mesmo quando algum canto da casa estava em chamas, depois de algum experimento escuso e obscuro.
Alice lembrou da última vez que seu tio fez macarrão no almoço, e a simples ideia de Caleb cozinhando fez seu estômago revirar.
'Não, tio. Obrigada. Não quer que eu cozinhe?' Alice remendou sem esconder sua preocupação. 'Sabe que nenhuma criatura viva no planeta consegue comer sua comida, né?'
'Ah, qual é, boneca?' Caleb respondeu, torcendo os lábios. De repente, um sorriso malicioso brotou de sua careta. 'Você sabe que sua mãe ama meus burritos.'
'Ela ama os atestados que seus burritos dão a ela. Isso com certeza.' Alice brincou, um sorriso zombeteiro brotando em seus lábios. 'Vai, eu cozinho. Sei que odeia admitir, mas você ama minha comida.'
Caleb encarava a pia enquanto cortava vegetais, por isso Alice não conseguiu ver o sorriso brilhante no rosto do tio, que sempre se iluminava quando ela assumia o papel de cozinheira. Mas ao mesmo tempo, revirava os olhos, movendo os lábios imitando a fala de Alice, de um jeito jocoso.
'Tá bem, tá bem. Quem não gosta de comida quando ela tem sabor de paraíso?' Caleb disse, se rendendo, e liberando espaço para que sua sobrinha pudesse chegar até a pia.
Mas tão rápido quanto o humor entre eles havia se iluminado quando Alice disse que cozinharia, a atmosfera se tornara sombria, tão densa que daria para ser cortada com uma faca.
'Então... O que aconteceu, pequena?' Caleb perguntou, sério de repente. 'Eu sei que você dificilmente vem até aqui sem motivo.'
'Eu... Tenho um trabalho para você...' Alice disse. Seu tom de voz baixando sensivelmente.
'Opa!' Caleb exclamou. 'O que aconteceu, garotinha? Sério. Você nunca vem sem motivo, e nunca vem falando de trabalho... Você sabe o que eu faço, sabe que isso vai contra seus princípios, e...' Caleb fez uma pausa, pensou por alguns segundos, e teve um momento de epifania. 'Quem eu tenho que matar?' Ele perguntou, franzindo os olhos em duas linhas finas, sua voz atingindo um tom baixo e levemente gutural, como o rosnado de uma fera.
'Não, tio...' Alice respondeu de imediato, sacudindo as mãos, que até um segundo antes estavam manejando habilmente a faca e os vegetais. 'Não preciso que mate ninguém. É só que...'
Caleb olhou para ela e ergueu uma sobrancelha, pedindo silenciosamente para que ela continuasse.
'Lembra do incidente que te falei? Que não consigo explicar até agora e... Que me fez entender que você é... Diferente? Me passe as cebolas, por favor.'
'Claro que lembro, anjo. Achei que fosse me deserdar às avessas depois daquilo... E sinceramente, ainda não entendo o que te levou a não me afastar... Aqui, e não esqueça as cenouras, por favor. Sabe que amo cenouras.' Caleb respondeu, enquanto abria a geladeira para pegar mais vegetais.
Aproveitou e pegou uma lata de cerveja, dando um enorme gole logo após abri-la.
'Sim, sim. Cenouras também, certo. Então... Alguém me viu...'
Caleb parou no meio do segundo gole, pensou por um segundo, tentando entender o que sua sobrinha havia acabado de dizer, e depois de a ficha cair, engasgou tão forte que quase cuspiu a cerveja sobre sua mesinha de centro.
'Não... Você não tá me dizendo que...'
'É... É o que estou te dizendo.' A voz de Alice era cheia de tristeza e desgosto. 'E...'
'Continue, sobrinha. Mas sente-se primeiro. A não ser que você queira continuar picando essas pobres cebolas, que não fizeram nada contra você.' Ele disse, vendo Alice tornar as cebolas em uma pasta esbranquiçada.
'Okay...' Ela disse, soltando a faca, e sentando ao lado do tio.
Caleb era um homem com cabelos longos, ondulados, pretos com várias camadas brancas pelas mechas. Seu cabelo, quase sempre solto e meio bagunçado, dava a ele uma aparência selvagem, como que de uma besta ensandecida ou algo parecido.
Seu corpo era esguio, mas bastante musculoso. O que ele fazia questão de mostrar sempre que podia.
Pele morena, um olho tão levemente cinzento que quase chegava a parecer branco, não fosse pela pupila, e outro azul, em um tipo raríssimo de heterocromia.
Era quase tão alto quanto um jogador de basquete, e sua compleição bestial, em conjunto com sua altura, fazia as pessoas atravessarem a rua sempre que o viam.
Mas Alice não se importava com sua aparência.
Porra... ele cuidou dela quando ninguém mais esteve ali para ela. Caleb foi a única pessoa a se importar com ela e acolhê-la quando ela acordou naquele beco, sem qualquer memória sobre seu passado, praticamente esquecida por Deus e pelo mundo.
Como Alice poderia ser capaz de se afastar dele quando ele fizera literalmente tudo por ela?
De qualquer forma, para alguém que parecia uma besta, como ele, não existia essa coisa de validar emoções e sentimentos. Ao menos não para ele próprio. O que significava que mesmo se ele soubesse a importância que tinha para a sobrinha, Caleb nunca entenderia realmente a profundidade de seus atos.
E por não reconhecer o que ele significava para ela, Caleb sempre ficava sem reação, quando Alice fazia como naquele momento. Sentando-se ao lado dele, e imediatamente jogando seus braços ao redor do pescoço de seu tio, soluçando incontrolavelmente em seu ombro.
'Um homem me viu, e algumas semanas atrás, conseguiu descobrir aonde moro. Ele... Começou a me chantagear, tio...' Alice disse, as lágrimas fazendo sua voz embolada e difícil de quase incompreensíveis, mas Caleb não fez ela repetir uma vez que fosse o que tinha acabado de falar.
'E... Ele me obrigou a dar um cartão de memória com... Com fotos minhas... naquele estado!' Alice continuou. Soando agora furiosa e decepcionada, enquanto suas lágrimas queimavam os ombros de Caleb, que permanecia impassível. 'Antes de vir pra cá, fui encontra-lo... E eu simplesmente dei o cartão de memória para ele! Porque ele disse que se eu não desse, ele mostraria ao mundo a aberração que eu sou!'
Caleb sentia a tristeza da sobrinha no fundo de seu coração através daquele abraço. E com isso, também sentia sua fúria irrefreável, marca registrada de seu passado, ferver em seu sangue. A tal ponto, que ele quase não conseguiu conter a onda de energia que percorreu seu corpo, e quase fez a faca que estava na pia, voar em direção à parede.
A lâmina teria se enterrado facilmente até o cabo ali, se Caleb não tivesse se dado conta, e refreado sua ira incandescente, usando tudo de si para não explodir diante da sobrinha.
'Okay, garotinha. Shh, shh.' Caleb tentou consolar Alice, fazendo cafuné em seu cabelo. 'Primeiro de tudo, o que quer que eu faça? Quanto quer que eu faça esse desgraçado sofrer?'
Caleb soube imediatamente, que aquela pergunta havia ao menos arrancado alguma reação de sua sobrinha, já que assim que ele terminou de falar, ela parou de soluçar tanto, levantou a cabeça e encarou o tio com um olhar crítico.
'Tá bem, tá bem.' Ele respondeu, erguendo as mãos em rendição, soando chateado por não poder usar de sua velha violência em alguém. 'Chuchu, você sabe que essa sua natureza pacífica ainda pode acabar te matando, né?' Alice meneou com a cabeça, parecendo levemente desesperada, com lágrimas se amontoando em seus olhos novamente. 'O que quer que eu faça?'
Alice observou Caleb por um instante, tentando se recompor, escolhendo cuidadosamente as palavras.
'Tem mais... Havia alguma... Coisa com o homem... Ela finalmente disse, após considerar profundamente se revelaria ou não aquele aspecto da história ao tio.
'O QUÊ?' Caleb indagou, mais alto do que gostaria, como se tivesse sido atingido por um raio. 'Porra!' Caleb xingou. 'Então, e me corrija se eu estiver errado... Você quer que eu descubra aonde esse cara mora, e o que é essa coisa que anda junto com ele?'
Caleb não precisava de muito para entender quando Alice falava sobre as coisas em que ela o ajudava a pesquisar. Como sempre fora uma cética, Alice dificilmente nomeava o que conseguia ver, e por isso, assim que ela usava o termo coisa, Caleb imediatamente entendia do que ela estava falando.
E isso facilitava muito as coisas. Afinal de contas, eles haviam entrado no terreno que Caleb mais amava, e ele era um mestre em descobrir coisas, e encontrar criaturas sobrenaturais.
'Sim...' Alice respondeu, falando mais livremente e respirando mais facilmente, depois que o choque e o desespero desvaneceram. 'Mas não faça nada além disso. Acho que é algo que devo lidar por conta própria...'
Caleb deu uma encarada em direção a Alice. O mesmo olhar crítico que a garota havia lançado contra ele alguns instantes antes. Tanto que Alice pôde apenas rir fracamente, sentindo o a atmosfera ao redor deles clarear ligeiramente, mas pouco a pouco, mais intensamente.
'... E se eu não conseguir pensar em nada, vou te falar na mesma hora. Está feliz agora, tio?'
Caleb sorriu um sorriso de canto, que Alice sempre achava bonito nele. Um brilho malvado surgindo em seus olhos heterocromáticos.
'Agora sim, estou contente.' Ele disse, abraçando Alice suavemente. 'Sabe que tenho um ponto fraco contigo, né? Então não há nada nesse, ou em qualquer outro mundo, que me faria deixar um desgraçado sujo que mexeu com você, escapar ileso.'
E então, Caleb soltou Alice de seu abraço bestial, como se nada daquela conversa tivesse acontecido, levantou-se e foi até o balcão da cozinha. 'Você vai cozinhar ou não? Toda essa conversa, e você me dando esperanças de finalmente poder fazer alguém encontrar o Criador me deixaram tão faminto quanto um leviatã!'
'Claro, claro.' Alice respondeu. Sua voz de volta ao tom normal, amável e casual, e seus olhos meio inchados, mas brilhando com a sensação de segurança que ela tinha sempre que estava perto do tio. 'Vou fazer goulash, só porque me fez sentir melhor. Te devo essa.' E um sorriso brotou nos lábios da garota.
'AÍ SIM, PORRA!' Caleb comemorou, erguendo o punho como se tivesse feito uma cesta incrível na quadra, e logo em seguida, dançando uma dancinha constrangedora.
***
Do outro lado da cidade, Joseph sentia a sombra maligna da coisa que havia começado a acompanha-lo desde que tivera a oportunidade de olhar aquela garota, fazendo o que ele sempre achou impossível para humanos.
Baba escorria de sua boca sobre o teclado do computador, à medida que clicava nos ícones, foto após foto, cada uma delas cuidadosamente digitalizadas, já que quando ele fotografara ela, não carregava consigo uma câmera digital nem seu celular, quebrado não muito tempo atrás.
As fotos mostravam as formas da garota, que mais cedo estavam escondidas sob a massiva camada de tecido que ela vestira durante o encontro daquela manhã.
Entre suas pernas, não havia genitália, então era particularmente difícil de entender como ela era ela, para começo de conversa. E as... Coisas que ela tinha nas costas...
A visão daquilo fez Joseph se sentir extático.
Se ela pisasse fora da linha, aquelas fotos iriam torna-lo rico e famoso além de seus sonhos mais insanos, e ela se tornaria um ratinho de laboratório para sempre.
A vida finalmente parecia mostrar sinais de melhora para ele...
Risos ecoaram pelas paredes do apartamento imundo, mas não podiam ser ouvidos pelos vizinhos, já que a sombra que seguia Joseph garantia que ele permanecesse trancado naquele lugar, isolando aquele espaço do resto da realidade lá fora.
Onde a coisa poderia continuar se alimentando de Joseph enquanto sua vida ainda durasse.
Ou pelo menos, até que ele descobrisse uma forma de se aproximar de fato da garota...