Capítulo 6 05. Convite Temor absoluto

Para o complete desespero de Alice, sua paz momentânea fora estilhaçada uma vez mais, no momento em que colocou os pés para dentro de casa, e seu sorvete perdeu todo o sabor sem sequer ter encostado em uma colher.

Quando Alice abriu a porta e entrou, percebeu um envelope rombudo no chão, perto da porta, com uma frase escrita em letra cursiva, elegante, na parte da frente do envelope, que dizia PARA A SALVADORA DE UMA VIDA.

Assim que a jovem leu aquelas poucas palavras na parte externa do envelope, se arrependeu amargamente, mais uma vez, daquele dia.

***

Alice voltava para casa, depois de entregar algumas encomendas que sua mãe adotiva e irmã de Caleb, Sylvia, lhe havia pedido.

E quando ela atravessou a entrada de um beco, percebeu um velho agachado, quase caído, recostado na parede do beco. Seu rosto estava contorcido em uma carranca de dor, e sua camisa estava encharcada de vermelho.

Sombras se moviam no fim do beco, provavelmente os ladrões que haviam atacado o velho, mas não havia tempo para chamar a polícia ou ir atrás deles. E mesmo que ela saísse correndo atrás deles, o que faria? Repreenderia eles até morrerem de tédio?

Ela não era o tipo de pessoa capaz de violência.

Se ao menos tio Caleb estivesse por ali naquele momento...

Alice correu em direção ao velho para checar seu estado, mas seu celular estava descarregado, e não havia uma pessoa sequer prestando atenção no que acontecia naquela parte da rua.

E lógico que o velho não parecia bem. Ele estava sangrando profusamente na barriga, e já parecia estar em estado de choque. Seus olhos estavam arregalados, parecendo olhar na direção de Alice, mas mirando o nada através dela. Seus lábios pareciam se contorcer, tentando se mover como se o velho se esforçasse para dizer alguma coisa, mas a jovem levou um dedo aos lábios do velho, para que ficasse em silêncio e não desperdiçasse suas energias tentando falar.

Alice se perdeu em si mesma por um instante, mas logo em seguida, deitou o ferido no chão do beco e tentou falar com ele.

'Tá tudo bem, senhor. Você está bem, vai dar tudo certo...' Ela dizia, tentando camuflar o desespero que sentia sob camadas e camadas de seriedade e suavidade, tentando imitar a forma como Caleb falava com ela, sempre que se machucava quando era mais nova.

O velho parecia triste, perdido, até desesperado, como toda criatura viva.

Ele não queria morrer, e ainda assim, Alice não sabia o que fazer.

A única coisa na qual ela conseguiu pensar naquele momento, foi manter a ferida pressionada para tentar impedir ao máximo o sangramento já abundante, e esperar que sua vida terminasse pacificamente, sabendo que ao menos não morreria sozinho.

Haviam tantos ferimentos de faca em sua barriga, a julgar pelos rasgos em sua camisa, e o tecido estava tão vermelho, tão quente e ensopado, que não havia nada mais que Alice pudesse fazer, além de assistir, com lágrimas nos olhos, o velho morrer em seus braços.

O coração da jovem se encheu de um sentimento tão intenso de impotência, que chegou a doer fisicamente, transbordando a ponto de inundar sua alma, e ela levantou os olhos para o céu, implorando para que, se houvesse alguma força em algum lugar do cosmos, olhando por eles sob aquele céu infinito, ao menos levasse ele em paz dali.

E então, aconteceu...

Uma imagem impossivelmente vívida preencheu sua memória.

Olhos pretos como a matéria do universo, olhando para ela, quase que encarando sua alma.

E aquela voz, ressoando diretamente em seu coração.

'Seja boa para com eles, tente salvá-los e protege-los. Me perdoe, minha criança...'

Foi então que uma luz inexplicável, suave e aconchegante, emanou das mãos de Alice, pressionadas sobre o peito do velho, tornando-se em seguida fria como gelo e tão clara que poderia cegar quem olhasse diretamente para ela.

Alice, naquele momento, de alguma forma, Alice viu incontáveis momentos de sua vida. Flashes, fragmentos, pedaços perdidos e esparsos.

E então, viu o velho em sua memória, de alguma forma.

Alice testemunhou o que havia acontecido com ele, o assalto, os rostos mascarados dos bandidos, e até sentiu a dor das múltiplas facadas que o velho sofreu. Tudo em questão de segundos, em uma série enlouquecedora de eventos.

Cada um, acontecendo dentro da mente da garota.

As costas de Alice arderam como se estivessem em chamas, e ela sentia como se sua cabeça estivesse presa entre duas placas de uma prensa hidráulica...

E tão de repente quanto começou, tudo acabou e deu lugar ao silêncio e calmaria novamente.

Ela olhou para o velho, seus cabelos brancos encharcados de suor, a camisa ainda completamente vermelha, rasgada, mas sob o tecido, havia apenas pele seca e intacta. Sua respiração havia voltado ao normal, e o brilho da vida havia retornado aos seus olhos, à medida que ele sentia a vida retornando ao corpo com força total.

Depois disso, ela se levantou, perdida e assustada pelo que havia acabado de acontecer, pronta para se virar e fugir.

Mas um homem havia aparecido em seu caminho, seus olhos arregalados de estupefação.

'O que você acabou de fazer...?' O homem de meia idade perguntou, claramente chocado, depois de guardar a câmera que estava em suas mãos, numa bolsa que levava a tiracolo.

E foi a partir daí que a vida de Alice se tornou um pesadelo...

***

Ela sabia que não demoraria muito até que ele tentasse entrar em contato novamente. Aqueles quatro dias de paz haviam sido como a calmaria antes da tempestade, mas ainda assim, ela agora tinha seu endereço e seu sobrenome, então ela já não estava mais tão desprotegida quanto antes, mesmo que ainda não soubesse de fato o que fazer com tal informação.

Suas mãos tremiam enquanto ela tentava abrir o envelope. Dentro, havia uma folha de papel branco, provavelmente uma carta, e um pacote de plástico preto, de tamanho razoável e consistência estranha.

Alice sentiu um arrepio percorrer sua espinha quando pensou no que haveria dentro daquele pacote, mas se concentrou em ler a carta antes de qualquer coisa, já que sabia quem era o remetente.

Alice então desdobrou a folha branca, e seus olhos percorreram as linhas.

"Sentiu minha falta?

Sei que você tem aproveitado esse tempinho longe de mim, mas não pense que vai se livrar de mim assim, tão fácil. Se qualquer coisa, serei como uma segunda sombra sob seus pés...

Sempre perto de você.

A não ser que você queira realmente se afastar de mim. Se for este o caso, que tal se tornar outra pessoa?

Até te preparei um presente caso esteja realmente disposta a fazer isso.

Abra o pacote, e vai entender o que quero dizer com isso.

Venha me ver, e me conte TUDO sobre aquela coisa estranha que você fez aquele dia.

Já passou da hora de você me explicar o que diabos você é, mocinha...

Moro na Rua Três, número 805, Centro.

Estarei esperando ansiosamente.

Sinceramente seu."

Alice queria vomiter. Seu estômago revirava como se estivesse preso em uma montanha russa, com calafrios percorrendo seu corpo inteiro.

Ela sabia que Joseph não pararia assim, facilmente. Mas ela jamais esperava que ele fosse chegar a esse ponto.

Alice, pela primeira vez na vida, se sentiu insegura em sua própria casa, sem coragem para sequer se mover em direção ao pacote, para descobrir o que havia em seu conteúdo.

Mas não havia nada que ela pudesse fazer, que fosse mudar o que já havia acontecido.

'Me tornar outra pessoa...' Alice sussurrou a si mesma, rejeitando a ideia de todas as formas possíveis. Mas ainda assim, se perguntando o que Joseph queria dizer com isso.

Suas mãos alcançaram o pacote, e cuidadosamente abriram o lacre, que despejou o conteúdo pegajoso sobre suas mãos, fazendo ela gritar como uma criança.

Alice não estava preparada para o que havia dentro daquele invólucro plástico.

Havia um rosto dentro do pacote. Meio ressecado, mas ainda ensanguentado.

Um rosto feminino, humano...

~~~

O beco, antes ainda sujo, bagunçado e cheio de sacos de lixo, como qualquer beco por aí, agora parecia mais uma cena saída de um filme de terror. Canos enferrujados saindo das paredes, como ossos quebrados enferrujados, manchas sanguinolentas pelas paredes, que estavam descamadas em várias partes, como se fossem pele esfolada. Um líquido com um cheiro repugnante pingava do que parecia ser um teto sobre aquela cena horripilante.

E como se para coroar aquela visão infernal, haviam corpos pendurados em alguns dos canos enferrujados. Alguns trespassados, outros empalados, alguns pendurados pelas pernas, atravessadas pelas protuberâncias metálicas.

Mas todos ainda respirando, grunhindo, gemendo e gritando.

Urrando de dor em uma paisagem capaz de fazer qualquer um perder a sanidade.

'Haverão mais, se você não for capaz de pará-lo.' Uma voz impossível de ser descrita soou pelas paredes, como se falando dentro da mente de Sully, que se virou, olhando para todos os lados, assustado e tentando encontrar a fonte daquela voz.

De toda aquela loucura.

O detective estava prestes a dizer alguma coisa, a gritar, urrar, a fazer com que algum som saísse de sua garganta, quando em um canto daquele beco de pesadelos, ele a viu.

A coisa lixava suas unhas, longas como garras, encostada na parede do beco.

Era impossível saber se aquilo era um homem ou uma mulher, mas fosse o que fosse, era belo de uma maneira grotesca e assustadora. Seus cabelos longos, mudando de cor a cada instante, como uma lâmpada colorida. Seu corpo de torso nu, mostrava curvas atraentes e um colo de seios fartos. A pele era uma mistura de escamas reptilianas que reluziam como a carapaça de um besouro na luz do sol, e pele humana.

E de sua cintura, pelas costas, Sully viu aparecer uma cauda de escorpião.

A figura abriu os braços para Sullivan, e ao terminar o gesto, incontáveis olhos se abriram em sua barriga e rosto, e de seus braços caíram vermes prateados, que rastejavam e se retorciam ao colidir com o chão úmido do beco.

'Eu tô sonhando de novo, não é?' Ele perguntou, sentindo a mesma sensação que tinha sempre que estava no mundo impossível de seus sonhos estranhos.

'Você ainda não sabe a mínima diferença entre sonho e realidade. No entanto, parece ainda assim ter sido escolhido como a peça sobressalente que substituirá a grande convocadora das chamas...' A figura disse, deixando Sullivan ainda mais confuso. 'Por causa disso, não lhe causarei mal. Mas por agora, entenda que haverão mais, se não for capaz de pará-la. Posso te mostrar como com o tempo...' A figura disse, se aproximando do detetive.

Sullivan estava tão chocado por tudo que se desenrolava diante de seus olhos, que não foi capaz de mover um músculo sequer.

Sua mente corria como um raio, seu corpo completamente congelado de medo.

O investigador só queria gritar, mas sua garganta não soltava um som sequer.

Sangue pingava de suas roupas, junto com aquela substância de odor horroroso, e quando a figura chegou perto o suficiente, Sully viu uma língua viperina saindo da boca dela. O rosto daquela coisa foi chegando mais e mais perto de sua bochecha, até que ele sentiu a dor pungente de uma queimadura.

Não entendeu o que havia acontecido, até sua mente desacelerar brevemente, e Sully ser capaz de compreender que havia sido lambido pela criatura.

'Hum... Saboroso... Tão saboroso quanto quem está se aproximando de você em seu futuro...' Ela disse, sorrindo um sorriso maligno. 'Cuidado com quem cruza seu caminho, garotinho saboroso... Estarei te observando...'

E quando ela se distanciou o suficiente, desapareceu das vistas do investigador. Como se atravessasse uma cortina invisível, levando consigo a paisagem infernal que se desdobrava ao redor de Sullivan.

Deixando nada além daquele beco sujo, o corpo da vítima, ainda no mesmo estado em que o investigador a havia encontrado, e um Sullivan completamente catatônico, com sua camisa de flanela preta ensopada de sangue e aquele líquido fétido, e suas calças encharcadas do que só poderia ser sua própria urina.

            
            

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