Capítulo 8 07. Memórias e escolhas

Alice sentiu seu estômago virando e revirando, com uma sensação impossivelmente intensa de vertigem tomando conta de seu ser.

Havia um rosto humano de verdade em suas mãos, sacudindo entre seus dedos que tremiam descontroladamente. A jovem não sabia o que pensar, o que sentir.

Alice não sabia nada.

Ela acabou vomitando no chão, mas se manteve consciente, mesmo que todo o seu corpo quisesse desistir e simplesmente apagar.

Alice era uma boa pessoa, mas isso não significava que era uma pessoa frágil.

Passara alguns bons anos treinando com seu tio Caleb e vendo ele lidar com todo tipo de coisa ruim, afinal de contas.

Tudo aquilo havia preparado a garota para muita coisa em sua vida.

Então ela não se permitiu quebrar ali.

O problema era o que ela faria a partir de agora.

Havia aquele convite para a casa de Joseph, que acabara se mostrando alguém muito pior do que um simples chantagista.

Que acabara se mostrando um monstro...

Um assassino.

A mente de Alice estava toda nebulosa, seus sentidos pareciam sumir aos poucos, dopados pelo choque e pelo medo, mas a jovem se agarrou o mais forte que conseguia à realidade, se esforçando para pensar em qualquer coisa que parecesse real.

Até que uma memória preencheu sua mente, tão real quanto qualquer lembrança poderia ser, para ela.

***

Ainda era muito jovem, e havia uma página rasgada em suas mãos.

O material daquela página não parecia ser papel, mas sim algo muito parecido com um couro muito velho e ressecado.

Um tipo de pergaminho, talvez.

A página era toda preenchida com palavras em preto, mas o que mais lhe chamara a atenção, era a marca avermelhada na base da página.

Ela sabia o que aquela marca significava.

A garota pensara que havia algo errado com seu lar desde que havia visto a grande figura paterna naquele salão.

E depois o enorme portal preto, que por alguma razão, não deveria estar ali.

Aquele portal preto...

Mas como era possível? Aquele portal só podia existir em um lugar muito específico e singular.

Alice não conseguia se lembrar qual era o lugar, mas sabia que era basicamente impossível para ele, invocar aquele tipo de portal.

Quanto mais atravessá-lo para lá.

Ela não lembrava do nome do lugar, mas sabia de alguma forma, que aquele lugar era perigoso.

Proibido.

Mas por quem?

'Mas quem havia feito aquela regra?' Ela pensara, sabendo que tinha a resposta em algum lugar dentro de si, de alguma forma.

E por isso mesmo tinha que ir embora dali. Tinha que fugir.

A figura paterna que guiava seus passos estava errada. Seu lar como um todo estava errado.

Seu lar estava...

***

Ela não tinha palavras para definir todas as emoções e sentimentos que se remexiam no fundo de sua mente. Mas ao menos, sabia que finalmente tinha algo real a que se agarrar.

Um pedaço de sua própria realidade, há muito esquecido, mas que logo seria recordado como deveria ser.

Alice não queria fazer aquilo. Mas era a única maneira.

Era a única coisa certa a se fazer...

Ela caminhou pela casa, depois de limpar a boca e recuperar o equilíbrio, observando todos os cômodos.

Lembrando da vida falsa que havia vivido ali.

Quando fora encontrada por Caleb, a garota se tornara Alice, filha adotiva – filha, de qualquer forma – de Sylvia, e sobrinha daquele homem de aparência bestial, Caleb.

Ela fora para a escola, passara de ano, se formara no ensino médio, fora para a faculdade, passou tempo com sua mãe e treinou duro com seu tio, para se tornar alguém que não pudesse ser subestimada por valentões ou qualquer outro tipo de pessoa.

Para não ser subestimada por ser pequena, por parecer fisicamente fraca.

Por ser mulher.

Foi bom enquanto durou, porque a jovem vivera uma vida feliz.

Ou tão feliz quanto a vida deveria ser.

***

'ME DÊ A PÁGINA, ...'

***

Alice lembrou da voz de sua irmã gêmea, chamando por ela, pedindo pela página que estava em suas mãos, mas não conseguia lembrar do nome pelo qual a irmã a chamara.

Porém, ao menos ela sabia que tinha uma irmã gêmea.

Ao menos ela lembrava desse detalhe, finalmente.

Alice olhou para seu quarto, ainda com os pôsteres de anime pelas paredes e bonequinhos que amava colecionar, forrando suas estantes cheias de livros.

Sua cama, ainda meio desarrumada, como se ela ainda fosse uma adolescente desorganizada.

Velhos hábitos nunca morrem, como dizia o ditado.

E então olhou para a lavanderia, suas roupas ainda prontas para serem penduradas. Peças clássicas, meio despojadas, mas ainda assim bonitas. Era seu estilo, afinal de contas.

Alice passou por todos os cômodos, um por um, como que se embriagando em sua realidade de mentira. Relembrando todas as memórias falsas que tinha criado ali, com sua mãe, seu tio, e os poucos amigos que fizera, mas que não permaneceram em sua vida até a faculdade.

Lembrou da única garota com quem ela já havia tido um relacionamento.

A única pessoa com quem já tivera um relacionamento, ponto.

***

'NÃO VOU! NÃO POSSO! VOCÊ NÃO SABE O QUE ISSO SIGNIFICA?' Ela gritou, perguntando para sua gêmea, lágrimas queimando seus olhos.

Como alguém tão jovem conseguia entender as implicações do que acontecia por de trás das cortinas daqueles majestosos corredores, vastos campos de treinamento e salões de conselho?

Mas da mesma maneira, como sua própria irmã gêmea, sua completa metade, ser tão cabeça dura e acabar traindo seu próprio sangue, por causa da merda de uma página de um livro velho e sujo?

***

Até que então, Alice chegou à oficina que Caleb tinha ali.

Ele nunca mexia com nada ilegal na casa de Alice. Pelo contrário, ali naquela oficina, ele ensinara a jovem coisas muito úteis, como marcenaria, habilidades de sobrevivência, qualquer coisa que pudesse ser mesmo que ligeiramente necessária em qualquer cenário impossível que se passava pela mente do tio.

Só que, pela primeira vez em toda vida de mentira deles, algo pareceu brilhar aos olhos de Alice, ali naquela oficina, como se estivesse chamando por ela.

Alice tirou seu celular do bolso e digitou o número de Caleb, esperando até a ligação ser completada.

'Olá...' Ela ouviu a voz do outro lado da linha, mas assim que se preparou para contar a ele o que estava se preparando para fazer, a voz continuou falando. '... Você ligou para Caleb, sou eu! Se está ouvindo esta mensagem, provavelmente estou bastante ocupado, ou só não quero atender. Deixe sua mensagem depois do bip, e se for algo realmente importante, retorno a ligação assim que possível.'

'Merda! Filho da mãe!' Ela pensou, mas começou a falar do mesmo jeito.

'Bem... Acho que são males que vem para bem, talvez. Então... Aconteceu uma coisa, e eu tenho que ir embora, tio. Se nos encontrarmos no futuro, ou vou ser eu de verdade, meu antigo eu, ou alguém que nenhum de nós conheça, então... Não me procure, tá? Mesmo que saibamos o quão cabeça dura você é, e que independente de eu te pedir isso, você vai mover céus e terras para me encontrar, porque é assim que você é...' Alice disse, sentindo seu queixo começar a tremer, e sua voz ficar soluçante. Lágrimas começaram a cair. 'De qualquer forma, isso é um adeus, rio Caleb. Ou talvez, com sorte, um até logo. Obrigado por tudo... Tchau...'

Ela desligou antes que as lágrimas se tornassem mais intensas do que ela conseguia ser capaz de suportar.

Antes que acabasse mudando de ideia...

Ela olhou para dentro da oficina, e sobre a velha escrivaninha, como se Deus, ou algo tão poderoso quanto mostrasse a ela o que o termo providência realmente significava, um pé de cabra brilhava, lustroso, como que olhando diretamente para ela.

            
            

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