Capítulo 4 03. Um caso como outro qualquer

Sullivan costumava ter sonhos estranhos.

Ele tinha trinta e quatro anos e trabalhava como consultor de investigações para o departamento de polícia da cidade.

Magro e longilíneo, alto e de pele pálida que fazia com que ele parecesse sempre doente, com olheiras sob seus olhos castanho-avermelhados, e cabelo curto, ruivo, Sullivan parecia ser o tipo que havia sido alvo de piadas durante o ensino fundamental. Mas quem o subestimava, sempre acabava na pior.

Ele não era violento, mas sabia se defender muito bem.

Naquela noite, ele tremia e convulsionava na cama, devido aos sonhos estranhos e assustadoramente realísticos que costumava ter.

E aquele sonho, especialmente, parecia muito mais realista do que qualquer outro sonho lúcido que já tivera.

Não acordou durante o sonho, por já estar acostumado a tudo aquilo, e por isso, conseguiu absorver todas as informações de onde se encontrava, naquele mundo etéreo.

Era como um enorme jardim, cheio de árvores com frutos, animais e outras plantas estranhas. E no centro do jardim, uma árvore enorme, tão alta e frondosa, que parecia encobrir o céu, dada sua espessa folhagem.

E seus passos o levavam diretamente em direção àquela árvore.

Sullivan olhava para ela, e ao mesmo tempo para o nada, como que em transe, sem saber exatamente onde estava. E quando deu por si, percebendo que estava sonhando de fato, olhou ao redor, a fim de tentar descobrir se estava em algum lugar já conhecido, familiar de outros sonhos, apenas para perceber que realmente não conhecia aquele lugar.

Em seus sonhos, tudo parecia ser possível e impossível ao mesmo tempo, e por isso conseguiu entender de fato que aquele era mais um de seus costumeiros e extremamente estranhos sonhos, onde ele era capaz de fazer absolutamente tudo e qualquer coisa. Inclusive coisas que ele não queria nem gostaria de ser capaz de fazer.

O jardim parecia mais real e natural do que até mesmo os jardins mais simplistas do mundo real, com a vida ao redor parecendo mais vívida, a atmosfera ao redor dele e de todas as coisas parecendo tremular com energia, como se uma força invisível, mas poderosa, permeasse toda a vastidão daquele jardim.

Sullivan estava nu, enquanto se aproximava da árvore, como se nunca tivesse sequer conhecido o significado do termo vestimenta.

E só então, quando se deu conta de sua nudez, mesmo que não achasse aquilo estranho, Sullivan olhou de fato para a árvore, atentamente. O tronco enrugado com sua casca marrom-clara, subia não muito alto, mas se espalhava em inúmeros galhos. As folhas eram de um tom leitoso e branco, e cada galho estava carregado de frutos.

Eram frutos estranhos, aqueles, até inexplicáveis.

Redondos, do tamanho de uma toranja, com uma casca de coloração impossível.

Às vezes pareciam róseas, como a pele saudável de uma pessoa branca. Outras vezes, amarronzadas, e algumas vezes até tão brancas quanto a pele de Sullivan.

Tão intrigante, que Sullivan ousou esticar a mão para tocar um dos frutos, e para seu absoluto espanto...

A casca tinha textura de pele humana, e o toque dela fez um arrepio correr o corpo de Sullivan.

A sensação fez com que os dedos dele se contraíssem involuntariamente, e seus pelos se eriçaram, como se percorridos por uma suave corrente elétrica.

E depois que Sullivan tocou a casca do fruto daquela árvore, incontáveis olhos se abriram por toda a fruta, olhando diretamente para ele.

Até mesmo os olhos que não podiam alcança-lo.

Por mais estranho que parecesse, ele sabia que era assim, que aquela fruta assustadora o estava observando cuidadosamente.

Mas ele não conseguia se virar e fugir.

Seu corpo estava congelado ali, como uma estátua obrigada a encarar aquela árvore tenebrosa e seus frutos impossivelmente assustadores.

Sullivan, então, começou a sentir uma coceira horrível por todo seu corpo, começando elas costas.

E quando coçou, sentiu sua pele cheia de caroços que não estavam ali antes.

Mãos, braços, pernas, torso, rosto.

E quando olhou para suas mãos, um dos caroços se rasgou no meio, revelando um olho sob a pele dele, exatamente como aqueles do fruto que tocara. Írises pretas, a esclera amarelada, como se tomada por pus.

E o olho virou-se rapidamente na direção dos olhos de Sullivan.

Que acordou no mesmo instante.

Era duas da manhã, e Sullivan estava assustado, sem entender o significado por trás daquele sonho que mais parecia um pesadelo oriundo de uma mente adoecida.

'Puta que pariu... Será que estou trabalhando demais?' Sullivan perguntou a si mesmo, sentindo como se a realidade daquele sonho ainda estivesse ao seu redor. 'Foi... Foi... Deus do céu! Mas que caralho?!' Ele exclamou, ao olhar para sua cama, depois de acender o abajur.

Uma fruta esparramava-se sobre a cama de Sullivan. Do tamanho de uma toranja, com uma casca rósea, exatamente no tom de uma das frutas do sonho...

Ele esticou sua mão lentamente em direção à fruta, sua mente correndo mais rápido que um carro de Formula Um, tornando o próprio processo de pensamento difícil.

Sullivan não apenas trabalhava como consultor de investigações para a polícia. Ele também vivia como um, sem medo, sempre no limite, sem jamais se encolher diante de qualquer ameaça. E no entanto, seu trabalho jamais preparara a ele para o quase infarto que teve, quando ainda nem havia alcançado a fruta, e seu celular começara a tocar, ao lado do abajur.

O pobre Sullivan quase pulou para fora de sua cueca ao ouvir o toque alto do celular, um heavy metal forte, cheio de gritos rasgados e com uma letra depressiva, aguardando ansiosamente para que o detetive atendesse.

'Uh... Alô?' Foi a única coisa que Sullivan conseguiu responder, arfando como um cão em um dia de calor extremo, tentando com todas as forças recuperar sua compostura.

'Sully? Mas que merda, cara! Estou tentando te ligar faz meia hora, direto! Que porra você estava fazendo?' A voz do outro lado da linha respondeu, zangada.

Mas quem era aquela pessoa? Meia hora? Sullivan conseguia apenas olhar para a fruta sobre a cama, como se estivesse esperando por ele, completamente imóvel.

'Sully...? Qual é, cara, você tá com overdose de café de novo? Olha que eu vou direto praí te acordar e te colocar pra dormir direito, a não ser...'

'Não, tá tudo bem, eu tô bem.' Sully finalmente respondeu, tentando conseguir algum tempo para tentar entender a quem de seus poucos amigos aquela voz pertencia. 'Por que tá me ligando a essa hora?'

'Por que mais poderia ser, idiota? Trabalho!' A voz respondeu em um tom seco, acrescentando logo em seguida. 'Ei... Você tá realmente bem? Certeza que não tá chapado nem nada?' Naquele momento, a voz parecia apreensiva. Quase preocupada.

'Não, sério, eu tô bem. Eu só...' tive um pesadelo horrível? Era isso que Sully estava pensando em responder?

Sim. O detetive juntou alguma coragem, e depois de um momento de ponderação, soltou tudo de uma vez. '... Tive um pesadelo bem... Ruim, e acabei de acordar. Ainda tô meio perdido entre realidade e sonho, desculpa... Só tô meio off.'

'Tivesse falado logo de cara, porra... Tá, deve ter te assustado de verdade pra você demorar tanto assim pra reconhecer a voz do seu namorado, né?'

Então era o Benji, Sullivan pensou, seu coração se enchendo de alívio.

O que também o inundou com uma onda de vergonha. Benjamin Oswald era seu namorado e parceiro de trabalho, logo, seria a única pessoa com voz masculina que poderia ligar para ele àquela hora da manhã, falando de trabalho.

'Perdão pelo vacilo...' Sully disse, apologético. 'Pelo menos não era ninguém realmente importante.' Terminou. Sua voz encharcada de ironia.

'Vou te encher de porrada assim que te encontrar, Sully!' Seu parceiro disse em tom de desaprovação, mas rindo lá no fundo. 'Temos um caso, vou te mandar os detalhes por whats, e depois disso você me encontra na conveniência do West Park.

'... Tá bem, até já.' E Sully então ouviu Benji desligando.

A coisa com Sully, era que ele era um excelente investigador particular e consultor para a polícia. Mas não por resolver cada caso que aparecia para ele.

Era bem o contrário, na verdade.

Claro que essa particularidade dele não tinha a ver completamente com os casos, pois quando o assunto era seguir pessoas, tirar fotos, ajudar a encontrar bichinhos perdidos, e outras coisas que detetives sabiam muito bem fazer, ele sabia muito bem usar suas habilidades de detetive veterano.

Mas não era a mesma coisa com pessoas desaparecidas, homicídios, e outras coisas que costumavam ser trabalho especificamente da polícia.

Quando o assunto era esse, Sully não dependia muito de suas habilidades de veterano.

Ele dependia muito mais do seu sexto sentido. E esse sexto sentido não tinha nada a ver com aquela costumeira intuição, que tão bem combinava com detetives e investigadores.

Não.

O que Sullivan chamava de sexto sentido, era na verdade, a habilidade de sentir a morte.

E não apenas por observar uma situação onde alguém havia morrido.

Sullivan podia sentir se a morte já havia ocorrido, e se ainda estava para ocorrer, perto ou não da vítima ou do assassino.

Mas não era como se ele fosse paranormal ou qualquer coisa do tipo. Pelo menos não que ele mesmo se assumisse como tal.

Sully nunca pensara muito sobre aquilo, mas desde que era uma criança, sempre estivera meio que entrelaçado com o sobrenatural.

Mas mesmo que ele ajudasse em todos os casos que apareciam para ele, os policiais do distrito ainda se encolhiam e sentiam arrepios quando Sully se aproximava.

De qualquer forma, pela primeiríssima vez em sua vida, ele se perguntou se o sobrenatural não podia, na verdade, estar guiando ele durante toda sua vida, até aquela noite, que até o momento, parecia estar sendo, facilmente, a mais estranha de todas.

Até aquele pesadelo, e aquela estranha e tenebrosa fruta em sua cama.

Sully se lembrou do sonho, da sensação de naturalidade que chovia sobre ele para onde quer que olhasse, e do quanto, a despeito do medo que sentiu quando a fruta abriu a miríade de olhos para ele, aquilo talvez não tivesse a sensação de naturalidade, mas sim de normalidade.

Talvez fosse por sempre ter sido tão próximo com o sobrenatural ou algo parecido.

Mesmo quando sua mãe estava morrendo, ele sentia o fim dela mais e mais próximo, mesmo que ela não contasse a ninguém que estava doente.

Ela não queria preocupar ninguém, nem se sentir um estorvo para as pessoas ao seu redor. Não queria ser um peso nem para Sully, nem para o pai do garoto.

Mas ainda assim, o jovenzinho sentia a presença da morte, rondando mais e mais perto de sua mãe, e nunca perguntou uma coisa sequer, porque o garoto sabia que sua mãe negaria estar doente, até mesmo se estivesse em seu leito de morte.

O que acabou acontecendo, não muito tempo depois.

O pai de Sully se tornou alcoólatra, foi embora de casa, e o jovem Sullivan foi obrigado a lidar com todo o peso por conta própria.

Tanto de saber que sua mãe estava morrendo, e não ter feito nada para tentar impedir, quanto as obrigações de um adulto, mesmo que ele tivesse apenas quinze anos, na época.

Depois da morte da mãe, e do abandono do pai, algo quebrou dentro de Sullivan, e desde então, trabalho era sua prioridade máxima em toda sua vida.

E isso fez de Sully aquele adulto, que deixava de lado todos os pensamentos desnecessários enquanto encarava fixamente a fruta, se recompondo e se preparando mentalmente para o que quer que acontecesse.

'Trabalho antes de tudo.' Ele disse para si mesmo, reunindo alguma coragem e pegando a fruta para tirá-la da cama.

Depois disso, e de respirar fundo algumas vezes para acalmar o coração, que batia como um tambor de guerra, Sully vestiu suas calças, uma camisa de flanela preta, acendeu um cigarro, e ligou seu computador.

Seu celular era lento demais para que conseguisse abrir os arquivos do caso por ele, então sempre que Benji lhe enviava algum arquivo, usava a versão web da plataforma de comunicação.

Ele não prestou atenção em quanto tempo se passou, até que a aba de Benji piscasse com uma nova mensagem, sinalizando que seu parceiro havia mandado os arquivos sobre os quais havia falado.

Sully pensou que seria mais um caso simples, como a maioria dos casos nos quais havia trabalhado nos últimos meses, mas para sua surpresa, não era.

Havia um corpo no centro da cidade, e o estado era, para dizer o mínimo, absolutamente diferente de qualquer coisa que ele já tivesse visto na cidade durante os últimos anos.

Sullivan colocou seu distintivo, foi até o carro com o cigarro ainda pendendo entre seus lábios, e dirigiu até a conveniência para encontrar Benji.

Seria uma noite daquelas...

            
            

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