Capítulo 7 06. Pesadelos à luz do dia

Logo depois do incidente com a coisa no beco, Sullivan foi para casa pensando que, pela primeira vez em sua longa carreira, precisava de uma noite de sono decente.

Mesmo se fosse necessário engolir um frasco inteiro de comprimidos para dormir, afim de atingir seu objetivo.

Simplesmente não havia como aquelas coisas que ele havia visto e sentido naquele beco assustador terem sido reais. E mesmo assim, sua bochecha ainda ardia em brasa graças à lambida daquela coisa, que marcara sua bochecha com aquela língua nojenta, deixando um inchaço que com certeza faria ficar uma cicatriz, e sua camisa de flanela ainda fedia por causa do sangue e daquela água podre.

'Merda... Ainda vou precisar lavar o carro inteiro por dentro...' Sully pensou em voz alta, se sentindo enjoado com o cheiro que empesteava o interior do veículo.

O detetive olhou pelo retrovisor, e além do rosto extremamente cansado daquele Sullivan assustado e que ainda estava se recuperando da catatonia, ele viu a marca da lambida, como que reforçando a realidade de sua assustadora situação.

'Eu tô ficando louco, né? Não tem como isso ser real!' Ele pensou consigo mesmo enquanto dirigia. 'Uma noite inteira de sono, e vou acordar novinho em folha amanhã. É isso! E vou estar pronto para um copo de café e para o trabalho...'

Mas não era isso que aconteceria...

Quando Sully desceu do carro, já na garagem, sua casa estava diferente...

Sullivan era bastante organizado e metódico com suas coisas. Quase ao nível de um transtorno obsessivo-compulsivo, então conseguia perceber facilmente se qualquer coisa que ele mesmo tivesse organizado, não estivesse no mesmo lugar.

E sua casa parecia minimamente revirada.

Como se algo tivesse invadido seu lar.

Até que, confirmando suas suspeitas, ele ouviu ruídos vindo do segundo andar, provavelmente de seu quarto.

'Por que caralhos eu não tenho uma arma, mesmo?' Sully se perguntou, tentando não se exaltar demais pela atmosfera que o rodeava.

Um passo de cada vez, ele foi em direção ao seu quarto, mas seus pés pareciam fazer mais barulho do que ele gostaria.

'É só o medo, né? MERDA! Por quê?'

O detetive ligou as luzes do corredor, e percebeu uma pequena poça de sangue por sob a porta de seu quarto, e à medida que ele abria a porta, milímetro por milímetro, foi capaz de ouvir o som de algo sólido e ao mesmo tempo pastoso sendo mastigado, triturado.

E quando olhou para o lado do quarto de onde o som vinha, viu um inocente guaxinim, comendo alguma coisa.

O coração de Sullivan quase se acalmou no peito do investigador, e ele finalmente acendeu as luzes do cômodo, pronto para ter uma conversinha fofa com o bichinho.

Mas seus olhos se arregalaram e o medo primitivo que sentiu no beco voltou com força total.

'Não... Mas que porra... Que merda tá acontecendo...?'

Havia sangue por todos os lados no piso, manchando o tapete ao redor de sua cama, e o guaxinim olhou inocentemente para o detetive, enquanto mastigava despreocupadamente o que parecia um dedo com um dente cravado nele, enquanto segurava inocentemente a fruta que Sullivan havia descoberto em sua cama, algumas horas atrás.

Mas o que deixou Sullivan mais assustado e atônito, foi o fato de que aquele dedo estranho parecia ter vindo de dentro da fruta, que jazendo aberta nas patinhas do animal, revelava uma miríade de outras partes grotescas dentro de si, como orelhas, mais dedos, dentes, olhos, lábios.

Como se aquilo fosse o conteúdo da polpa daquela fruta assustadora.

E lógico que isso explicava os sons que Sullivan ouvira ao abrir a porta, mas...

Não havia explicação. Era tudo impossível demais para Sully conseguir absorver, e ele finalmente começou a se sentir enjoado de uma vez.

No entanto, sem forças para sequer correr até o banheiro, vomitou no chão, sobre uma poça de sangue, observando o animal, que continuava comendo a polpa impossível daquele fruto hediondo.

Não podia ser real...

E enquanto seu corpo desistia, perdendo qualquer força que ainda persistia em suas pernas, Sully desmaiou, caindo pesadamente sobre seu próprio vômito, agora misturado com o sangue daquele fruto.

~~~

Os olhos pareciam estar inchados, meio grudados, então ele teve um bom tanto de dificuldade em abri-los.

Já era dia claro, e o guaxinim já parecia ter ido embora da casa de Sullivan, que se sentia encharcado, empapado, enquanto recuperava os sentidos.

O quarto estava quente, então era bem possível que fosse só suor.

O investigador havia desmaiado, e acabou dormindo no chão sem querer. Ele sequer imaginava que poderia estar tão cansado, a ponto de não conseguir ir para cama.

Algo ali cheirava como uma mistura de cobre e algo azedo. Sullivan tentou se levantar.

'Não faça um movimento em falso, por favor... Sully.' Ele ouviu a voz de Benji ali perto, quase ao lado dele, e então, o clique de uma arma sendo engatilhada.

'Benji...? Mas que caralhos, cara?' Ele tentou perguntar, mas sua voz saiu meio engrolada, como se estivesse bêbado.

'Você me ouviu. Levanta devagar, senta, e me conta que porra toda é essa...' Benjamin "Benji" Waltz disse. Seu tom de voz parecendo chocado, triste. 'Me diz que isso não é o que parece. Que não é o que eu tô pensando...'

Sully se esforçou para se levantar, como seu namorado recomendara, sentou ali mesmo, no chão, e tentou abrir os olhos.

Um foi mais fácil de abrir que o outro, mas quando finalmente conseguiu abrir os dois, o cenário ao seu redor ainda mostrava o pesadelo da noite anterior.

Sully olhou para si mesmo, e ainda vestia as mesmas calças, que estavam manchadas de urina, e a mesma camisa preta de flanela, coberta de sangue já meio seco, e horrivelmente fedida daquele líquido estranho que pingara sobre ela no dia anterior.

Havia sangue por todos os lados, e partes pequenas de corpos espalhadas por todo canto. Dentes, dedos, línguas, e ao lado de Sully, uma poça avermelhada do que ele lembrava ser sangue e vômito.

O investigador tocou sua bochecha, e sentiu uma substância pegajosa, que só podia ser aquela da poça ao seu lado.

Na outra bochecha, a marca ainda dolorida da lambida que aquela coisa tinha dado em Sully. Ela ainda estava ali.

'Não... Não foi... Um sonho...?'

A voz de Sully soava oca, vazia, sem qualquer traço de emoção, senão desespero. Ele olhou para Benji, como quem espera por uma resposta.

'Não fode, cara... Me diz que não foi você que fez isso! Me diz que seu sumiço de cinco dias não tem a ver com essa merda toda ao seu redor!' Benji exclamou, falando alto. 'Eu venho para cá pra checar se você está bem, se está em casa e só está doente ou qualquer coisa do tipo, pra cuidar de você... Pra encontrar, o que exatamente?'

O tom de voz de Benji só aumentava, parecendo mais e mais desesperado.

'Sully, amor... Que porra toda é essa?'

***

Claro que Benji não acreditava em Gonzales, para começo de conversa.

Ele foi o único policial que aceitara ser parceiro do consultor que a vice comandante chamava de "filho da puta do sexto sentido" de bom grado e coração aberto.

Trabalharam juntos por anos, e nesse meio tempo, o que era apenas um laço de amizade extremamente profundo, aliado com a parceria do trabalho, evoluiu para algo mais profundo e intenso ainda.

E Benji havia sido o único para quem Sully havia aberto seu coração, mostrado seu mundo, sua história, as cicatrizes por todo seu corpo.

E também em seu coração.

***

Mas ali estava ele, Benji Waltz, de arma em punho, apontada para seu parceiro de trabalho e vida, e olhos transbordando de incredulidade e terror.

'Cinco dias?' Sully perguntou, se sentindo mais perdido ainda. 'O que... O que quer dizer com cinco dias? Você me ligou ontem, me chamando para ir até a cena de um crime. Eu até te encontrei na conveniência do West Park... A gente até tomou café juntos! Então me diz você, que porra tá acontecendo! Você não conseguiu ficar comigo a noite toda porque disse que tinha uma tonelada métrica de relatórios para preencher, por isso você simplesmente foi embora, e eu fui para a cena do crime.'

A mente do investigador estava confusa.

Quanto mais ele tentava se lembrar, sobre a noite, o pesadelo, a ligação, ter dirigido até a conveniência... Mais tudo parecia ficar borrado em sua memória.

'Que merda você tá falando?' Benji perguntou, gritando agora, completamente exasperado. 'FAZ DUAS SEMANAS DESDE QUE A ÚLTIMA VEZ EM QUE TRABALHAMOS JUNTOS EM UM CASO, LEMBRA?'

'O... Desaparecimento da desconhecida no necrotério... É, eu lembro desse.'

A coisa mais estranha era que aquela lembrança estava clara como água em sua mente, fresca como um pão que acabou de sair do forno.

Mas todo o resto...

Tudo o que ele devia lembrar, estava confuso, borrado, distorcido.

'Qual é, Sully... Eu não quero atirar em você. O que tá acontecendo?' O tom de Benji se tornou resoluto.

'Atirar em mim?' os olhos de Sully se arregalaram.

O que Benji queria dizer com aquilo? Ele não atiraria no próprio namorado, não é?

'Você me ligou, te encontrei, fui até a cena do crime, e até encontrei algumas coisas... Perturbadoras...' Sully terminou.

'EU NÃO TE VEJO FAZ CINCO DIAS, PUTA QUE PARIU! E DE QUE PORRA DE CENA DE CRIME VOCÊ ESTÁ FALANDO?' Benji gritou, deixando o tom resoluto de lado, e seu punho quebrando o abajur na mesinha de cabeceira de Sullivan.

'A PORRA DA MULHER COM O ROSTO ROUBADO!' Sully gritou, também. Suas emoções fervendo dentro dele como lava, seus olhos transbordando de lágrimas.

Benji congelou ao ouvir aquilo.

'Mas... Como você sabe... Não...' A arma começou a tremer violentamente na mão dele. 'Gonzales não pode estar certa sobre você...' A voz de Benji era desespero puro ali. 'Me diz o que é tudo isso, Sully... EU CONHEÇO VOCÊ, E VOCÊ NÃO É A PORRA DE UM ASSASSINO EM SÉRIE!'

'MAS DO QUE DIABOS VOCÊ TÁ FALANDO?!'

'CALA A BOCA! Só explica...'

'Eu... Não consigo...' Sully respondeu, vazio e perdido.

'Não... Não pode ser... NÃO PODE SER!' Benji urrou a plenos pulmões, lágrimas escorrendo profusamente em seu rosto.

'Benji, eu...' Sully disse, esticando a mão para seu parceiro.

E então veio o som do tiro.

            
            

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