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O tiro ecoou forte pelo quarto, fazendo os ouvidos de Benji zunirem.
Fazia muito tempo desde que ele tivera que tomar parte em uma troca de tiros dentro de um espaço confinado, e as lágrimas borravam sua vista, e a visão de Sully ali, naquele estado, era demais para ele suportar.
Tudo ali era demais para Benji conseguir suportar.
'B-Benji...' Ele ouviu Sully dizer, mas se recusou a olhar, fechando os olhos com força.
Benji perderia qualquer sanidade que lhe restava se sequer permitisse que seus olhos abrissem para olhar o que havia acabado de fazer.
'Benji...?' a voz de seu parceiro, de seu namorado, oca e perdida apenas alguns segundos atrás, agora estava cheia de choque e surpresa, estupefação, até. 'O que... O que está...'
***
Gonzales ligara para Benji, a fim de checar o andamento dos relatórios, afinal de contas, não era só de perseguições e tiroteios que vivia um policial.
Ele estava bastante ocupado com como encaixar as informações que Sully havia fornecido em palavras críveis, mas a vice comandante nunca ligava diretamente para ele apenas para checar os relatórios, então só restava a Benji ouvir o que sua chefe tinha a dizer.
'Você falou alguma coisa para aquela aberração que você chama de parceiro sobre o Ladrão de Rostos?' Ela perguntou, sem sequer se esforçar para esconder o nojo que sentia por Sully em suas palavras.
'Faz um tempinho que não falo com ele, estava até pensando em passar na casa dele para ver se está bem. Por quê?' Benji sentiu que havia alguma coisa fora de lugar ali, mas esperou que a Gonzales continuasse.
'Ele apareceu na cena do crime, sob o pretexto de "tirar algumas fotos, antes que a equipe de limpeza chegasse e cagasse com a cena inteira, porque o time da Forense já havia aparecido e feito o que precisavam."' Gonzales soava apreensiva em um nível que ele só havia presenciado quando o marido dela havia sido preso tráfico de drogas e prostituição.
'Okay...' Benji respirou fundo, tentando pensar. 'Você já perguntou para seus garotos se algum deles pode ter vazado a informação para o Sully, sem querer?'
'Você é retardado?' A voz de Gonzales era afiada, e sem um tom que fosse de consideração pelos sentimentos de seu policial. Ela seguiu, sem se preocupar em escolher palavras. 'Por acaso acha que meus meninos são idiotas como você? Nenhum deles sequer ousaria chegar perto de um assassino, a não ser para colocá-lo atrás das grades!'
Pronto. Era isso. Ali estava o que Benji já havia conjecturado por vezes e vezes.
A vice comandante confessando com todas as letras, com todo seu ceticismo, o que achava de Sully. Presumindo coisas sobre alguém de quem ela não sabia nem metade da história.
'Olha, chefe...' Benji decidiu se pronunciar. 'Eu sei que não gosta do Sully, mas você não sabe nada da vida dele. Agora, com todo respeito, se a senhora não se importa, tenho uma pilha de relatórios para terminar de preencher.'
Benji tentou seu máximo para se refrear, mas seu tom de voz ainda assim saiu cáustico.
Mas Aquilo era algo esperado, já que Sully sempre fora o único amigo de Benji desde que ingressara no departamento de polícia.
Um lugar cheio de corrupção, suborno, e muitas outras formas de sujeira.
Benji era o cérebro pensante, e Sully era os instintos. E isso significava que onde quer que houvesse uma pista inexplicável, Sully enxergaria ela, e Benji colocaria aquilo de forma lógica e crível no relatório, depois de o caso ser resolvido.
'Certo. Mas não diga que eu não te avisei. Vá até a casa dele quando puder, tenho certeza que você vai encontrar algo no mínimo suspeito que possa explicar os truques que ele sempre faz a gente engolir. A você também, não se engane. Uma hora ou outra você vai acabar descobrindo que ele esteve te enganando durante todo esse tempo. E eu só espero que isso não te machuque tanto a ponto de ser irreversível. Sabe que gosto de você, Benji... E que quando precisar, os braços da corporação estarão sempre abertos para te acolher de corpo e alma. Boa sorte com os relatórios.'
Benji desligou, e bateu na mesa com toda força.
'PORRA!' Gritou, atraindo a atenção de alguns colegas. 'O que estão olhando? Voltem ao trabalho, seus merdas!'
Ela estava certa sobre uma coisa, Benji tinha que admitir, por mais que odiasse isso. Nenhum dos garotos dela realmente nem ousaria chegar perto de Sully. Os policiais só falavam com ele quando necessário, e ainda, somente quando Benji estava por perto.
'Como você soube do crime, cara...?' Benji se perguntou, mesmo que tivesse medo da resposta.
***
E ali estava a resposta.
Sangue por todos os lados, pedaços de corpos pelo chão, seu namorado baleado diante dele.
Morrendo diante dele.
Benji estava errado.
Não havia nada que pudesse fazer sobre aquilo.
Ele passaria vergonha, seria vítima de todo tipo de coisas, e talvez até fosse alvo de violência da parte de seus supostos irmãos de armas.
Porque ele manchara a reputação de toda a corporação, quando escolheu ser parceiro do detetive.
Benji teria de carregar a mancha em seu coração pelo resto da vida, por deixar alguém entrar tão profundamente em sua vida, tanto profissional quanto pessoal.
O policial segurou a cabeça entre as mãos, a arma tocando gentilmente sua testa.
É... Só havia uma escolha.
Vergonha, dor, sujeira, violência, banimento...
Ou morte.
Sim, era a escolha mais bem vinda possível.
Ele morreria ao lado de seu namorado, de seu parceiro, e seu nome seria jogado na lama. Mas ao menos ele não estaria ali para ver acontecer.
A arma deslizou suavemente em direção à boca de Benji, seus olhos fechados firmemente.
'Benji... O que você tá fazendo?' Ele ouviu a voz de Sully à distância, abafada pelo choro.
'Eu estou... Estou indo com você, meu amor...' Ele pensou para si mesmo, incapaz de responder.
'BENJI, OLHA PRA MIM!'
Os olhos de Benji se arregalaram ao ouvir o grito de Sully, e então ele viu o que estava acontecendo.
Uma cena horrível, digna de levar qualquer pessoa à loucura, aos mais profundos recônditos da insanidade.
'Benji...' Sully disse, parecendo implorar.
Sua camisa de flanela tinha um buraco de bala, mas não havia sangue nem nada, saindo do ferimento sob o tecido.
As mãos de Sully tremiam violentamente, sangrando por vários cortes que haviam aparecido de lugar algum, provavelmente enquanto Benji não estava olhando.
Assim como suas bochechas, seu pescoço.
Sully estava sangrando por todos os cantos...
Deus do céu...
Sully estava chorando sangue!
E os cortes em sua pele pareciam estar se... Movendo.
Como se estivessem tentando se abrir...
'BENJIOQUEDIABOSTÁACONTECENDOCOMIGO!?' Sully gritou, mas seu parceiro estava ocupado demais para responder. Urinando nas próprias calças, sem conseguir controlar nem mesmo seus excrementos, enquanto um dos cortes se abria lentamente.
Revelando um olho de írises completamente pretas, que se confundiam com a pupila, e esclera amarelada, cor de pus.
E o olho olhava diretamente para Benji.
O policial olhou para aquela coisa impossível, indescritível, nas costas da mão de Sully, e sua vista pareceu começar a ficar levemente turva, ardendo um pouco.
Queimando.
Benji começou a urrar de dor, incapaz de fazer qualquer coisa, que não sentir aquela dor indescritível e abrasadora.
Os gritos de Benji se misturaram aos de Sully, à medida que todos os cortes em seu corpo começaram a abrir de uma vez, expondo mais olhos sob cada uma daquelas feridas.
Daquelas pálpebras.
E quanto mais olhos se abriam por sobre a pele de Sully, mais Benji gritava.
Mas Sully agora estava quieto, silencioso como uma estátua. Atônito.
Absolutamente aterrorizado.
Os gritos de seu namorado foram ficando mais altos e mais altos, até que suas cordas vocais arrebentaram, e uma golfada de sangue jorrou de sua boca.
Silencio se seguiu, deixando espaço apenas para os sons úmidos de engasgo e sufocamento.
A pele branca de Benji adquiria rapidamente tons de vermelho, como se estivesse queimando.
E então, realmente queimando.
Derretendo.
Deixando expostos músculos onde deveria haver a proteção da pele, e então apenas ossos e órgãos e uma poça de uma substância derretida, rescendendo fetidamente a um odor adocicado, enjoativo, junto com o cheiro de fezes e da urina que evaporava.
E logo em seguida, apenas o silêncio reinava. Junto com a poça orgânica, pútrida e fétida, e Sullivan no meio daquilo tudo.
Sua mente estilhaçada.
'Nossa... Você é lindo.' A voz gorjeou de trás de Sully. Ele sentiu uma mão acariciando seu cabelo, mas sua mente estava longe demais, perdida demais, para sequer se importar. 'Você está pronto para entender, agora.' Completou a figura demoníaca.
Ela parecia diferente de antes. Suas curvas ainda permaneciam atraentes daquele jeito grotesco e nojento, mas haviam tentáculos em suas mãos.
Se é que era possível que aquilo pudesse ser chamado de mãos.
Seu rosto ainda era belo, mas havia algo de estranho em sua aparência. Ainda assim, nada parecia importar de verdade.
Aquele era o único pensamento que passava pela mente de Sully naquele momento.
'Mas para que você realmente aproveite a verdade que está prestes a descobrir, você precisa estar aqui. De corpo e alma.' Ela disse, se aproximando mais e mais, até os lábios dela encontrarem os dele em um beijo.
Se é que aquilo poderia ser chamado de beijo.
A língua daquela coisa se esticou impossivelmente, se enfiando pela boca de Sully até chegar à sua garganta, tornando impossível respirar.
Aquele beijo tinha um sabor horrível para Sully. Era como se ele estivesse comendo um cadáver.
A mente do detetive voltou imediatamente para seu corpo, o instinto de sobrevivência vindo com tanta força, que ele foi capaz de empurrar a mulher demoníaca.
A língua dela, lentamente deixando a boca de Sully.
'Agora sim, acho que posso dizer que estamos prontos...' Ela disse, quando Sully se ajoelhou, ofegando em busca de ar. 'Você está pronto para ver como isso tudo termina, receptáculo?'
'Apenas me diga...' A voz de Sully soou de sua garganta, menos vazia que antes, em meio a tosse e ofego. 'O que está acontecendo comigo...?'
'Vou te levar para onde preciso que esteja, e então, não precisarei de palavras para explicar qualquer coisa.' Ela disse. 'Tudo vai ficar claro, assim que você abrir seus olhos de fato.'
E então, ela pegou Sully nos braços, e assim que o fez, o espaço ao redor deles pareceu distorcer.
Como se a própria realidade parecesse vibrar, ressoando com algo que Sully não conseguia entender.
Logo em seguida, todo o espaço ao redor mudou, e eles pareciam não estar mais no quarto do investigador.
Estavam, sim, em um quarto, mas completamente sujo. Humanamente nojento de se olhar, onde um homem de meia idade estava sentado, amarrado a uma cadeira.
Um rosto humano de verdade parecia estar grampeado no rosto do homem, que chorava e murmurava.
Diante dele, havia uma jovem de cabelos meio curtos, ondulados, pele branca, e aparência quebrada, desesperada.
E havia um pé de cabra em suas mãos.
O homem chorava e murmurava, como que implorando a ela para não fazer o que quer que ela estivesse prestes a fazer.
Eles não pareciam ter percebido a chegada de Sully e sua impossível acompanhante.
'É chegado o momento de você ver como tudo termina, ó receptáculo!' A mulher demoníaca sussurrou no ouvido de Sully.
E os olhos do detetive se arregalaram.